A Folha de São Paulo publica em primeiro de fevereiro de 2009 sobre a justiça retributiva na Argentina.
Impasse coloca em xeque um dos trunfos dos Kirchner e motiva acusações entre os Poderes; desde 2003, 12 de 800 causas foram julgadas
A libertação recente de acusados de delitos durante o último regime militar na Argentina (1976-1983) põe em xeque um dos principais trunfos eleitorais do casal Néstor e Cristina Kirchner: o julgamento de crimes da ditadura.
A demora nos processos em curso ficou exposta em dezembro, quando a Justiça mandou soltar 30 acusados, entre eles ícones da repressão como o ex-capitão-de-fragata Alfredo Astiz, 57, por excesso de tempo na prisão sem julgamento.
Foi o estopim para comoção na mídia, no meio político e de direitos humanos, seguida por troca de acusações entre os Poderes. A presidente Cristina Kirchner falou em "dia de vergonha para os argentinos, a humanidade e nosso sistema judicial". A Corte Suprema rebateu e cobrou do Congresso uma reforma do processo penal.
Astiz e outros 23 acusados continuam presos porque o Ministério Público recorreu, mas seis ex-policiais do primeiro centro clandestino de detenção onde se acharam restos humanos -o "Poço de Arana", em La Plata- foram soltos.
Todas as liberações partiram da Câmara Nacional de Cassação Penal -a última instância para apelações antes da Corte Suprema. A justificativa: vencimento do prazo legal de três anos para prisão preventiva sem condenação.
Até entidades de direitos humanos reconhecem o impasse. "Quanto ao Direito, as sentenças [de liberação] são corretas", diz Carolina Varsky, diretora do Cels (Centro de Estudos Legais e Sociais). Astiz está preso desde setembro de 2003.
Das cerca de 800 causas reabertas desde 2003, apenas 12 foram a julgamento, com 36 condenações. Somente em 2008 houve 200 novos processados -57% a mais do que em 2007. Falta de estrutura judicial e excesso de recursos são apontados como razões do afunilamento do sistema.
Retomada
Enquanto no Brasil a Lei de Anistia de 1979 ainda vige e nenhum militar foi julgado por crimes durante o regime (1964-1985), a Argentina é o país que mais reviu os delitos da ditadura. O governo já confirmou 12 mil mortos ou desaparecidos, de 30 mil relatados.
Ainda sob Raúl Alfonsín (1983-1989) houve o júri dos ex-comandantes militares, mas a reação das Forças Armadas levou à promulgação de leis de perdão -derrubadas por Néstor Kirchner (2003-2007).
Os governos Néstor e Cristina capitalizam a revisão dos crimes da ditadura e atacam a Justiça pela lentidão dos processos -pedidos de destituição de juízes são frequentes.
Luis Além, subsecretário federal de Direitos Humanos, vê uma situação "kafkiana", na qual juízes que demoram a marcar julgamentos liberam acusados por decurso de prazo.
"Há cumplicidade ou mau desempenho", afirma Além, que defende a extensão das prisões preventivas em casos graves, de repercussão social e com perigo de fuga.
Para o Ministério Público, o problema não é só judicial, mas da legislação que prevê a condução exclusiva das apurações pelos juízes -promotores, por exemplo, não podem ouvir acusados.
"O ideal seria determinar bem as funções: o promotor investiga e o juiz decide", diz Juan Mercau, secretário da unidade que acompanha todos os processos de crimes da ditadura pelo país.
Defesa
Há também quem aponte desinteresse dos argentinos pelo tema. "Hoje a causa dos direitos humanos não mobiliza mais o público, que está mais preocupado com a inflação, impostos", diz o advogado de Astiz, Juan María Cobo. Para Além, a afirmação é um "disparate", e há "consenso geral" sobre a necessidade dos julgamentos.
"Não defendo ideologias, mas o Estado de Direito." Assim Cobo apresenta seu trabalho de defesa de Astiz.
O ex-militar (destituído em 1998), apelidado de "anjo loiro da morte", responde pelo sequestro e desaparecimento de cerca de 80 pessoas. "A Marinha me ensinou a matar", disse em célebre entrevista de 1998.
Foi citando garantias constitucionais como a presunção de inocência que Cobo obteve a libertação do ex-militar. Suspensa a medida, Astiz continua a ocupar uma cela individual de 11 m2, "escura, mal ventilada e suja" na Penitenciária de Marcos Paz, unidade civil de segurança máxima na Grande Buenos Aires. Recebe visitas duas vezes por semana.
O advogado diz que Astiz só cumpriu ordens e tarefas de inteligência. "Se participou de enfrentamentos, não sei." Afirma que não há interesse em finalizar os julgamentos porque isso significaria o fim do financiamento a entidades de direitos humanos. Termina defendendo seu direito a recorrer de todas as decisões. "Se não querem que isso [processos] se dilate, que modifiquem a lei."
domingo, 1 de fevereiro de 2009
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