O jornal O Globo publicou no dia 9 de dezembro de 2008 entrevista com Stéphane Hessel, um dos co-redatores da Declaração Universal de Direitos Humanos.
'Democracia corrompida abre portas ao terror'
Co-redator da Declaração dos Direitos Humanos defende corte que permita a indivíduos processar seu governo
Ele foi co-redator da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que completa amanhã 60 anos. Em entrevista exclusiva ao GLOBO, o ex-embaixador da França Stéphane Hessel, hoje com 91 anos, defende a criação de uma corte internacional que permitiria a indivíduos levar seus governos a julgamento, e declara: as grandes democracias devem deixar de ser hipócritas se quiserem fazer os direitos humanos avançarem no mundo: "Uma democracia corrompida abre as portas à violência e ao terrorismo". Segundo ele, houve progressos, mas esse caminho nem sempre é tranqüilo. "É uma estrada com avanços, como a queda do Muro de Berlim, mas com recuos, como a construção do muro por Israel."
Deborah Berlinck
Um militante brasileiro disse que o combate pelo respeito aos direitos humanos é um exercício de frustração. O senhor concorda?
STÉPHANE HESSEL: Naturalmente. Mas os corajosos superam a frustração, e é isso que devemos fazer. É verdade que os direitos humanos continuam a ser violados há décadas. Mas há também progressos que são possíveis porque há pessoas que não deixam a frustração tomar o lugar da determinação.
A Declaração é a última grande utopia ?
HESSEL: Não. A Declaração é o mais vasto programa proposto a uma sociedade, à qual ela diz: se vocês chegarem progressivamente, nacional e internacionalmente, a realizar estes direitos, isso levará tempo, não será contínuo, haverá forçosamente retrocessos... Mas é o único programa que vocês podem tentar implementar para serem homens fraternos e que querem ter liberdade e Justiça no mundo.
Quais são os avanços ?
HESSEL: A descolonização, que foi um enorme progresso, incluindo a do império soviético. É preciso contar também a construção da Europa, que não terminou, mas está no bom caminho. E também tudo o que se passou na América do Sul, onde regimes militares terríveis na Argentina, no Brasil, no Chile e no Uruguai foram eliminados. Hoje há democracia nestes países, embora ainda haja problemas, como na Colômbia.
O genocídio de Ruanda o chocou muito, não?
HESSEL: Muito. Da mesma forma que me choca como Israel trata seus vizinhos na Palestina, colonizando, ocupando e zombando das convenções internacionais. Temos um grande problema em Darfur. Mas, se analisarmos os 192 países-membros da ONU, há 12 ou 13 onde as coisas vão mal. É muito, mas não é enorme.
O balanço é positivo, então?
HESSEL: Houve progressos, como o Tribunal Penal Internacional. Não é um caminho tranqüilo. É uma estrada com avanços grandes, como a queda do Muro de Berlim, mas com recuos, como a construção do muro por Israel. Mas, quando há um recuo, como foi o caso dos Estados Unidos durante todo o período Bush, podemos dizer: "Ufa, agora vamos ter Obama, e haverá certamente progresso em direitos humanos".
Se tivesse que reescrever a Declaração, mudaria algo?
HESSEL: Não mudaria nada. Todos os valores inscritos permanecem válidos e essenciais. Eu acrescentaria alguma coisa, não à Declaração em si. Acrescentaria, no quadro da ONU, o meio ambiente e a forma como o homem degrada e destrói o planeta. É urgente. Eu tentaria também refletir sobre um modo eficaz de lutar contra o terrorismo. É preciso cooperação das polícias, mas também impedir que pessoas desesperadas possam se mobilizar num movimento de ódio contra as sociedades avançadas, ricas. Este ódio é aproveitado por pessoas que buscam benefício e poder pessoal, e que lançam estas pessoas contra civilizações avançadas. Ainda não encontramos a resposta para a luta contra o terrorismo.
Por que as democracias avançadas não conseguem isso? Não há um problema de linguagem dupla?
HESSEL: Absolutamente. Há um problema de hipocrisia. Os governos são freqüentemente hipócritas. Fingem fazer progressos em matéria de justiça social, lutar contra a desordem das periferias, contra os marginalizados. Mas suas ações, na realidade, suscitam o desenvolvimento da marginalidade. E isso é o motivo da corrupção nas democracias. Uma democracia corrompida abre a porta à violência e ao terrorismo.
O combate começa conosco, nas democracias, então?
HESSEL: Totalmente. Temos que combater com convicção. Mas também com vigilância, para não deixar desenvolver políticas em relação aos imigrantes, que são políticas injustas, que criam uma resposta violenta na jovem geração de sacrificados.
Se a Declaração tivesse que ser escrita hoje pela primeira vez, os países chegariam a um acordo sobre o mesmo texto?
HESSEL: Acho que seria muito mais difícil. Os redatores de 1948 se beneficiaram de um período excepcional, logo depois da Segunda Guerra Mundial. Havia uma tal preocupação em criar algo novo, que podíamos obrigar as pessoas a deixar de lado seus egoísmos ou suas ideologias diferenciadas para chegarem a um acordo. Hoje, conseguiríamos o mesmo consenso? Eu deixo isso como um ponto de interrogação. Mas acrescento uma nota de otimismo: estamos novamente diante de problemas fundamentais e talvez, quem sabe, haverá a mesma preocupação que em 1945 de criar algo novo que precisamos para enfrentar novos desafios globais.
Havia pontos polêmicos na negociação na Declaração ?
HESSEL: Havia um grau de acordo grande. Mas havia também polêmicas, que foram tratadas com diplomacia e inteligência. Não foi fácil. Mas conseguimos fazer um trabalho que contentou a todos, porque houve 48 votos a favor, e 8 abstenções.
O senhor vive os 60 anos com emoção?
HESSEL: Naturalmente... mas com o sentimento que não resolvemos os problemas evocados pela Declaração. Estamos longe de ter direitos que não sejam violados. Temos situações muito graves em alguns países. Mas de forma global, há progressos.
O senhor é favorável a um Tribunal Internacional ao qual os indivíduos possam recorrer?
HESSEL: O Tribunal Penal Internacional que existe hoje só pode julgar chefes de Estado ou seus adjuntos que cometeram crimes de guerra, contra a Humanidade e genocídios. O que não temos no nível mundial é um tribunal para os direitos humanos como temos para a Europa, diante do qual indivíduos que tiveram seus direitos violados possam recorrer para que o Estado seja punido ou chamado a respeitar. É algo que poderá acontecer no século XXI.
'Democracia corrompida abre portas ao terror'
Co-redator da Declaração dos Direitos Humanos defende corte que permita a indivíduos processar seu governo
Ele foi co-redator da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que completa amanhã 60 anos. Em entrevista exclusiva ao GLOBO, o ex-embaixador da França Stéphane Hessel, hoje com 91 anos, defende a criação de uma corte internacional que permitiria a indivíduos levar seus governos a julgamento, e declara: as grandes democracias devem deixar de ser hipócritas se quiserem fazer os direitos humanos avançarem no mundo: "Uma democracia corrompida abre as portas à violência e ao terrorismo". Segundo ele, houve progressos, mas esse caminho nem sempre é tranqüilo. "É uma estrada com avanços, como a queda do Muro de Berlim, mas com recuos, como a construção do muro por Israel."
Deborah Berlinck
Um militante brasileiro disse que o combate pelo respeito aos direitos humanos é um exercício de frustração. O senhor concorda?
STÉPHANE HESSEL: Naturalmente. Mas os corajosos superam a frustração, e é isso que devemos fazer. É verdade que os direitos humanos continuam a ser violados há décadas. Mas há também progressos que são possíveis porque há pessoas que não deixam a frustração tomar o lugar da determinação.
A Declaração é a última grande utopia ?
HESSEL: Não. A Declaração é o mais vasto programa proposto a uma sociedade, à qual ela diz: se vocês chegarem progressivamente, nacional e internacionalmente, a realizar estes direitos, isso levará tempo, não será contínuo, haverá forçosamente retrocessos... Mas é o único programa que vocês podem tentar implementar para serem homens fraternos e que querem ter liberdade e Justiça no mundo.
Quais são os avanços ?
HESSEL: A descolonização, que foi um enorme progresso, incluindo a do império soviético. É preciso contar também a construção da Europa, que não terminou, mas está no bom caminho. E também tudo o que se passou na América do Sul, onde regimes militares terríveis na Argentina, no Brasil, no Chile e no Uruguai foram eliminados. Hoje há democracia nestes países, embora ainda haja problemas, como na Colômbia.
O genocídio de Ruanda o chocou muito, não?
HESSEL: Muito. Da mesma forma que me choca como Israel trata seus vizinhos na Palestina, colonizando, ocupando e zombando das convenções internacionais. Temos um grande problema em Darfur. Mas, se analisarmos os 192 países-membros da ONU, há 12 ou 13 onde as coisas vão mal. É muito, mas não é enorme.
O balanço é positivo, então?
HESSEL: Houve progressos, como o Tribunal Penal Internacional. Não é um caminho tranqüilo. É uma estrada com avanços grandes, como a queda do Muro de Berlim, mas com recuos, como a construção do muro por Israel. Mas, quando há um recuo, como foi o caso dos Estados Unidos durante todo o período Bush, podemos dizer: "Ufa, agora vamos ter Obama, e haverá certamente progresso em direitos humanos".
Se tivesse que reescrever a Declaração, mudaria algo?
HESSEL: Não mudaria nada. Todos os valores inscritos permanecem válidos e essenciais. Eu acrescentaria alguma coisa, não à Declaração em si. Acrescentaria, no quadro da ONU, o meio ambiente e a forma como o homem degrada e destrói o planeta. É urgente. Eu tentaria também refletir sobre um modo eficaz de lutar contra o terrorismo. É preciso cooperação das polícias, mas também impedir que pessoas desesperadas possam se mobilizar num movimento de ódio contra as sociedades avançadas, ricas. Este ódio é aproveitado por pessoas que buscam benefício e poder pessoal, e que lançam estas pessoas contra civilizações avançadas. Ainda não encontramos a resposta para a luta contra o terrorismo.
Por que as democracias avançadas não conseguem isso? Não há um problema de linguagem dupla?
HESSEL: Absolutamente. Há um problema de hipocrisia. Os governos são freqüentemente hipócritas. Fingem fazer progressos em matéria de justiça social, lutar contra a desordem das periferias, contra os marginalizados. Mas suas ações, na realidade, suscitam o desenvolvimento da marginalidade. E isso é o motivo da corrupção nas democracias. Uma democracia corrompida abre a porta à violência e ao terrorismo.
O combate começa conosco, nas democracias, então?
HESSEL: Totalmente. Temos que combater com convicção. Mas também com vigilância, para não deixar desenvolver políticas em relação aos imigrantes, que são políticas injustas, que criam uma resposta violenta na jovem geração de sacrificados.
Se a Declaração tivesse que ser escrita hoje pela primeira vez, os países chegariam a um acordo sobre o mesmo texto?
HESSEL: Acho que seria muito mais difícil. Os redatores de 1948 se beneficiaram de um período excepcional, logo depois da Segunda Guerra Mundial. Havia uma tal preocupação em criar algo novo, que podíamos obrigar as pessoas a deixar de lado seus egoísmos ou suas ideologias diferenciadas para chegarem a um acordo. Hoje, conseguiríamos o mesmo consenso? Eu deixo isso como um ponto de interrogação. Mas acrescento uma nota de otimismo: estamos novamente diante de problemas fundamentais e talvez, quem sabe, haverá a mesma preocupação que em 1945 de criar algo novo que precisamos para enfrentar novos desafios globais.
Havia pontos polêmicos na negociação na Declaração ?
HESSEL: Havia um grau de acordo grande. Mas havia também polêmicas, que foram tratadas com diplomacia e inteligência. Não foi fácil. Mas conseguimos fazer um trabalho que contentou a todos, porque houve 48 votos a favor, e 8 abstenções.
O senhor vive os 60 anos com emoção?
HESSEL: Naturalmente... mas com o sentimento que não resolvemos os problemas evocados pela Declaração. Estamos longe de ter direitos que não sejam violados. Temos situações muito graves em alguns países. Mas de forma global, há progressos.
O senhor é favorável a um Tribunal Internacional ao qual os indivíduos possam recorrer?
HESSEL: O Tribunal Penal Internacional que existe hoje só pode julgar chefes de Estado ou seus adjuntos que cometeram crimes de guerra, contra a Humanidade e genocídios. O que não temos no nível mundial é um tribunal para os direitos humanos como temos para a Europa, diante do qual indivíduos que tiveram seus direitos violados possam recorrer para que o Estado seja punido ou chamado a respeitar. É algo que poderá acontecer no século XXI.
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