segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

A flexibilização do direito do trabalho pela ordem comunitária européia

http://journaldumauss.net/spip.php?article283 A Profa. Deyse Ventura envia o citado endereço eletrônico que traz texto de Supiot publicado na revista Mauss. Este artigo reproduz, na verdade, um artigo desse jurista francês publicado originalmente em Le Monde de janeiro de 2008. Supiot reforça, assim, a sua tese que, nas decisões da Corte de Luxemburgo, se consolida um direito comunitário a favor da flexibilização do Direito do Trabalho notadamente na garantia do direito de greve. Nessa linha, direitos nacionais como a ordem normativa francesa é um exemplo de resistência a essa degradação no tocante a defesa de direitos fundamentais sociais por parte do direito comunitário europeu.

A volta dos partidos socialistas na Europa?

(http://www.newstatesman.com/europe/2008/12/socialist-party-socialism).O Professor Josué Mastrodi envia o endereço eletrônico mencionado abrindo o acesso para a revista "New Stateman"de 04 de dezembro de 2008 abrindo o debate sobre a volta dos partidos socialistas na Europa.

domingo, 28 de dezembro de 2008

Patriotismo constitucional e a razão de estado

A revista francesa “Le Magazine Littéraire” de novembro de 2008, número 480 traz duas reflexões importantes. Uma é a respeito da relação França e Alemanha no contexto da construção unidade européia. O pensador alemão Peter Sloterdijk afirma que as relações entre as duas sociedades estarão condenadas a uma indiferença mútua. Na citada edição, tanto a filosófa francesa Blandine Kriegel e quanto o historiador alemão Rudolf com Thaden rebatem essa afirmativa ao discorrerem a trajetória franco-alemã pós o iluminismo. Ressalte-se os caminhos diferenciados por cada um no século XIX. A França, por exemplo, segundo o mencionado debate distancia-se por uma via de ruptura tendo como base uma epistemologia crítica da ciência enquanto a Alemanha se orienta pela força do idealismo. Entretanto, merece sublinhar a assertiva de Rudolf Von Thaden a respeito do patriotismo constitucional bastante conveniente a uma sociedade alemã não reunificada. Com as duas Alemanhas separadas, era óbvio que um patriotismo nacional era impossível. A reunificação, segundo o mesmo historia, aponta para uma oportunidade única, “nós podemos de novo exprimir as experiências e as aspriações nacionais sem esquecer que há ainda de válido no patriotismo constitucional, afirma Rudolf von Thaden. A França tem de questionar a sua tradição jacobinista e reconhecer o fato do patriotismo soberanista não é mais um horizonte suficiente para o seu futuro e Alemanha não deve mais esquecer a sua própria história nacional, acrescenta o referido historiador alemão. Blandine Kriegel mostra que o patriotismo constitucional pós- 1945 serviu para afirmar moralmente a superioridade da Alemanha Federal sobre a República Democrática alemã (RDA) inclusive sobre a própria Áustria.
A outra reflexão da citada revista francesa é sobre a obra de Agamben, “Le régne et La Gloire. Pour une généalogie théologique de l´économie et du gouvernement (Paris: Éditions Seuil, 2008), o resenhista Máxime Rovere ressalta a importância do pensamento do autor de Homo Sacer ao provar, exemplo, a necessidade de uma arqueologia de um conceito deva atravessar os campos de saber diferentes (na ocorrência de passar da política para à teologia) para nele reconecer uma “assinatura” proveniente de uma passagem : no acontecimento do paradigma econômico-gestionário (próprio da idéia de governabilidade a partir do século XVI com a transformação do poder político em Estado, seguindo Michel Foucault) indicando uma via para a diferença entre o poder de deliberação e execução fundamentado na esfera teleolócia.
A relevância dessas análises é de que se encontra, nesse início do século XXI, numa transição de conceitos próprios do período pós Segunda Guerra Mundial (patriotismo constitucional e a noção laica de poder) para novos aspectos a respeito do que é o político e sua articulação com o Direito (Agamben).

"O choque de civilizações" e a crise do capitalismo

A "Folha de Sâo Paulo" de 28 de dezembro de 2008 noticia a motre de Samuel Huntington. Antes mesmo do seu famoso texto na revista "Foreign Affairs" sobre o choque das civilizações mais tarde transformado em livro, o pensador americano foi um grande especialista em estudo sobre os militares e a respeito do autoritarismo. Os anos 90 do século passado foram marcados pela obra de Fukyama "o fim da história", o início do século XXI Hntington mostrou que ela não tinha morrido apelando para o fator "cultural" ou "civilizatório". O que Huntington talvez não tenha percebido, nesses últimas horas do ano de 2008, que a questão central é o capitalismo, este internacionalizado da forma como se apresenta. A grave crise do sistema capitalista global ora travada demarca que essa a dinâmica principal do processo histórico. O "civilizatório" muitas vezes entra como uma forma de resistência heróica contra o carater devastador da acumulação capitalista dos dias atuais.

Morre teórico do "choque de civilizações"
Aos 81 anos e no centro dos debates internacionais, Samuel Huntington enfatizava dicotomia entre Ocidente e islã

Polêmicas como a defesa de uma abertura democrática "lenta" nos anos 70 marcam a trajetória intelectual do veterano de Harvard

Samuel Phillips Huntington, autor do célebre artigo "O Choque de Civilizações?" e um dos mais proeminentes teóricos políticos dos últimos 50 anos, morreu na quarta-feira, véspera do Natal, aos 81 anos, anunciou ontem a Universidade Harvard. Nascido em Nova York, Huntington formou-se na Universidade Yale e aos 23 já lecionava em Harvard.
Professor por 58 anos e mentor de gerações de intelectuais, Huntington foi um dos fundadores da revista "Foreign Affairs" e aposentou-se de Harvard no ano passado. Suas opiniões polêmicas em temas como a imigração hispânica nos EUA, que via com pessimismo, e a influência de sua tese sobre os conflitos internacionais contemporâneos o mantinham no centro dos debates.
"Ele foi certamente um dos mais influentes cientistas políticos dos últimos 50 anos", disse o economista Henry Rosovsky, colega e amigo de Huntington por seis décadas.
Huntington morreu em casa, na ilha de Martha's Vineyard, Massachusetts. Deixa mulher, dois filhos, quatro netos e inúmeros discípulos acadêmicos.
Embora suas idéias tenham influenciado políticas conservadoras -como o ritmo lento da redemocratização do Brasil e a doutrina de "guerra ao terror" de George W. Bush- , Huntington foi durante toda a vida um defensor da democracia, segundo a viúva, Nancy.
Controvérsias marcam a trajetória intelectual de Huntington desde seu primeiro livro, publicado em 1957. No início dos anos 1970, ele defendeu uma transição lenta e gradual dos regimes autoritários do bloco capitalista, alertando sobre os riscos de uma abertura política súbita. A tese, que em larga medida influenciou a transição democrática brasileira, foi criticada pela esquerda latino-americana.
Sexagenário, Huntington transformou-se em celebridade midiática internacional após lançar a sua mais famosa tese, a de que os conflitos mundiais têm como principal origem a competição entre identidades culturais de "sete ou oito civilizações". A idéia, inicialmente controvertida, ganhou força após o 11 de Setembro.
A hipótese de Huntington sobre os conflitos no pós-Guerra Fria -publicada pela primeira vez no artigo "O Choque de Civilizações?", em 1993, e desenvolvida em livro lançado em 1996-, foi vista como profética por muitos intelectuais.
Para o acadêmico, as fricções ideológico-culturais entre as civilizações se tornariam "a fonte fundamental de conflito" após a dissolução do bloco soviético, com crescente animosidade entre a civilização islâmica e a ocidental -para ele constituída apenas pela Europa ocidental e países anglófonos desenvolvidos.
"Estados-nação continuarão os atores mais poderosos das relações internacionais, mas os principais conflitos da política global irão ocorrer entre nações e grupos de diferentes civilizações", escreveu em 1993.
A tese do "conflito de civilizações" -apresentada como contraponto à tese do "fim da história" elaborada por Francis Fukuyama após a queda da União Soviética- foi criticada por intelectuais como Edward Said, da Universidade Columbia, por perpetuar a mentalidade de "Ocidente versus resto do mundo". Aclamada ou combatida, a hipótese de Huntington está no centro do debate contemporâneo sobre relações internacionais.

quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

"Deciviliser" - o pensamento de Supiot para o século XXI

Texto elaborado pelo Professr José Ribas Vieira em 24 de dezembro de 2008. É docente da Faculdade de Direito da UFRJ.

As publicações recém-saídas na França a saber Manière de Voir - Le Monde Diplomatique - Le Krach du libéralisme bimestriel nº 102 Decembre 2008 et Janvier 2009 e revista Esprit Dans la torumente aux sources de la crise financière (1) - novembre 2009 marcam a chegada no Brasil do debate travado na Europa já por consequência da grave crise do capitalismo internacional. As duas publicações principalmente Esprit (novembro de 2008)tecem violenta críticas contra o neoliberalismo e o seu esgotamento. No campo do direito, as duas revistas ressaltam muito o tema do "risco" para compreender a atual “débâcle” econômica mundial. Na revista Esprit, ressaltou-se, por exemplo, a importância do texto de Antoine Garapon denunciando o que significou uma Justiça com padrões neoliberais. Outro estudo de significado relevante é o de Alain Supiot. Supiot é um grande mentor para compreender o Direito do Trabalho hoje com seu famoso relatório para OCDE a respeito das relações capital e trabalho na União Européia.(vide Au-delà de l´emploi – Transformations du travail et devenir du droit du travail em Europe. Paris:Flamarion,1999). Contudo, no texto publicado na revista Esprit de novembro de 2008, ele volta-se mais para a questão da aplicação do direito no território. Supiot pontua muito a origem da palavra "habitat" (ter em latim). Mas o seu mote e da própria edição da mencionada revista Esprit é que a crise do capitalismo internancional nos dias atuais representa o próprio colapso da denominada “civilização ocidental”. Os articulistas de Esprit em especial Supiot estão veiculados a constatar a presença de um fenômeno social de "deciviliser". Supiot aponta para a necessidade de haver uma aproximação com o pensamento filosófico chinês. Pois, o confuncionismo, por exemplo, já antecipava uma compreensão da natureza humana, antes mesmo do utilitarismo bethamista do final do século XVIII, de caráter egoísta. Enquanto, Bentham encontrava uma perspectiva otimista para os fundamentos econômicos do capitalismo industrial nascente, a linha confuncionsta concluía pelo pessimismo diante desse futuro do Homem. “Deciviliser” a civilização ocidental para Alain Supiot é buscar nas raízes mais profundas do humanismo chinês para as sociedades devastadas pelo colapso do capitalismo global um novo “recomeçar” de um “processo civilizatório” para o século XXI.

terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Viagem à Amazônia

Posta-se abaixo artigo do jornal O Globo, publicado no dia 22 de dezembro de 2008, que aborda temas tais como povos indígenas, Amazônia e soberania nacional.


Viagem à Amazônia

Denis Lerrer Rosenfield

Visitei, no início de dezembro, a Amazônia a convite do Comando Militar da Amazônia. A viagem se fez dentro do Programa Calha Norte, voltado para a manutenção da soberania nacional e da integridade territorial da região amazônica e para a promoção do desenvolvimento regional. As observações a seguir são de minha inteira responsabilidade e não envolvem nenhuma das autoridades militares que fizeram parte dessa missão.

O objetivo da missão era visitar os PEF (Pelotões Especiais de Fronteira), postos avançados do Exército nas fronteiras da Amazônia, Brigadas do Exército, o VII Comar (Manaus) e o Distrito Naval de Manaus, abrangendo, portanto, as três Forças. Os locais visitados foram: Manaus, Barcelos, São Gabriel da Cachoeira, Maturacá, Sucurucu e Boa Vista.

A visão aérea da região, sobretudo na viagem à fronteira norte em direção à Venezuela e à Guiana, é de completo despovoamento, com floresta amazônica cerrada. Os Pelotões Especiais de Fronteira, no caso das visitas a Sucurucu e a Maturacá, situam-se, podemos dizer, in the middle of nowhere. Se não fossem eles, teríamos uma região totalmente desprotegida, que apenas poderíamos dizer que se trata de terra brasileira. A soberania não é somente uma questão abstrata de demarcação territorial, mas de efetiva presença brasileira. Sem o Exército e as Forças Armadas em geral, as portas estariam abertas para que essa região pudesse se tornar de outras nações, o que, no vocabulário atual, significa "patrimônio da humanidade". Não nos deixemos seduzir por esse jogo ideológico das palavras.

A presença militar nessa região de fronteira é constituída em torno de 26 unidades militares, claramente insuficientes para as reais necessidades do país. Hoje, fala-se muito, a partir de um decreto assinado pelos ministros da Justiça e da Defesa, de ampliação para mais 28 PEF, assegurando a soberania nacional nessas terras indígenas. Há, porém, um componente demagógico nessa discussão, pois os pelotões existentes possuem muitas carências. Não há, atualmente, recursos para a construção desses novos PEF. O que houve foi um ato de desviar a atenção do julgamento da Raposa Serra do Sol, com o intuito de favorecer a demarcação contínua.

O Estado brasileiro nessas regiões é completamente ausente. Ou melhor, a sua presença se faz unicamente graças às Forças Armadas. Toda a região de fronteira amazônica se caracteriza pelos mais diferentes tipos de ilícitos, de tráfico de drogas a desmatamento, passando por contrabando de armas e garimpo. Trata-se, literalmente, da lei da selva. As fronteiras são extremamente permeáveis, pois, por exemplo, a distância entre um pelotão e outro varia de 150 a 300 quilômetros.

O Cimi e a Funai têm propagado a idéia de que o Exército não é necessário, pois os índios defendem a fronteira. Nada de mais falso. Os índios não têm nenhum sentido inato de pátria. Os ianomâmis, por exemplo, vivem em pequenas aldeias, com pouco contato com os civilizados, brancos e caboclos, alimentando-se basicamente de farinha e de pouca caça. Circulam entre fronteiras e são tutelados pela Funai e por missões religiosas que inculcam ainda mais neles o sentido do isolamento, da separação e, mais recentemente, a idéia de nação, distinta da brasileira. Quem defende a fronteira é o Exército.

O que existe são brasileiros índios. São índios que se tornaram brasileiros, o que significa, nas regiões visitadas, que se tornaram brasileiros graças à sua incorporação ao Exército. Nem teriam, não fosse isso, o domínio de nossa língua. Não faz o menor sentido falar de defesa do território nacional, de nossa soberania, sem as Forças Armadas. Quem o faz, na verdade, está fazendo um jogo contra o próprio país. No dizer de um membro da comitiva: são "brasileiros índios" e não "índios brasileiros". Os índios se incorporam voluntariamente ao Exército, que se torna um meio de sua integração ao Brasil. Ganham, em suas próprias tribos, prestígio e melhoram a sua condição de vida. Guardam, também, as suas tradições, voltando às suas aldeias, no interior desse processo de aculturação que os faz brasileiros. É isso que suscita a reação da Funai e do Cimi, que têm como objetivo segregá-los e isolá-los, dentro de um outro projeto político.

Em São Gabriel da Cachoeira, há um batalhão completamente indígena, de diferentes etnias. Em Maturacá, o Pelotão é constituído por indígenas de 22 etnias. Todos uniformizados e bem treinados para a guerra na selva. Segundo os comandantes militares, trata-se dos melhores "guerreiros da selva". Presenciei uma cerimônia militar altamente impactante. É difícil não ser sensível a ela. O local foi em São Gabriel da Cachoeira, numa colina, que dá para o Rio Negro. Lá, a tropa estava perfilada, para uma formatura, com a presença do comandante Militar da Amazônia, o general Heleno. Fazia parte do ritual cantar o Hino Nacional. Naquele ermo do mundo, os soldados indígenas cantavam o hino a plenos pulmões, numa adesão poucas vezes vista. É como se a sua alma falasse através desse canto, dessas palavras, numa irmandade que conferia a todos os presentes uma mesma união, uma união nacional.

Os brasileiros indígenas são índios aculturados, que se sentem brasileiros. Terminam se identificando com os caboclos, que são o resultado da miscigenação de brancos com índios. O caboclo é o nativo da região, e termina servindo, para o indígena, como modelo de integração ao mundo não indígena. É um equívoco conceitual opor índios aos brancos, dentro de uma região que já é o produto de um processo de aculturação e, sobretudo, de miscigenação racial, com casais constituídos de diferentes raças e etnias. O caboclo é fruto de todo o processo histórico brasileiro. Os que se opõem à aculturação e propugnam pelo isolamento visam, na verdade, a se opor a todo o processo histórico que resultou na nação brasileira.

DENIS LERRER ROSENFIELD é professor de filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Comissão Interamericana vai apurar a morte do cadete Lapoente

O jornal O Globo publica no dia 22 de dezembro matéria sobre a apreciação pelo sistema interamericano de direitos humanos do caso que envolve a morte do cadete Lapoente.


Morte do cadete Lapoente chega à corte da OEA

Comissão investigará caso do aspirante que teria sido torturado dentro da Academia das Agulhas Negras

Flávio Tabak

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) decidiu, no dia 9 de dezembro, apurar o caso do cadete Márcio Lapoente da Silveira, morto aos 18 anos durante um treinamento do Exército na Academia Militar das Agulhas Negras, em 1990. Agora, a investigação sobre a morte do cadete tramita na corte internacional, e a Advocacia-Geral da União terá que defender o país no caso.

A família pede a punição dos acusados pela morte do jovem, suspeito de ter sido torturado depois de passar mal durante exercícios. Segundo a petição, o inquérito policial militar do caso "não determinou o responsável pela morte da suposta vítima e foi arquivado". Ainda de acordo com o documento, a comissão da OEA já concluiu, no caso de Eldorado dos Carajás, que "os militares não gozam de independência e autonomia necessárias para investigar de maneira imparcial as supostas violações dos direitos humanos cometidas presumivelmente pela tropa".

Pais consideram decisão uma "vitória"

Como possíveis conseqüências do processo, o Brasil poderá sofrer sanções administrativas na OEA e ser obrigado a pagar uma indenização para a família do cadete. Segundo o grupo Tortura Nunca Mais, é a primeira vez que a OEA analisa um caso que envolve treinamento das Forças Armadas.

- A história do cadete é emblemática. Nenhum caso de tortura ou morte estranha que tenha acontecido dentro das Forças Armadas foi levado para a corte da OEA. Precisamos repensar o tipo de treinamento que é dado aos recrutas - disse a presidente do Tortura Nunca Mais, Cecília Coimbra.

O caso de Lapoente também tramita na Justiça comum. O oficial do Exército Antônio Carlos de Pessoa, acusado de ser o responsável pela morte, pode ser condenado a pagar uma indenização à família. A ação já passou pelo Tribunal Regional Federal e, depois da apreciação de um recurso, será encaminhada ao Superior Tribunal de Justiça. A petição foi levada à OEA por Joss Opie, advogado da organização não-governamental Justiça Global. A mãe do cadete, Carmen Lúcia Lapoente da Silveira, pede uma punição rígida.

- Lutamos há 18 anos pelo reconhecimento de que meu menino foi morto por tortura. Isso tudo é um desgosto para nós. Tive a ilusão de que eles reconheceriam o erro, mas acobertaram tudo. Essa decisão é uma vitória, sempre há um fundo de esperança. Eles estão escondendo oficiais que torturam - afirma Carmen.

O pai do cadete, Sebastião Silveira, que também é militar, conta que a OEA entrou no caso por mérito exclusivo de representantes da Justiça Global:

- Um advogado da Justiça Global ouviu nossos depoimentos e levou o caso para a OEA em 2004. O governo federal será notificado. A própria OEA explica no relatório que houve morte ocasionada por terceiros.

Dezoito anos depois, nenhuma punição

Acusação sustenta que jovem recebeu vários chutes de oficial após passar mal e desmaiar

Dezoito anos após a morte do cadete, nenhum militar foi punido. O advogado da família, João Tancredo, disse que o caso chegou à OEA por causa da morosidade da Justiça brasileira:

- Quando não há mais recursos no Brasil, o que resta é a Corte Interamericana. A questão fundamental é a demora na apuração e a falta de qualquer tipo de punição.

Segundo a acusação, o cadete Márcio Lapoente da Silveira estava em péssimas condições físicas depois de um intenso treinamento, chegando a ser carregado por colegas. Ao ver a cena, o oficial Antônio Carlos de Pessoa teria ordenado que todos continuassem marchando e agredido Lapoente no rosto, na barriga, nas pernas e nas nádegas. Os exercícios continuaram e a vítima apresentou ainda menos vigor físico, com desmaios constantes. Mesmo no chão, Lapoente teria sido chutado. Sem socorro adequado, ele morreu enquanto era levado a um hospital.

Há outros casos de crimes ocorridos no Brasil que chegaram à OEA. A investigação do massacre dos sem-terra de Eldorado dos Carajás, em 1996, e a interpretação da Lei da Anistia que teria beneficiado militares envolvidos em crimes durante a ditadura já foram cobradas pela corte da organização. A Comissão de Direitos Humanos também fez com que o governo do Ceará pagasse indenização de R$60 mil para a biofarmacêutica Maria da Penha, que dá nome à lei que endureceu as penas relacionadas a casos de violência doméstica.

Há outros casos, recentes, de indícios de abusos por parte de oficiais no Rio. Em setembro, o Ministério Público estadual e a Assembléia Legislativa investigaram uma denúncia de que um grupo de recrutas do Batalhão da Polícia Rodoviária Militar, em Niterói, foi torturado. Em junho, três estudantes da Academia das Agulhas Negras morreram enquanto participavam de um treinamento de sobrevivência.

Níger: batalha por recursos minerais

Posta-se abaixo coluna publicada no jornal Folha de São Paulo no dia 22 de dezembro de 2008, sobre a disputa pelo controle dos recursos minerais do Níger.


Uma batalha pelos recursos minerais do empobrecido Níger

Por LYDIA POLGREEN

MONTANHAS AIR, Níger - O único gatilho que Amoumoun Halil tinha acionado até o ano passado era o de sua pistola de vacinação de gado. Nos últimos meses, ele passou a carregar desajeitadamente um velho fuzil Kalashnikov sobre o ombro.
Halil, 40, engenheiro veterinário, é um soldado relutante numa luta por uma bonança improvável em um dos países mais pobres do mundo. A batalha está sendo travada entre um bando de nômades tuaregues, que alegam que a riqueza mineral do subsolo de sua terra está sendo extraída por um governo que lhes dá pouco em troca, e um Exército que descreve os combatentes como traficantes e bandidos.
Trata-se de uma nova frente de batalha na antiga guerra pelo controle da imensa riqueza mineral da África. O deserto do norte do Níger se estende sobre um dos maiores depósitos mundiais de urânio, e a demanda pelo mineral vem aumentando, à medida que o aquecimento global eleva o interesse pela energia nuclear. O urânio poderia render dinheiro suficiente para tirar o Níger da pobreza que leva uma criança em cinco a morrer antes de chegar aos cinco anos de idade. Ou, então, pode resultar em mais uma guerra calamitosa num continente onde os recursos minerais vêm alimentando conflitos há décadas.
Os tuaregues se opõem há anos a um governo que tratam sobretudo com desdém. Mas os rebeldes mais recentes transcenderam as queixas mais comuns, alegando, em lugar disso, que o governo está desperdiçando os recursos naturais do Níger com sua corrupção e atitudes perdulárias. Armados com um site de internet bem-feito e representantes bem articulados na Europa e nos EUA, o movimento vem conquistando simpatia de ocidentais.
E também atrai combatentes de várias origens -não apenas pastores analfabetos, mas universitários, funcionários de organizações humanitárias e até mesmo antigos pacifistas, como Halil. "O urânio pertence a nosso povo; está em nossas terras", disse Halil. "Não podemos deixar que nos roubem do que é nosso por direito."
Quando era menino, Halil sonhava em possuir um enorme rebanho de camelos, como tinha seu pai antes de as grandes secas da década de 1970 exterminarem os animais. Em lugar disso, ele fundou um sindicato de pastores.
Seus esforços fazem parte de uma onda de ativismo cívico que vem varrendo a África nos últimos 15 anos, à medida que o continente tenta se democratizar. Muitos dos governos recém-eleitos são profundamente problemáticos, mas, pelo fato de uma população mais jovem e urbana estar em contato com as novas tecnologias, seus cidadãos são mais bem informados e estão menos dispostos a tolerar a corrupção.
Durante seus deslocamentos pelo país, Halil notou o fluxo de geólogos de França, China, Canadá e Austrália que percorriam as terras de pastoreio dos tuaregues. "Perguntei a mim mesmo: ‘O que nós, tuaregues, ganharemos com isso?’", contou. "Só ficamos cada vez mais pobres."
Em fevereiro de 2007, um grupo de tuaregues armados lançou um ataque ousado contra uma base militar nas montanhas Air. Nascia uma nova insurgência. Intitulando-se Movimento pela Justiça no Níger, o grupo reivindicava o combate à corrupção e que a riqueza gerada por cada região do país beneficiasse à população local.
Para combater a rebelião, o governo isolou o norte do país, devastando sua economia. Observadores internacionais de direitos humanos documentaram violações graves cometidas pelas duas partes. Centenas de pessoas foram mortas e milhares de outras, expulsas de suas terras.
O governo argumenta que o Níger é uma democracia com meios pacíficos de solucionar queixas e afirma que os rebeldes não passam de bandidos e traficantes que há décadas transportam drogas, cigarros de contrabando, gasolina e até cargas humanas de um lado do Saara ao outro. Alguns rebeldes admitem o tráfico para sustentar a rebelião.
Halil assistiu sem participar ao último levante tuaregue, que terminou em 1995 com um acordo de paz. Naquela época, ele era idealista e esperava evitar a violência.
Em junho de 2007, um veículo do Exército explodiu ao passar sobre uma mina dos rebeldes. Moradores de um vilarejo dizem que três idosos foram massacrados pelo Exército, que nega a acusação. Mas a história circulou rapidamente.
Para Halil, foi um sinal de que a não-violência era tolice. Depois de enviar sua filha de dois anos e sua mulher grávida à casa de seus sogros, ele partiu para as montanhas e juntou-se ao crescente exército rebelde.
Ele estava numa missão em junho, quando o som dos rotores de um helicóptero quebrou repentinamente o silêncio do deserto. Ouviam-se havia tempo rumores de que o governo teria comprado helicópteros de ataque, algo que mudaria o conflito de maneira fundamental. Na troca de tiros que se seguiu, 17 rebeldes morreram. Halil conseguiu fugir e foi para a Argélia, onde retomou seus estudos de veterinária. "Não vou abandonar a luta, mas vou continuar com ela usando outros meios", disse.
Os combatentes deixados nas montanhas afirmam que estão lá para ficar.

Assessor de Obma prefere conceito de "segundo mundo"

Entrevista de assessor de Obama prefere conceito de "segundo mundo" do que o de Bric no que circula no jornal "A Folha de São Paulo" de 22 de dezembro de 2008

PARAG KHANNA
Falta ambição para Brasil se tornar superpotência

Para consultor de política externa de Barack Obama, contudo, país influencia destino de superpotências, como EUA e China

NOME ASCENDENTE , o americano de origem indiana crê que Obama terá menos ferramentas para influir no mundo -pela crise e o fracasso militar. Dirige o New America Foundation e é autor de "The Second World -Empires and Influence in the New Global Order" [O Segundo Mundo - Impérios e Influência na Nova Ordem Global].


No novo mundo que espera o presidente eleito Barack Obama, a crise econômica que assola os EUA fará o país ter menos ferramentas não-militares de persuasão em sua política externa, o chamado "soft power" (poder suave, expressão cunhada por Joseph Nye, da Universidade Harvard).
Nesse mundo multipolar, ganham importância os países de "Segundo Mundo", como Brasil e China. E isso não segundo a definição clássica, da Guerra Fria, que usava o termo para os países na órbita da então União Soviética, mas no conceito de Parag Khanna, norte-americano de origem indiana que, aos 31 anos, é a nova estrela entre analistas de política externa.
São países com características de Primeiro e Terceiro mundos. Khanna falou à Folha por telefone. Leia abaixo trechos da conversa:




FOLHA - O sr. defende a redefinição dos termos Primeiro, Segundo e Terceiro mundos. Chama os que fazem parte do grupo do meio de "países em transição", como o Brasil. Pode ampliar o conceito?
PARAG KHANNA - Os países do Segundo Mundo estão presos nesse grupo em termos socioeconômicos. O que os define é como lidam com a globalização, se são capazes de capitalizar as oportunidades do mercado global -como acredito que o Brasil é- ou se são vitimados por esse mercado global -como acredito que muitos países são.
Os países de Segundo Mundo são os que têm divisões internas, com características de Primeiro Mundo e de Terceiro Mundo, como China e Brasil.
Ambos são parte do mesmo grupo, mas a diferença é que a China tem ambições globais. Competir com os EUA e a Europa faz dela uma superpotência. Sim, você pode ter superpotências de Segundo Mundo. Para ser uma, não é preciso ser rico -a China não é rica internamente, mas poderosa.

FOLHA - O fato de um país ter ou não ambição global o define?
KHANNA - Sim. Mas a relação entre eles também é importante. A China e os EUA são superpotências, o Brasil não. Mas, se o Brasil decidir rejeitar as ofertas da China em termos de comércio e investimento, isso vai prejudicar as ambições globais chinesas.
Do mesmo modo, se o Brasil decidir não cooperar com os EUA na América Latina, então as políticas dos EUA para a região serão ainda mais fracassadas do que são hoje. Meu ponto é que países de Segundo Mundo como o Brasil têm influência sobre o sucesso das superpotências, por isso têm poder.

FOLHA - Como esse conceito de Segundo Mundo difere do conceito de Brics [acrônimo criado pelo Goldman Sachs em 2001 que agrupa as potências emergentes Brasil, Rússia, Índia e China], por exemplo?
KHANNA - Há muitos problemas com o conceito de Brics. Em primeiro lugar, ele faz uma projeção para 40 anos, o que não pode ser exato por definição, especialmente no momento atual. Ele olha tão longe que é impossível refutar, mas é impossível validar também. Em segundo lugar, são apenas quatro países. Mesmo quando se diz Brics + 11, como tem acontecido ultimamente, são 15 países. Eu falo de 40 países no Segundo Mundo.
Esse conceito é falho ao não levar em conta diplomacia, estratégias política e militar.

FOLHA - Um dos capítulos mais longos de seu livro o sr. dedica ao Brasil, onde já esteve. Qual sua impressão?
KHANNA - Muito favorável. A força do país está em sua economia diversificada, não só baseada nos recursos naturais mas também muito industrializada e com inovações em alguns setores. Além disso, acho positivo algumas políticas de desenvolvimento do governo. Programas como o Bolsa Família, por exemplo, são inovadores e difíceis de implantar.
Na verdade, não encontrei nada similar, com tamanho sucesso, em nenhum outro lugar do mundo, com exceção talvez da China. Os dois países estão criando um mercado interno muito forte por conta disso.
Por fim, a diplomacia: acho o Itamaraty incrivelmente sofisticado, a maneira com que lida com questões de comércio.

FOLHA - O sr. é um dos defensores do mundo multipolar, em que os EUA perdem poder absoluto em favor de mais participantes no diálogo mundial. Em relatório recente, a comunidade de inteligência norte-americana admite pela primeira vez esse cenário, para 2025. Eles estão finalmente ouvindo o que a intelligentsia vem dizendo há anos?
KHANNA - Você é que está dizendo que eles estão nos ouvindo, mas, se você comparar os ponto-chave deles e os do meu livro, eu escrevi antes (risos). Fui uma das pessoas ouvidas pelo relatório, na verdade. Mas pode ser que eles estivessem atrás no conceito e agora estão chegando lá.

FOLHA - Os EUA estão preparados para esse cenário?
KHANNA - O relatório aponta que em 2025 os EUA ainda serão o país mais poderoso do mundo. Diz também que o mundo será um lugar muito difícil de ser governado, que a noção de comunidade internacional será enfraquecida e que não haverá um líder definitivo.

FOLHA - Mas o sr. diz que os EUA correm o risco de se tornarem um país de Segundo Mundo...
KHANNA - Sim. Se você ligasse a TV agora e assistisse às três maiores montadoras norte-americanas de pires na mão, sendo socorridas pelo governo, discordaria de mim?

FOLHA - Nesse sentido, é bom ou ruim o fato de Barack Obama se tornar o novo presidente?
KHANNA - Bom, principalmente por conta da situação econômica e de como ela afetará o poder de ação dos EUA no mundo. Com o agravamento da crise, será cada vez mais difícil contar com corporações, ONGs, entidades beneficentes e assistência internacional -instrumentos de "soft power" que a política externa norte-americana usa para compensar a estratégia militar, que é um fracasso.

FOLHA - Que tipo de capitalismo sairá dessa crise?
KHANNA - Um capitalismo como o europeu, isso é inegável. Um modelo de capitalismo de Estado, bem regulado, mas bem dirigido, com grandes e importantes indústrias.

FOLHA - O sr. é um dos consultores do presidente eleito para o Sudeste Asiático. O que acha da promessa que fez na campanha, de ser mais agressivo em relação ao Paquistão? Prometeu, por exemplo, fazer ataques pontuais dentro do país.
KHANNA - Esses ataques já estão acontecendo sob George W. Bush, então não vejo uma grande mudança de tática. Não acho que será tão controverso assim, pelo menos não em termos de realidade política americana.

domingo, 21 de dezembro de 2008

Paul Kennedy e o Goveno Obama

0 Estado de São Paulo publica o seguinte texto de Paul Kennedy:
E depois vem o resto do mundo
A economia e as relações com China, Rússia e Oriente Médio são prioridades de Obama para 2009

Paul Kennedy* - O Estado de S.Paulo
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- Já ficou perfeitamente claro, ao menos para este observador, que a equipe de Obama, por mais esperta, experiente e maravilhosa que seja, não pode concretizar todas as esperanças nela depositadas por americanos jubilosos, mas angustiados, e por multidões igualmente angustiadas, mas esperançosas no exterior.

Este próximo presidente, no começo ousado e inspirador em seus discursos, depois cauteloso, reflexivo e avisado em suas reconsiderações, tem o temperamento para ser um grande líder. Ao mesmo tempo, porém, ele enfrentará uma lista extraordinária de problemas e desafios no momento em que os Estados Unidos e o mundo caminham para 2009. Barack Obama precisa saber também que terá de priorizar: ele não poderá ser todas as coisas para todas as pessoas, não poderá concretizar todas as esperanças, não poderá enfrentar todos os males da Terra. Se não tiver um foco, estará perdido.

Duas áreas pedem uma atenção imediata e constante da administração Obama. Ele terá de dedicar uma boa parte de suas energias para resgatar e recuperar a economia americana e as redes comerciais e financeiras globais a ela interligadas; sem essa recuperação, estaremos todos com um problema grave. Mas Washington não pode se concentrar somente em assuntos econômicos, porque terá de dar uma grande atenção também à política global, isto é, às relações com uma China suscetível e em ascensão, com uma Rússia suscetível e cada vez mais debilitada (acreditem ou não), com o barril de pólvora do Sul da Ásia, os pavorosos campos minados árabes. Nosso novo presidente terá de avançar para o futuro com Adam Smith e John Maynard Keynes numa mão, e Carl von Clausewitz e sir Halford Mackinder na outra.

Mas se um plano de recuperação socioeconômica nacional, mais economia global e geopolítica de grande potência global estão no centro das políticas de primeiro mandato de Obama, quais questões teriam de ser relegadas para segundo plano e empurradas para a periferia? A quais assuntos uma nova administração americana bem intencionada, enormemente otimista e altamente popular não poderá dedicar muita atenção ou recursos, embora tenha de reconhecer sua importância?

A lista é longa e o espaço curto, por isso nos limitaremos às quatro áreas de política que, por relevantes que sejam para seus protagonistas, provavelmente não ficarão no topo da agenda da administração Obama. Todas são importantes, esta é minha impressão, mas duvido que qualquer uma delas receba atenção significativa. Como seria bom se eu estivesse enganado!

Primeiro, América Latina. Sempre me espantei com a pouca atenção que os Estados Unidos dedicam ao resto do Hemisfério Ocidental, particularmente a nosso vizinho do sul, o México, mas também a nações importantes como Brasil e Argentina. Minhas visitas a esses três países nos últimos anos sugerem que existe um anseio generalizado em todo subcontinente por uma relação respeitosa, equilibrada, com seu primo ianque. Mas será que Washington dará muita atenção, além de uma ou duas visitas presidenciais simbólicas? Duvido. Nós não damos à América Latina a atenção que ela merece e seria admirável se Obama pudesse romper essa maneira de pensar.

Segundo, África. Isso soa ridículo, eu sei. Toda a retórica da campanha do novo presidente sugere que o destino do continente onde ele tem raízes familiares está perto de seu coração e mente. Pode ser. Mas precisamente o que a nova administração pode fazer para auxiliar a África é um grande enigma. A melhor ajuda e mais imediata seria promover um forte aumento dos preços mundiais das commodities - café, amendoim, borracha, petróleo, madeiras nobres, fosfato - que reverteria o declínio de suas exportações, proporcionaria moedas fortes e salvaria empregos. Mas a depressão mundial corrente torna isso improvável - e os Estados Unidos preferem preços baixos para as commodities porque importam muitos desses produtos.

Também seria maravilhoso se a administração Obama pudesse milagrosamente trazer paz e segurança para regiões conflagradas que, em pura extensão, são provavelmente duas vezes maiores que a Europa. Nenhuma outra potência externa poderia fazê-lo. Um comprometimento por dez anos de 250 mil soldados americanos, com toda retaguarda logística, poderia consegui-lo. Qual a possibilidade disso? Seria mais fácil um porco voar. Num período de dois ou três anos, até onde declinará a importância da África Central para a nova administração? Não estou sendo cínico, apenas realista. Se houver uma futura grande crise envolvendo Ucrânia ou Taiwan, quando é que o próximo subsecretário de Estado para a África conseguirá falar com o presidente, se é que vai conseguir?

Terceiro, a reforma dos sistemas da Organização das Nações Unidas e de Bretton Woods. Bem, boa sorte. Todos podem ver que as estruturas internacionais econômicas, financeiras, políticas e de segurança de 1944 e 1945 estão defasadas neste século; na verdade, elas provavelmente já estavam defasadas em 1980. Um sistema de segurança global em que somente 5 de 192 nações têm privilégios especiais de participação permanente e de veto (o Conselho de Segurança da ONU) e 3 desses 5 estão vivendo um relativo declínio secular prolongado - Grã-Bretanha, França e, convenhamos, a Rússia farsesca de Putin - é um absurdo.

Como os Cinco Permanentes não abrirão mão de seus poderes, ao menos poderiam permitir que Índia e Brasil entrassem no seu clube. Mas isso provavelmente não terá destaque na lista de urgências da nova equipe administrativa de Washington. Tampouco poderá haver alguma mudança significativa no equilíbrio de poder no Banco Mundial e no Fundo Monetário Internacional (FMI), espertamente instalados na Rua 14 NW no centro de Washington; os EUA gostam da situação atual gerada por Bretton Wood. Evidentemente, Obama encorajará o Banco Mundial a ajudar os 60 países mais pobres do mundo, e instigará o FMI para ser gentil com a Islândia. Mas esse não será um item de peso. Quanto a outras reformas da ONU - melhor cooperação para manutenção da paz, melhoria de técnicas de desenvolvimento -, sim, ótimo, mas não precisamos nos preocupar com isso.

Quarto, Europa, a União Européia (UE), relações transatlânticas em geral. Essa conclusão pode provocar reações em Berlim, Roma, Londres e Paris (o que não provoca reações em Paris?), mas suspeito que o êxtase pan-europeu provocado por Obama - lembram-se dos 200 mil fãs no Portão de Brandemburgo? - não levarão a uma identificação recíproca da Europa como a estrela-guia da futura estratégia e política externa americana. A Europa está bem como está. Ela não é um problema, como China, Rússia, Oriente Médio, Irã. Ela é cada vez menos importante como ajuda nos campos estratégico e militar. Ela é definitivamente importante em termos de coordenação econômica, mas esta é feita melhor de Nova York que do Distrito de Colúmbia. Em poucas palavras, o apreço extraordinário que a Europa tem por Obama provavelmente não será correspondido por sua própria estima pela Europa, embora possivelmente ouviremos, nos próximos anos, muitos belos discursos sobre a relação sólida e duradoura. Mas o novo presidente terá preocupações muito mais importantes.

Portanto, os especialistas estão certos: salvar a economia americana e preservar a ordem geopolítica terão de ser as prioridades gêmeas da nova administração Obama. O resto, mesmo campos importantes como África, América Latina, Europa e ONU, vem um pouco atrás. Aqueles maravilhosos e cínicos diplomatas franceses do passado reconheceriam isso. Como era mesmo aquela expressão deles? Gouverner c?est choisir: governar é escolher. Sempre foi assim.



*Paul Kennedy é professor de história na Universidade de Yale e autor, entre outros, de Ascensão e Queda das Grandes Potências (Campus). Atualmente, está escrevendo uma história da 2ª Guerra Mundial

Debate sobre a flexibilização do Trabalho II

Complementando o debate do jornal Folha de São Paulo sobre a flexibilização do trabalho como agenda de 2009:

ENTREVISTA

AMAURI MASCARO NASCIMENTO

Flexibilização pode ocorrer sem traumas
Professor da USP diz que caminho para afrouxar leis do trabalho já começou

Nascimento avalia que momento é propício para "pacto social" no Brasil, com discussão entre governo, sindicatos e empregadores



O jurista Amauri Mascaro Nascimento, professor titular da Universidade de São Paulo especializado em direito do trabalho, afirma que a crise internacional e seus efeitos para o mercado de trabalho são uma oportunidade de fazer um "pacto social" no país e discutir a proteção ao emprego e como dar assistência aos trabalhadores desempregados. "Só os interessados, mediante uma discussão, que será também política, poderão chegar a um meio-termo", disse. Veja os principais trechos da entrevista.



FOLHA - A redução da jornada de trabalho, a tentativa de adiar reajustes já concedidos e a suspensão temporária do contrato de trabalho são ações positivas para contornar demissões em meio à crise?
AMAURI MASCARO NASCIMENTO - Comparando os efeitos de uma dispensa do empregado e de uma suspensão do contrato de trabalho, essa suspensão é menos traumática do que uma dispensa. Eu proporia algo um pouco mais amplo do que está na lei. [Durante a suspensão do trabalho], o trabalhador receberia um seguro-desemprego pago pelo governo e mais o que for estipulado entre o sindicato e o empregador. Assim, o que ele ganharia não seria tão pouco e daria, em parte, para ele suportar os efeitos da crise.

FOLHA - As demissões podem ser contidas com negociações diretas entre sindicatos e empresas, em cada fábrica, ou deveriam ser alvo de uma política de Estado?
NASCIMENTO - Melhor seria uma política de Estado. Seria muito oportuno no Brasil o que nunca se fez aqui, um pacto social entre as centrais sindicais, o governo e as representações patronais. Nesse pacto social, que muitos países já fizeram, ficariam estabelecidos os critérios dessa política para a fase que nós vivemos, e isso acabaria com as divergências e diminuiria a tensão dos conflitos.

FOLHA - Como é possível proteger os direitos do trabalhador e cumprir a reivindicação das empresas de não elevar o custo do trabalho?
NASCIMENTO - Hoje, com o problema que surgiu da crise, estamos levantando de novo essas grandes questões. Primeiro, saber se realmente o custo do trabalho é alto ou não é. Segundo, saber se a legislação trabalhista precisa ou não ser reformada e de que maneira. Essas questões vão continuar em debate no próximo ano, até que se encontre uma saída razoável. A proteção do trabalho é uma idéia do direito do trabalho. Então as duas respostas devem ser dadas com a preocupação com o trabalhador.

FOLHA - O sr. acha que a legislação trabalhista deveria ser flexibilizada?
NASCIMENTO - Ela já está flexibilizada. Acordos de redução de salário com sindicatos podem ser feitos no Brasil. O banco de horas é uma flexibilização, as férias coletivas estão previstas na CLT (Consolidação das Leis do Trabalho). Já houve outras formas de flexibilização.

FOLHA - O sr. vê essas flexibilizações como positivas?
NASCIMENTO - Elas aconteceram. Ninguém nem percebeu. Quando se levanta a discussão sobre flexibilização, é preciso pensar que já houve uma fase, que continua até hoje, de grande flexibilização das leis brasileiras, e que isso não trouxe nenhum trauma para as relações de trabalho. Basta enumerar essas medidas e dezenas de outras: a mulher não podia fazer trabalho noturno, hoje pode.

FOLHA - O sr. acha que o caminho da flexibilização deve ser aprofundado?
NASCIMENTO - É um aspecto delicado. Para os empresários, o custo do trabalho é alto. Para os trabalhadores, o salário é baixo. Por absurdo que pareça, os dois têm razão. Acontece que o salário é baixo em proporção a salários em dólar, mas, se você for ver o percentual que a empresa no Brasil tem que pagar acima do salário por uma série de encargos, acaba sendo um percentual maior que o de outros países. A maneira de resolver a questão é com um pacto social, uma discussão entre governo, sindicatos e representantes patronais.

Debate sobre a flexibilização do Trabalho I

Eis o debate sobre a flexibilização do trabalho publicado pela Folha de São Paulo em 21 de novembro de 2008.

ENTREVISTA

RICARDO ANTUNES

Negociação não deve se sobrepor à lei
Para especialista da Unicamp, não é aceitável retirar direitos do trabalhador

Antunes diz que empresas querem "flexibilizar para baixo" a CLT e transferir aos trabalhadores e ao Estado o ônus da crise que criaram

VERENA FORNETTI
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Ricardo Antunes, professor titular de Sociologia do Trabalho da Unicamp, afirma que as negociações entre sindicatos e empregadores para flexibilizar direitos e garantir empregos são falaciosas. Para o professor, medidas como a suspensão temporária do trabalho, conhecida como "layoff", criam apenas a porta de saída para o desemprego e representam um período em que o funcionário sobrevive com uma semi-remuneração.

FOLHA - O sr. acha que a própria CLT [Consolidação das Leis do Trabalho] permite flexibilizar relações de trabalho, por exemplo, por meio da suspensão temporária do contrato?
RICARDO ANTUNES - A CLT nasceu em 1943 como uma consolidação de leis, enfeixando um conjunto de medidas que compreendiam direitos do trabalho. Ela estabelece um patamar mínimo legal sobre o qual é possível fazer uma negociação entre capital e trabalho, mas nunca rebaixando o patamar dado pela CLT. Esse é o primeiro ponto: ela é flexível para cima, a partir desse patamar que vale para o conjunto da classe trabalhadora. A partir disso, é possível fazer um conjunto de negociações que possam, por exemplo, ampliar direitos. O problema é que as empresas, em uma situação de crise forte, usam um instrumento que é a burla, ou a flexibilização para baixo, da CLT. A CLT permite uma flexibilização para cima. O que as empresas querem agora é usar um mecanismo de burla, como fazem com muita freqüência na legislação social brasileira, de tal modo que elas, responsáveis pela crise, transfiram para os trabalhadores e também para o Estado o ônus da crise. E os lucros permanecem preservados. Ou seja, os responsáveis pela crise são os únicos que não querem pagá-la.
FOLHA - Qual é a sua opinião sobre as negociações em curso entre sindicatos e empregadores?
ANTUNES - A CLT permite que haja um período de cinco meses [conhecido como "layoff"] que permite uma fase em que o trabalhador poderia buscar qualificação. É muito diferente usar esse mecanismo como uma porta de saída do trabalhador do emprego para o desemprego. O problema que está se colocando agora é dessa ordem. A flexibilização das leis trabalhistas tem sido colocada como um imperativo dos capitais em escala global. No Brasil, isso vem acontecendo também há um bom tempo, como se percebe na proposta em que se quer fazer com que o negociado se sobreponha ao legislado. Por exemplo, existe uma lei, uma jornada de trabalho definida, mas, se as empresas negociarem com os sindicatos um aumento ou uma redução dessa jornada de trabalho, o negociado passará a se sobrepor ao legislado. E as empresas querem isso porque sabem que, em um momento difícil, os trabalhadores temem flagelo maior, o desemprego. Em situação adversa, os trabalhadores podem abrir mão de direitos para garantir o mais elementar, que é o trabalho. Mas isto é muito negativo para os trabalhadores e, por isso, deve ser rejeitado.
FOLHA - E a sua opinião sobre as propostas em curso para flexibilizar as leis do trabalho?
ANTUNES - As propostas que estão em curso, como aquela apresentada pelo [secretário do Trabalho e Relações do Trabalho de São Paulo] Guilherme Afif Domingos e muitas outras, não trazem nenhuma vantagem real para os trabalhadores, mas grandes desvantagens. Não é verdade que, fazendo esse tipo de concessão, o emprego estará garantido. Provavelmente os trabalhadores vão ganhar um estágio de cinco a dez meses de semi-remuneração, que é o caminho abrandado do desemprego. Isso não é bom para a classe trabalhadora. E não é aceitável. E em todas as experiências de flexibilização ocorridas -veja o exemplo inglês ou norte-americano- quem acaba perdendo é a classe trabalhadora

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Encontro do Reitor da Unb com Cançado Trindade

Cançado Trindade diz que tortura é crime contra a vida, portanto imprescritível

Regina Bandeira
Da Secretaria de Comunicação da UnB

Prestes a se mudar para a Holanda, onde a partir de fevereiro assumirá assento na Corte Internacional de Justiça, a chamada Corte de Haia, o ex-presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos e professor de Direito Internacional da UnB, Antônio Augusto Cançado Trindade, de 61 anos, defendeu a criação de uma espécide de tribunal da verdade para o julgamento dos crimes ocorridos no governo militar.

"Já expus minha opinião sobre isso: não há anistia para tortura.; a auto-anistia não pode abarcar um crime contra a humanidade", afirmou Cançado Trindade, duranteaudiência pública na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Senado, nesta quinta-feira, 18, sobre o recente debate travado entre o Ministério da Justiça e da Defesa em relação a aplicação da Lei da Anistia. "Não entendo esse imbróglio; para mim, a questão é cristalina", complementa.

Em visita de cortesia ao reitor da UnB, José Geraldo de Souza, nesta sexta, 19, o jurista avaliou as chances do Brasil conquistar uma cadeira no Conselho de Segurança da ONU. "Temos toda a chance de ocuparmos a vaga latino-americana, atualmente ocupada pelo Panamá", afirmou Cançado Trindade.

Eleito com um número expressivo de votos - 163 dos 192 países-membros da Assembléia Geral da ONU, o jurista brasileiro também recebeu 14 dos 15 votos do Conselho de Segurança da ONU, dos quais apenas os Estados Unidos se abstiveram.

Para José Geraldo, especialista em Direitos Humanos, a presença de Cançado Trindade na corte internacional fortalece a candidatura brasileira, além de ser um orgulho para a universidade. "Ela marca a densidade do pensamento jurídico brasileiro na Assembléia das Nações Unidas", afirmou.

Durante encontro com o reitor, o jurista reiterou que pretende continuar defendendo os direitos humanos em Haia e criticou as novas regras impostas por países do hemisfério norte criminalizando a migração não documentada. "Os mesmos países que se beneficiaram das fronteiras abertas estão, agora, violando princípios dos direitos humanos", disse.

O jurista também defendeu maior diálogo da Justiça com outras áreas do conhecimento. "Nunca me contentei apenas com documentos", disse o juiz, ao defender a participação de peritos, psicólogos, sociólogos, antropólogos e das próprias vítimas nos julgamentos. "São informações fundamentais para avaliarmos o dano moral de pessoas em casos como os massacres ocorridos recentemente em alguns países latino-americanos" , argumentou o jurista.

Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos por duas vezes, Cançado Trindade revelou que sua gestão sempre foi voltada para o fortalecimento da participação de acusados e vitimados no tribunal. Nesse sentido, o juiz reformou o regulamento da Corte em 2000, permitindo o acesso direto dos indivíduos à corte e a participação dos envolvidos em todas as etapas do procedimento até o julgamento.

"Até então, as pessoas tinham de se apresentar através de um órgão distinto, a Comissão Interamericana, sediada em Washington, que fazia a triagem das denúncias, dos argumentos e das provas", explica Cançado Trindade.

JUSTIÇA - Devotado aos direitos humanos, o jurista revelou o sentimento de satisfação e enriquecimento encontrado nos tribunais internacionais. "A defesa dos direitos humanos me permitiu entender que nossos protegidos são nossos protetores - eles nos ajudam a dar sentido à própria existência", concluiu.



Antônio Augusto Cançado Trindade foi eleito juiz da Corte Internacional de Justiça no dia 6 de novembro de 2008. Ph.D. (Cambridge) em Direito Internacional; Juiz e Ex-Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos; Professor Titular da Universidade de Brasília e do Instituto Rio Branco; Ex-Consultor Jurídico do Ministério das Relações Exteriores do Brasil; Membro Titular do Institut de Droit International e do Curatorium da Academia de Direito Internacional da Haia; Membro das Academias Mineira e Brasileira de Letras Jurídicas. O jurista tomará posse no dia 6 de fevereiro em Haia, na Holanda, mas o primeiro julgamento do ano está marcado para um mês depois.

Genocida de Ruanda recebe prisão perpétua

O jornal O Globo do dia 19 de dezembro de 2008 publica a seguinte notícia sobre Tribunal Penal Internacional para Ruanda.


Genocida de Ruanda recebe prisão perpétua

Tribunal internacional condena Théoneste Bagosora, mentor do massacre que deixou 800 mil mortos em 1994

ARUSHA, Tanzânia. Numa decisão considerada por promotores como a mais importante desde o julgamento de líderes da Alemanha nazista em Nuremberg, em 1945 e 1946, o Tribunal Penal Internacional para Ruanda (TPI-R) condenou ontem à prisão perpétua Théoneste Bagosora, mentor do genocídio que deixou 800 mil mortos no país em 1994, durante cerca de cem dias de massacre.
O tribunal, baseado em Arusha, na Tanzânia, condenou o ex-coronel, hoje com 67 anos, por coordenar uma complexa conspiração que levou ao genocídio. Na sentença, ele é acusado de passar anos organizando e armando a milícia Interahamwe, da etnia hutu, para o assassinato de integrantes da minoria tutsi e de hutus moderados.
Bagosora, que sofreu 11 acusações, também foi condenado por ter ordenado a morte de políticos, como o ex-primeiro-ministro moderado Agathe Uwilingiyimina, e de dez belgas integrantes da força de paz da ONU, num movimento que acabou levando à saída da organização do país.
Cécile Aptel, membro sênior da Promotoria do TPI-R, ressaltou que o resultado serve de exemplo para outros criminosos de guerra. Para Barbara Mulvaney, outra promotora, a decisão foi histórica.
- Foi um dos veredictos mais importantes de todos os tempos, pois o conjunto do trabalho, em documentos transcrições, em vídeos, fornece detalhes do planejamento e da organização do genocídio - disse. - Também finalmente encerra as alegações de gente que ainda nega que houve genocídio ou nega que tenha sido planejado. Ninguém mais pode afirmar isso.

Ex-coronel coordenou distribuição de armas e facões

É a primeira vez que o tribunal de Ruanda condena alguém por organizar os assassinatos. Junto com Bagosora, os ex-comandantes militares Anatole Nsegiyumva e Alloys Ntabakuze também foram condenados à prisão perpétua por crimes contra a Humanidade e crimes de guerra. O cunhado do ex-presidente Juvenal Habyarimana recebeu 20 anos de prisão por seu envolvimento no genocídio.
Segundo a acusação, Bagosora assumiu a chefia política e militar de Ruanda depois que o avião do presidente Juvenal Habyarimana, um hutu, foi derrubado sobre o aeroporto de Kigali em abril de 1994, deflagrando o conflito numa onda de violência que se espalhou da capital para o resto do país e só terminou três meses depois.
Bagosora foi acusado de ter organizado a distribuição de armas e facões usados durante o genocídio. Soldados e policiais encorajavam a população civil a participar. Em alguns casos, civis hutus eram obrigados por militares a matar vizinhos tutsi, em troca de dinheiro ou vantagens.
Segundo a ata da acusação, o ex-coronel disse, em 1993, ao se retirar das negociações com líderes tutsi, organizadas na Tanzânia, que voltaria a seu país para "preparar o apocalipse", numa referência ao genocídio. Bagosora, que alegou inocência, nega ter pronunciado as palavras e vai apelar da decisão, segundo seu advogado.

O ex-coronel está preso desde 1996, quando foi detido em Camarões, para onde fugiu depois do massacre.

Rivalidade de tutsis e hutus remonta à época colonial

A luta entre tutsis e hutus na África Central vinha ocorrendo desde que a Bélgica, ex-metrópole, perdeu o controle da região, décadas antes do genocídio.
Os dois grupos étnicos são parecidos - falam a mesma língua, vivem nas mesmas áreas e seguem as mesmas tradições. No entanto, tutsis são geralmente mais magros e mais altos do que os hutus.
Os belgas consideravam os hutus inferiores aos tutsis, grupo que por 20 anos desfrutou de melhores empregos e educação. O ressentimento cresceu ao longo do tempo. Quando a Bélgica se retirou do país e Ruanda foi declarada independente, em 1962, os hutus voltaram a ter poder e, nos anos subseqüentes, os tutsis foram retratados como bode-expiatório de praticamente todas as crises por que passou o país.

Os holofotes trazidos por Hollywood

O genocídio que marcou um dos capítulos mais sangrentos da história africana tornou-se mais trágico por causa do descaso com que foi acompanhado pela comunidade internacional. A ONU se retirou depois da morte de capacetes azuis e o conflito só ganhou mais notoriedade graças a filmes como "Sometimes in April" e "Hotel Ruanda", com Don Cheadle, indicado a 3 Oscars. O longa é inspirado na história real de Paul Rusesabagina, gerente de hotel que abrigou mais de mil refugiados tutsis durante o massacre.
Na época do lançamento, o diretor, Terry George, alertou que apesar de jogar luz sobre o massacre, tragédias do gênero continuavam acontecendo e sendo tratadas com descaso em países como Congo e Sudão.

Cúpula dos países latino-americanos

Editorial da Folha de São Paulo do dia 19 de dezembro faz um balanço da cúpula de Estados latino-americanos que ocorreu nesta semana na Bahia.


Equilíbrio difícil

TERMINOU em saia justa, para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o ciclo de reuniões entre líderes latino-americanos ocorrido na Bahia. Cercado de "bolivarianos" por todos os lados, o brasileiro teve de suportar calado as perorações contra o pagamento de dívidas externas -inclusive as contraídas com o Brasil.
Se não resultaram em nada de concreto, como de hábito, os encontros num resort baiano, chamados de "multicúpulas", serviram para explicitar a peculiaridade da posição brasileira na América Latina. Ao mesmo tempo em que abriga uma cúpula onde se propaga a catilinária antimercado e anti-Estados Unidos, o país anfitrião acaba sendo vítima do mesmo discurso.
Não haveria de ser diferente. Por uma série de motivos -das opções políticas tomadas pelos seus governantes à relativa diversificação e prosperidade de sua economia-, o Brasil se afastou do substrato que favorece o populismo na região. O respeito aos contratos e às instituições, em meio à importância crescente do mercado, caracteriza uma das transformações da política brasileira nas últimas décadas.
Parte desse processo, a mais recente onda de expansão dos interesses empresariais brasileiros começa a despertar incômodo parecido -em menor escala- ao propiciado pelas multinacionais americanas e européias no passado. Os apelos do governo Lula, no sentido de que nosso "imperialismo" seria mais suave que o dos outros, têm sido inócuos.
A tentativa de criar uma OEA paralela na reunião da Bahia é apenas uma anedota -pois carece de fundamento jurídico e está repleta de impasses políticos- que reflete a mesma contradição. A seguir-se a mesma lógica, uma "organização" em que estão todos menos os EUA e o Canadá poderia ser o prenúncio de uma outra, de que o Brasil, que insiste em cobrar o que lhe é devido e ainda espalha empresas pela região, também seria excluído.
O próprio peso conferido por Brasília à questão cubana deveria diferenciar-se ainda mais da estridência dos presidentes Hugo Chávez e Evo Morales -e do modo unilateral de enxergar o tema ecoado na nota publicada na Bahia. A dissolução do impasse entre a ditadura cubana e o governo americano é um objetivo de importância relativa para a paz regional, mas não é uma prioridade para a política externa brasileira.
O amadurecimento diplomático do Brasil já permite que o país trate com eqüidistância esse litígio. O bloqueio econômico contra a ilha, associado a outros mecanismos do gênero, é uma violência praticada pelos EUA. Mas não é possível ignorar as atrocidades cometidas ao longo de meio século pelo regime dos Castro, a única ditadura -tão impiedosa com dissidentes como foi a de Pinochet no Chile- que ainda sobrevive no continente.
Em resumo, um equilíbrio cada vez mais difícil e complexo se anuncia na política do Brasil para a América Latina -e o motivo é o relativo destaque do desenvolvimento do país na chamada era da globalização.

Documento do Senado americano sobre desrespeito do governo aos Direitos Humanos

Posta-se abaixo coluna publicada no jornal O Globo do dia 19 de dezembro de 2008, sobre o desrespeito aos direitos humanos, ocorrido durante o governo Bush.


Infâmia

Merval Pereira

NOVA YORK. Uma das questões mais emblemáticas da mudança de comando no governo dos Estados Unidos, o fechamento da prisão de Guantánamo e o fim da tortura como método oficial de interrogatório a presos da guerra ao terror, tornou-se ponto central da discussão política nos últimos dias, com a divulgação de um documento de uma comissão do Senado americano. O documento contém acusações frontais de que o desrespeito à Convenção de Genebra foi aprovado pelo presidente George W. Bush, e a autorização para que técnicas de afogamento fossem usadas nas prisões de Guantánamo e Abu-Grahbi partiram diretamente do ex-secretário de Defesa Donald Rumsfeld.
Ao mesmo tempo em que o relatório foi divulgado, dois outros posicionamentos vieram a público. O presidente eleito, Barack Obama, reafirmou a disposição de fechar Guantánamo e proibir a tortura, enquanto o vice-presidente Dick Cheney defendeu em um programa de televisão a tortura como maneira eficiente e rápida na luta contra o terrorismo.
Também o presidente Bush, em outra das muitas entrevistas que vem dando, tentando reescrever uma história que tudo indica será desfavorável ao seu período de governo, disse que o fato de não ter havido mais nenhum ataque terrorista ao território americano desde 2001 é prova de que o país está mais seguro e que a política antiterror de seu governo está correta.
Assim como o presidente Bush - e durante a campanha presidencial, também a candidata republicana, a vice Sarah Palin - avocou a si em diversas ocasiões a representação da vontade divina na luta contra o terror, o presidente eleito Barack Obama declara-se admirador do teólogo protestante Reinhold Niebuhr, um de seus "filósofos favoritos".
Considerado um dos mais importantes intelectuais religiosos, ligado ao grupo evangélico Igreja Unida de Cristo, ensinou durante mais de três décadas em um seminário em Nova York e hoje é nome de rua na cidade.
Fundador de um grupo anticomunista chamado Ação Democrática de Americanos, ele apoiou a intervenção dos EUA na Segunda Guerra Mundial, condenou o bombardeio sobre Hiroshima e Nagasaki, mas depois admitiu que a ação fora necessária para conter a União Soviética.
Niebuhr foi um ativista contra a atuação americana no Vietnã. Seu "realismo cristão" o levava a reconhecer o que chamava de "a persistência do pecado" e criticava quem "usava o mal para evitar o mal maior". Para Obama, lendo Niebuhr, aprende-se que, se é verdade que o mal está sempre presente, sua persistência não pode servir de desculpa para não agir.
Em comentários que parecem dirigidos a Bush, Niebuhr dizia que "pretender interpretar a vontade de Deus é presunção". E advertia que "causas nobres provocaram conseqüências cegas e resultados moralmente problemáticos".
É o que o relatório do comitê bipartidário sobre assuntos militares do Senado confirma, afirmando que os abusos aos direitos humanos dos prisioneiros em Guantánamo, Abu-Ghraib, no Afeganistão e nas prisões secretas da CIA foram diretamente decididos pela alta cúpula do governo, a começar pelo ex-secretário de Defesa Rumsfeld.
As técnicas de interrogatórios utilizadas teriam sido ensinadas por agentes chineses durante a Guerra da Coréia, e foram utilizadas pela primeira vez de maneira sistemática e oficial, pelo menos até 2004. Nesse ponto, o relatório ajuda o presidente eleito Obama, que escolheu para permanecer no cargo o atual secretário de Defesa Roberto Gates, que assumiu em lugar de Rumsfeld no segundo mandato.
Toda essa operação já havia sido denunciada em um livro que foi escolhido pela "New York Times Book Review" como um dos dez melhores do ano. "The Dark Side" ("O lado escuro") da jornalista Jane Mayer da "New Yorker", já foi citado aqui na coluna quando de seu lançamento e é realmente formidável trabalho de investigação jornalística, agora confirmado pelo relatório do Senado.
Ele conta como a guerra ao terrorismo se voltou contra os próprios ideais democráticos dos Estados Unidos. A tortura como tática de obtenção de informações mais rápidas que ajudassem no trabalho de inteligência militar, defendida estes dias por Cheney.
O livro ressalta que somente em junho de 2004, por decisões da Suprema Corte, a lei americana passou a ser válida também para o território de Guantánamo, e os prisioneiros passaram a ter o direito de serem representados por advogados diante de um "julgador neutro".
O livro de Jane Mayer tem uma passagem que mostra bem como a distorção das palavras pode ser a base de uma ação do governo para se defender, confirmada pelo relatório do Senado. E a que ponto de esquizofrenia chegaram algumas autoridades ligadas diretamente à Casa Branca
Ao assumir o posto de principal conselheiro legal do presidente no Office of Legal Counsel, o segundo cargo na hierarquia do Ministério da Justiça dos Estados Unidos, o jovem advogado Dan Levin foi obrigado a justificar legalmente os interrogatórios, descaracterizando a tortura.
Um documento anterior ampliara tanto o conceito de tortura que a legitimara, tornando-se um escândalo. Procurava-se agora um trabalho mais "profissional". Levin se dedicou a tentar encontrar nuances semânticas entre palavras como "dor"ou "sofrimento", para definir até onde os interrogatórios poderiam ir.
E, numa atitude extrema, decidiu se submeter aos mesmos tratamentos dados aos presos de Guantánamo, para avaliar na própria pele até onde poderia chegar "o sofrimento" humano.
Agora, o futuro ministro da Justiça, Eric Holder, terá pela frente a delicada tarefa de desmontar toda a parafernália jurídica criada no governo Bush para justificar os abusos aos direitos humanos, e decidir se processa criminalmente as autoridades que comandaram essa situação infamante na maior democracia do mundo.

Plano de Defesa Nacional II

Editorial do jornal O Globo fala sobre a nova estratégia de defesa nacional.


Poder dissuasório

19/12/2008

O Estado brasileiro tem a responsabilidade de proteger e preservar a Amazônia, de zelar pela integridade de imensas riquezas minerais - como as províncias petrolíferas no oceano, incluindo as do pré-sal - e de vigiar com a atenção devida todas as fronteiras. É inegável que o principal instrumento para isso - as Forças Armadas - não têm hoje condições de fazê-lo adequadamente, devido a uma série de limitações. Nesse contexto, a Estratégia Nacional de Defesa, assinada pelos ministro Nelson Jobim e Mangabeira Unger, da Defesa e da Secretaria de Assuntos Estratégicos, é um importante instrumento para que o país recupere o poder de dissuasão compatível com sua importância geopolítica e econômica.
Articula-se com o plano um acordo a ser assinado com a França, prevendo inicialmente a compra de submarinos nucleares e, futuramente, a transferência de tecnologia para sua fabricação em nosso país. O submarino de propulsão nuclear é o armamento indicado para guarnecer um litoral vasto como o brasileiro devido à sua capacidade de operar submerso por longos períodos. O governo brasileiro pretende aumentar a prospecção e o aproveitamento de jazidas de urânio, além de construir novas usinas nucleares para fins civis. Aliás, nada disso muda o perfil do Brasil como um país pacífico, que busca acima de tudo a resolução de conflitos pela via do diálogo e da diplomacia. Mas entendem as autoridades, com acerto, que devem ter os instrumentos necessários para reagir a ameaças de qualquer tipo ao nosso território, população e riquezas naturais.
Convém frisar que o país está num continente em que sobrevivem organizações guerrilheiras e narcoguerrilheiras, em que o tráfico de drogas e armas é um enorme desafio à sociedade, e em que regimes autoritários populistas buscam posições hegemônicas. Prova disso são bilionárias compras de armas pela Venezuela "bolivariana", que denunciam intenções não apenas defensivas.
Com a volta ao poder dos civis, em 1985, a questão militar ficou em segundo plano, por estar contaminada pela imagem da ditadura. Foi um erro. Desconsiderar a necessidade de Forças Armadas eficientes e aparelhadas é ir contra a soberania nacional, que todos defendem.

Plano de Defesa Nacional

O jornal O Globo do dia 19 de dezembro de 2008 publica a seguinte notícia sobre o plano de defesa nacional:


Plano de defesa prioriza fronteira

Presença de militares na Amazônia crescerá; área do pré-sal é prioridade

Catarina Alencastro

BRASÍLIA. A Estratégia Nacional de Defesa, um conjunto de medidas para o setor militar nos próximos anos, foi lançada finalmente ontem pelo governo federal. As fronteiras do país e a Amazônia são prioridades, assim como as áreas onde estão as reservas de petróleo do pré-sal. Além do aumento de efetivo, dos atuais 17.000 para 25.000 militares na região, o plano prevê maior presença da Marinha na foz do Rio Amazonas, com navios-patrulha e navios-transporte, equipados com helicópteros adaptados para operações na água.
Haverá ainda uma base naval do mesmo porte da do Rio, que concentra 80% do efetivo e abriga todas as embarcações de guerra que o Brasil tem hoje.

"Quem cuida da Amazônia brasileira é o Brasil"

"O Brasil será vigilante na reafirmação incondicional de sua soberania sobre a Amazônia brasileira. Repudiará qualquer tentativa de tutela sobre as suas decisões a respeito de preservação, desenvolvimento e defesa da Amazônia. Quem cuida da Amazônia brasileira, a serviço da humanidade e de si mesmo, é o Brasil", diz o texto.
Outro foco de atenção especial da Marinha é a faixa litorânea de Santos (SP) a Vitória (ES), área do pré-sal. A proteção das plataformas de exploração de óleo e gás é uma das metas.
A estratégia de defesa marítima será negar o uso do mar a "forças inimigas" que se aproximem do Brasil. O governo quer equipar essa força com submarinos convencionais e de propulsão nuclear, além de navios de grande porte, alguns dotados de aviões de defesa e ataque com capacidade de ficar em alto-mar por longos períodos.

Serviço militar obrigatório também para mulheres

O plano não trata de recursos orçamentários para reequipar as três Forças Armadas, reorganizar a indústria de defesa e ampliar a qualificação dos recrutas. No entanto, estão previstas alterações legais para torná-lo realidade. Uma é a criação de uma estrutura, a Secretaria de Material de Defesa, que concentrará a aquisição de equipamentos e coordenará pesquisas em tecnologias.
Outro eixo central do plano de defesa é o serviço militar, que passará, de fato, a ser obrigatório para todos os brasileiros com 18 anos, inclusive as mulheres. O governo quer investir também na qualificação dos recrutas. A Escola Superior de Guerra, hoje sediada no Rio de Janeiro, será transferida para Brasília. Segundo o Ministério da Defesa, há pouca articulação da escola de ensino superior dos recrutas e o governo federal.

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Sobre a negociação de combate à mudança climática

Sobre as negociações de combate à mudança climática, o jornal Valor Econômico do dia 15 de dezembro de 2008 publica a matéria postada abaixo.


Negociação do clima partirá de ponto desolador

Daniela Chiaretti, de Poznan (Polônia)

As negociações para um acordo mundial sobre o combate à mudança climática começam agora e com um ponto de partida desolador. A falta de resultados na conferência da ONU em Poznan, na Polônia, encerrada no sábado, mostrou que a queda de braço entre ricos e pobres apenas começou.

Não houve consenso sobre o formato e o conteúdo que se quer dar ao acordo climático. Tem quem queira que o Protocolo de Kyoto continue valendo, que seja substituído e que continue, mas atualizado e com novo nome. O grupo dos países do G-77 mais a China quer que se avance sobre o que existe, com os industrializados tendo que cumprir metas de redução mais profundas que as de hoje e os em desenvolvimento afastando-se da curva de crescimento de suas emissões de gases-estufa. Mas o Canadá, que declarou que não vai cumprir os cortes de emissão de Kyoto, espera novo acerto e com compromissos dos emergentes.

A grande comemoração européia foi a aprovação dos cortes de 20% em 2020, o que já foi anunciado há dois anos, não é suficiente, mas é o que de mais audacioso se tem de metas até o momento.

A Rússia obstruiu a possibilidade de aumento de recursos para o Fundo de Adaptação, a maior demanda do G-77 em Poznan. Hoje o fundo tem 2% dos recursos do MDL, o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo previsto em Kyoto pelo qual países ricos investem em projetos de tecnologia limpa nos países pobres. Há só US$ 76 milhões em carteira. A proposta era que o Fundo recebesse um percentual das transações de crédito de carbono feitas entre países industrializados, o que ampliaria os recursos para US$ 25 bilhões ao ano.

O Fundo saiu de Poznan apenas com a definição de seu Conselho. Discussões acaloradas de introduzir CCS (tecnologia nova, ainda não testada, de jogar gás carbônico no solo) e de recuperações de áreas de florestas plantadas e abandonadas no MDL foram adiadas. A maior polêmica envolveu o REDD, forma de se remunerar pela proteção das florestas e povos indígenas. Eles queriam que no texto fossem reconhecidos os seus direitos, termo que foi cortado no final.

Na plenária conclusiva, após o texto sobre REDD ser aprovado, a Dinamarca pediu a palavra. Embora tenha aprovado o texto, queria registrar que não concordava com a supressão dos direitos dos povos indígenas. Sinal que o país anfitrião do próximo encontro, de onde se espera saia um acordo histórico, já começou a trabalhar.

Liberalização comercial: atoleiro multilateral

O jornal O Estado de São Paulo publica o seguinte artigo sobre as negociações para a liberalização do comércio mundial:


Atoleiro multilateral

15/12/2008

Marcelo de Paiva Abreu
No mês passado, em Washington, os líderes do G-20 - expansão do G-8, e não o seu homônimo formado em 2003, em Cancún - fizeram incitações para que fosse rompido o impasse nas negociações da Rodada Doha. Mas é pouco provável que se verifiquem as condições requeridas para que uma reunião ministerial na Organização Mundial do Comércio (OMC) seja convocada ainda este mês.
As negociações multilaterais enfrentam obstáculos que parecem incontornáveis. Aos impasses envolvendo temas agrícolas se somam agora obstáculos em relação às tarifas industriais. Os Estados Unidos já haviam anunciado que consideravam crucial obter avanços significativos na liberalização das tarifas industriais por meio de acordos setoriais paralelos às reduções baseadas na fórmula suíça. As dúvidas que poderiam persistir eram quanto aos países que seriam incluídos, à compatibilização dos acordos com regras sobre não discriminação, a que setores seriam afetados e à profundidade dos cortes.
Os Estados Unidos recentemente explicitaram demandas de seus lobbies industriais relacionadas a acordos setoriais para produtos químicos, eletrônicos e bens de capital, e também que tais acordos devem necessariamente incluir as principais economias emergentes. Isso provocou reações do Brasil, da Índia e da China, que parecem ter imaginado que conseguiriam limitar suas concessões industriais a cortes baseados na fórmula suíça, que são relativamente modestos e permitem flexibilidades para continuar a proteger produtos “sensíveis”. No caso do Brasil, a tarifa de importação sobre automóveis seria reduzida dos atuais 35% para algo em torno de 26%, em dez anos. Está longe de ser uma redução drástica e certamente não justificaria o incipiente chororô esboçado pelos lobbies locais. É claro que a pretensão norte-americana é maximalista e desequilibra o balanço de concessões entre agricultura e indústria. Mas não era difícil prever a iniciativa dos Estados Unidos, dadas as limitações da liberalização baseada na aplicação da fórmula suíça. Há sempre a desconfiança de que Brasil, China e Índia poderiam estar pretendendo tratamento especial e diferenciado, reservado a economias em desenvolvimento. Pelo menos no caso de Brasil e China está ficando difícil convencer os parceiros desenvolvidos de que este argumento faz sentido.
Outra razão que explica a proposta dos Estados Unidos é de natureza defensiva. Em julho, a Índia insistiu em salvaguardas especiais extremamente ambiciosas para conter surtos de importações agrícolas. Os Estados Unidos foram bastante críticos da proposta e saíram onerados com o fracasso da reunião. Com a proposta de acordos setoriais radicais e seu provável fracasso em face da resistência dos grandes emergentes, os Estados Unidos poderiam escapar, ao menos parcialmente, da posição de vilão da peça.
Embora as razões mais freqüentemente alegadas para o impasse em Genebra sejam as salvaguardas agrícolas especiais e os acordos setoriais relativos a tarifas industriais, há uma longa lista de outros temas que ainda dividem os negociadores: detalhamento da distribuição do teto de subsídios internos entre diferentes setores agrícolas, tratamento de subsídios dos Estados Unidos ao algodão e posição das economias em desenvolvimento e aplicação da cláusula da paz para conceder imunidade às políticas de subsídios agrícolas acordadas, para citar alguns.
A um observador longe do burburinho genebrino pareceria que só Brasília e Bruxelas mantêm interesse efetivo numa conclusão da rodada. A União Européia tem dificuldade em esconder o contentamento com as suas limitadas concessões agrícolas e será alegre carona de pressões dos Estados Unidos com relação a tarifas industriais e outros temas.
O caso do Brasil é mais complexo. Depois de seis anos de esforços diplomáticos baseados em estratégia nem sempre coerente, que buscou conciliar o bolivarianismo entrincheirado no Palácio do Planalto com os anseios protagônicos do itamaraty, sempre com a idée fixe do Conselho de Segurança da ONU, os resultados são extremamente pobres. A aproximação com os vizinhos tem sofrido repetidos solavancos em decorrência de decisões de líderes populistas que acreditam, como a ala majoritária do PT, “Construindo um novo Brasil”, em balelas como auditoria da dívida e quejandos. Já a Argentina configura um ônus crescente para o Brasil, dada a natureza do kirschnerismo e a insistência em pôr o Brasil a reboque de suas atitudes exóticas em relação a diversos temas. Mesmo os mais entusiasmados defensores do Mercosul começam a ter dúvidas quanto ao seu custo-benefício.
O aspecto mais positivo da política comercial brasileira desde 2003 foi a continuidade do interesse nas negociações na OMC, embora também neste caso tenha havido contaminação dos anseios protagônicos e conseqüente interesse em alianças que nem sempre faziam sentido do ponto de vista estritamente econômico. O G-20 funcionou esplendidamente em Cancún e imediatamente depois como foco de interesse para orquestrar esforços de desmantelamento do protecionismo agrícola nas economias desenvolvidas. Mas era óbvio que enfrentaria dificuldades, dada a heterogeneidade da competitividade agrícola de seus integrantes. Isso explica sua fragmentação em Genebra, em julho, em meio a recriminações entre Brasília e Nova Délhi.
Com o provável reconhecimento do encalhe da Rodada Doha só vai restar à diplomacia brasileira no próximo biênio tentar um acordo bilateral Mercosul-União Européia. Dificilmente os resultados serão espetaculares. Será pouca obra para muitas palavras.
*Marcelo de Paiva Abreu, Ph.D. em Economia pela Universidade de Cambridge, é professor titular do Departamento de Economia da PUC-RJ

Faixa de fronteira da Amazônia brasileira é vulnerável

A Folha de São Paulo do dia 15 de dezembro de 2008 traz a seguinte entrevista com a pesquisadora Marcelle Silva, que trata de temas tais como Amazônia, Raposa/Serra do Sol e soberania.


"Amazônia e vulnerável com ou sem índio", diz professora

Breno Costa, da Agência Folha
Análise é da pesquisadora Marcelle Silva, que estuda questões de segurança nas fronteiras

Especialista critica política da Funai de tutela de índios e diz que órgão e a PF não têm condições de monitorar quem entra e sai de reservas
Não importa se a terra é ocupada por índios ou por fazendeiros: toda a faixa de fronteira da Amazônia brasileira é vulnerável. A análise é da coordenadora do curso de relações internacionais da Universidade Federal de Roraima, Marcelle Ivie da Costa Silva, 28, que pesquisa as questões de segurança nas fronteiras brasileiras e está concluindo doutorado em ciência política pela Unicamp com a tese "Raposa/Serra do Sol: agentes políticos, conflitos e interesses internacionais na Amazônia brasileira".
Ela diz que há "maniqueísmo" nas análises sobre a disputa na Raposa e que a Polícia Federal e a Funai não têm condições de saber se não-índios entram em áreas indígenas.

FOLHA - Como vigiar uma área de 1,7 milhão de hectares, em região de fronteira?
MARCELLE IVIE DA COSTA SILVA - Não é possível vigiar a Amazônia. É um problema geral, não uma questão dessa reserva. O fato de ser faixa de fronteira não vejo como sendo uma ameaça especial. É uma ameaça presente em outras faixas de fronteira, sendo área indígena ou não.
Existe legislação específica que prevê a entrada das Forças Armadas em caso de ameaça.
A gente não pode esquecer que a terra indígena Ianomâmi [na fronteira com a Venezuela] é mais extensa que a Raposa. As políticas públicas são feitas para a Amazônia, mas há várias amazônias. Dependendo do local, há particularidades que não são levadas em conta. Falta sentar com essas comunidades, ouvir o que precisam. Não basta demarcar e não dar condição para as populações se estabelecerem com qualidade de vida.

FOLHA - A Funai cumpre seu papel?
MARCELLE - O problema da Funai não é só a política indigenista, a qual tenho críticas, mas também as condições que o Estado dá ao órgão. Você vai lá, demarca. É um processo lento.
Na Raposa, culminou no que a gente está vendo: demarca e depois deixa as populações com pouca salvaguarda. Tem muita área demarcada onde as pessoas estão morrendo de fome.
A Funai falha aí. Não por falta de vontade, mas por falta de recurso. Acho a política da Funai, de tutela do indígena, totalmente inadequada. Tem que capacitar populações para que se auto-sustentem.

FOLHA - Qual o controle do acesso de não-índios a terras indígenas?
MARCELLE - Qualquer pessoa que vá a uma terra indígena precisa de autorização da Funai. Mas aí esbarra na burocracia. Às vezes, tem que esperar seis meses para uma autorização. O que as pessoas fazem?
Vão sem, porque a burocracia é enorme. No mês passado, dois americanos foram pegos dentro da Raposa. Um era internacionalista e outro trabalhava para uma empresa de prospecção de petróleo. Mas é muito raro a Polícia Federal pegar alguém na Raposa sem autorização. Não tenho como provar, mas a gente sabe que há entrada de estrangeiros até porque a fronteira é vulnerável.
A melhor maneira de fazer o controle é treinar a comunidade para fazê-lo.

FOLHA - Um dos argumentos centrais dos opositores à demarcação em área contínua é a ameaça à soberania nacional. Faz diferença se a terra é indígena ou não?
MARCELLE - Não basta garantir uma soberania no âmbito do território. Não adianta ter uma presença enorme das Forças Armadas, seja ela terra privada ou da União, se você não tem forma de garantir que o conhecimento ou a ciência que pode ser gerada nessa área tão rica seja administrada pela comunidade científica do Brasil. A facilidade de transporte de informações hoje é incrível. Não precisa levar plantas, você faz pesquisa e leva informações em microchip. A riqueza não é necessariamente diamante ou ouro. Você pode ter uma mina de diamante que não vale nada perante a possibilidade de desenvolvimento da indústria farmacêutica, por exemplo.

FOLHA - O que o prolongamento do impasse na Raposa/Serra do Sol pode acarretar à região?
MARCELLE - Há muito maniqueísmo. Por causa dessa polarização, um novo adiamento do julgamento traz mais ansiedade. Isso é um problema que vem há 30 anos. A Raposa virou um símbolo, mas temos outras questões indígenas para resolver. O caminho que se tomar tende a ficar como marco para futuras decisões. Um confronto direto pode acontecer? Pode.
Mas não gostaria de colocar isso em tom alarmista porque as partes sabem que partir para a violência é muito prejudicial.

domingo, 14 de dezembro de 2008

Ex-Presidente da Funai critica decisão do STF

O ex-Presidente da Funai Sydney Possuelo no Estado de São Paulo de 14 de dezembro de 2008 critica a decisão do STF sobre a demarcação da raposa serra do sol.
O sertanista Sydney Possuelo é uma voz dissonante entre os indigenistas que comemoraram a decisão do Supremo Tribunal Federal em favor da demarcação contínua da reserva Raposa Serra do Sol, o que deve provocar a retirada dos arrozeiros da região.

"Não foi uma vitória", disse Possuelo, indignado com as ressalvas feitas pelo ministro Carlos Alberto Direito, acolhidas pela maioria de seus colegas. O voto de Direito estabeleceu, por exemplo, que a construção de bases militares e estradas em reservas pode ser feita sem consulta prévia às comunidades e à Fundação Nacional do Índio (Funai).

Depois de liderar expedições que marcaram os primeiros contatos de sete povos com homens brancos, nos anos 70, Possuelo passou a contestar o próprio modelo de política indigenista que o havia transformado em celebridade no mundo da antropologia. Em vez de "civilizar" os índios isolados, concluiu, o melhor seria monitorá-los e protegê-los de longe. No fim dos anos 80, essa política acabou adotada pela Funai - órgão que Possuelo presidiu de 1991 a 1993. A seguir, trechos de entrevista concedida pelo sertanista:

A decisão do STF foi vista como restritiva à atuação da Funai. Como o senhor a interpretou?

Tive a impressão de que os ministros não estavam interpretando leis, mas legislando. Essa declaração de que as Forças Armadas podem entrar nas áreas indígenas quando quiserem, sem pedir licença, fere o espírito com que o Estado brasileiro reservou aquelas terras para ser o habitat e o lar dos índios - lar que, na nossa sociedade, é inviolável. Não se demarca a casa de um povo para que ela seja invadida a qualquer momento ou para que se faça uma rodovia lá dentro. Numa fazenda que esteja na faixa de fronteira o Exército vai entrar quando quiser? Vai fazer uma estrada na hora em que quiser? O que quer fazer nas terras indígenas o Estado não faria numa fazenda particular.

Na sua opinião, os índios não têm nada a comemorar?

Não houve vitória. Decidiram que a demarcação tem de ser contínua, mas isso é um fato que o Supremo apenas reconheceu. Não se pode pulverizar a terra de um povo. Imagine que você ganhe uma casa, mas a cozinha fica em um bairro e o quarto em outro. A sociedade dos brancos continua ferina e horrível contra os povos indígenas. Cada vez que se mexe na legislação, é para piorar. Nada que engravatados brancos façam nas suas reuniões vem a melhorar a condição dos índios.

Os críticos das demarcações, com base na baixa densidade demográfica das reservas, dizem que os índios têm terras demais. Como o senhor vê esse argumento?

O Estado de Roraima, por exemplo, reclama do que nunca foi dele. Quando foi criado, o Estado já continha aquelas terras indígenas, que não passam a ser indígenas somente depois de demarcadas. O que faz uma área indígena é a presença dos índios. A União apenas reconhece a existência desse habitat imemorial. Dizem que a terra é grande demais? Mas são povos que não têm um supermercado ali na esquina, a produção não está centralizada em determinada área. A vida se organiza não em torno de um único lugar, mas na beira de um rio, no alto de uma montanha, na planície onde se planta, no cemitério distante...

No aspecto econômico, os críticos vêem as reservas como pedaços do Brasil alijados do desenvolvimento.

Se a terra é destinada a um povo, e a Constituição diz que assim devemos proceder, o destino da terra deve ser dado por aquele povo. De um modo geral, os índios são tecnologicamente menos desenvolvidos que nós, mas não menos inteligentes, não menos sábios. Falar em termos econômicos me parece complicado, é como calcular se uma floresta vale mais dinheiro em pé ou derrubada. É uma maneira muito comercial de olhar o mundo. Em Roraima, com exceção de algumas tribos ianomâmis, os povos indígenas já estão há muito tempo num processo de integração com a sociedade, inclusive econômica. Eles são um dos maiores produtores de carne bovina na região. Ninguém fala disso.

O senhor tirou muitos índios do isolamento, fez uma espécie de ponte entre esses povos e a chamada civilização. Que balanço faz desse processo?

Na década de 70 nós tivemos um trabalho que coincidiu com a época do Brasil grande, do "ame-o ou deixe-o", de toda a reconquista moderna da Amazônia brasileira, através da abertura de estradas, da criação de novos núcleos urbanos, do assentamento de trabalhadores rurais. Nessa época fiz sete contatos com grupos totalmente desconhecidos, sete povos. E foi fazendo esses contatos que aprendi a ver e a sentir os malefícios que causamos a esses povos.

A partir do marechal Rondon, em 1910, o Estado brasileiro passou a ter, como postura oficial da República, uma visão ligada ao positivismo de que esses povos precisavam ser alcançados e civilizados, para viver as benesses do progresso. E desde então cerca de 90 povos desapareceram na volúpia desenvolvimentista nacional.

Foi fazendo esse tipo de contato que mudei a política indigenista nacional. No fim de 1986, depois de anos tentando, finalmente foi aceita a filosofia de não fazer mais contatos com grupos isolados. Demarcar as terras e deixar esses povos viverem a sua vida tradicional. É a política adotada hoje pela Funai. Mas tudo isso recebe um estremecimento com a manifestação do Supremo.

Há um projeto do governo para controlar o acesso de ONGs a terras indígenas. O senhor é a favor?

Primeiro o governo precisa ter uma política clara sobre o que fazer com esses povos. Demarcar terras, levar saúde, educação. Se o Estado não pode fazer isso sozinho e precisa do auxílio de uma ONG, não há problema, desde que ela se comprometa a atuar dentro dos princípios estabelecidos. O Estado precisa controlar. O que não pode é cada ONG fazer o que bem entender dentro das terras indígenas.