sábado, 6 de dezembro de 2008

Balanço sobre os 60 anos da Declaração Universal de Direitos Humanos

Miguel Reale Jr. publica no jornal O Estado de São Paulo artigo sobre os sessenta anos da Declaração Universal de Direitos Humanos.


Tolerância e direitos humanos

Miguel Reale Júnior

Na próxima semana comemoram-se os 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, da ONU. Já no preâmbulo da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, afirmava-se que o caráter didático e preciso da Declaração permitiria superar a causa dos males, o desprezo em face dos direitos do homem.
A História demonstrou o fracasso dessa ilusão, em vista dos morticínios de milhões de pessoas nas duas guerras mundiais, com o gravame das práticas de extermínio organizado e planejado de pessoas em razão de sua raça, origem ou religião. Após a desgraça da 2ª Guerra Mundial, as nações uniram-se para editar nova Declaração de Direitos, em 10 de dezembro de 1948, na qual se atribui, tal como na Declaração de 1789, a barbárie ao "desprezo e ao desrespeito pelos direitos do homem".
No Pacto Internacional relativo aos Direitos Econômicos e Sociais e no Pacto Internacional relativo aos Direitos Civis e Políticos, ambos de 1966, atribui-se à educação o condão de criar uma cultura de respeito aos direitos humanos, impeditiva do desrespeito a eles.
Este processo educacional deve seguir duas linhas fundamentais: a promoção do pleno desenvolvimento da personalidade humana e o fortalecimento do respeito pelos direitos do homem e pelas liberdades fundamentais graças à compreensão e à tolerância.
Educar, por conseguinte, não se limita a instruir, a ensinar a ler, a escrever, a calcular e a raciocinar. Significa promoção do pleno desenvolvimento para potencializar todas as virtualidades da pessoa, para se alcançar a "formação integral qualitativa da personalidade humana" sem descuidar do outro, o que significa, também, educar para os direitos humanos, ao se suscitar que na relação com os outros haja respeito por suas específicas formas de ser.
Formar uma pessoa significa viabilizar sua autonomia, para viver em obediência às suas convicções, mas com respeito à autonomia do outro, à sua liberdade e às suas idéias, pelo que cumpre serem regidas as relações interpessoais por uma ética da tolerância e do respeito ao diferente.
Seria suficiente a prática da compreensão e da tolerância, numa sociedade aberta e multicultural, mas sujeita, como a atual, ao processo de globalização, apesar da convivência de formas díspares de viver e de múltipla compreensão dos valores? A prevalência em nossos tempos da cultura do descartável, que facilita o desprezo ao diferente, ao particular, não torna a percepção do contraste existente entre o universal e o específico ainda mais angustiante?
Esta situação se apresenta com redobrada complexidade na sociedade brasileira, em vista de nossa formação histórica, com a miscigenação física e cultural, carregando de forma indelével as conseqüências dos séculos de escravidão e de rigorosa exclusão.
Assim, de um lado, há uma universalização de valores em escala global e, de outro, identidades culturais que não devem ser anuladas. Como, então, conciliar a valorização da pluralidade cultural numa sociedade de consumo que igualiza comportamentos? O consenso importa em negação da desigualdade ou pode haver uma igualdade na desigualdade?
Não se pode negar que assumem relevo, no modo de ser contemporâneo, a imediatidade, a interatividade, em razão do que na civilização da pressa não há lugar para a vivência dos valores que não os do sucesso efêmero e momentâneo, pelo que se troca, como assinala Robles, o êxito do ideal pelo ideal do êxito.
Posta a questão, cabe reconhecer um paradoxo: promover a preservação dos valores universais sem sacrifício dos valores de grupos culturais específicos - o que une não deve impedir a visão do que separa e o que distingue não deve impedir que se veja o que une.
Eis o paradoxo: o reconhecimento de direitos de categorias de pessoas cujos status e diferença não permitem igualdade de tratamento e de proteção.
No dizer de Bobbio, aparecem novos personagens nas Declarações de Direitos: a criança, o velho, o muito velho, a mulher, o doente, o demente, em busca de uma igualdade na desigualdade, para uma "efetiva equiparação", com a superação da discriminação graças ao tratamento "diferenciado do que é diverso".
Este paradoxo se apresenta em vista de os direitos humanos terem manifesto caráter universal e transnacional, como direitos da pessoa humana numa humanidade que se unifica econômica e culturalmente, enquanto, em contrapartida, surge a vertente significativa da existência de direitos fundamentais tipicamente localizados e específicos, a requerer proteção diferenciada de posições sociais específicas.
Diante da emergência da reivindicação de direitos à igualdade dos desiguais, identificados por seu status especial (mulheres, homossexuais, deficientes, velhos, doentes) ou por suas características étnicas, ressurge sob nova forma o valor da tolerância constante das Declarações de Direitos como objeto do processo educacional.
Tolerância redunda, então, em tornar-se responsável em face do que se pode discriminar e não se discrimina para se assumir a tarefa da promoção de inclusão dos excluídos ou da equalização dos inferiorizados pelo preconceito ou pelas condições reais da vida.
Deve-se, portanto, avançar do conceito liberal de tolerância para o conceito social de solidariedade, que significa "responsabilidade social", e não apenas aceitação da diferença, mas, como realça Judith Martins-Costa, uma aceitação qualificada, pela qual se admite que o diferente possa receber maior tutela ou tutela específica que "atenda à sua diferença concreta", como membro da comunidade.
Passa a ser essencial educar para a responsabilidade social, para o valor da solidariedade, que não apenas aceita o diferente, mas o inclui para construir a igualdade do desigual, como modo de superação concreta do paradoxo acima lembrado.

Miguel Reale Júnior, advogado, professor-titular da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça

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