segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Crise faz pessimismo tomar conta da Europa

Época

09/02/2009

Paulo Nogueira, de Londres

Como está o clima no Velho Continente e o que ele significa para o mundo
Faz parte da cultura alemã juntar substantivos para formar uma nova – e consequentemente longa – palavra. Endzeitstimmung é um desses casos. Estado de espírito apocalíptico é a tradução para o português. Por longa que seja, palavra nenhuma parece refletir tão sinteticamente o que se passa na Europa nos dias de hoje. A Europa está assustada. Apavorada. Cabisbaixa. Cheia de dúvidas e com poucas respostas. A surpreendente truculência da crise econômica que varre o mundo deixou os europeus, para voltar à longa palavra alemã, com um sentimento de apocalipse. Como alguém notou recentemente na imprensa inglesa, os Estados Unidos – o berço da crise – pelo menos têm o novo presidente Barack Obama como uma fonte de esperança para a redenção. A Europa, nem isso.

A Inglaterra, que desde a gestão modernizadora de Margaret Thatcher nos anos 80 viveu um ciclo de impetuosa prosperidade e aparentemente inabalável otimismo, parece singularmente perplexa. O primeiro-ministro, Gordon Brown, do Partido Trabalhista, enfrenta hoje o desafio de promover um “choque positivo” para a Inglaterra. Seu antecessor no cargo, Tony Blair, fez isso. Blair, trabalhista, sucedeu Thatcher, a quem fazia oposição. O mercado temia que o novo governo recuasse naquilo que fora a essência da administração de Thatcher: a diminuição da presença ubíqua do Estado na economia. Com uma força e uma convicção que a tornariam conhecida como Dama de Ferro, Thatcher liberou uma economia sitiada por marcos e regulamentações – e, consequentemente, estagnada. Blair logo deixou claro, ao substituí-la, que a Inglaterra sob seu comando não voltaria atrás. Foi um “choque positivo” de repercussão imediata: a Inglaterra seguiu adiante com uma economia vigorosa e altamente inovadora. Até a chegada da crise internacional nascida dos créditos imobiliários podres nos Estados Unidos. Num primeiro e fugaz momento, a Inglaterra pareceu ter respostas para os problemas. Era uma ilusão, logo se veria.

Talvez nada seja mais importante e urgente para Brown, o amigo e sucessor de Blair, do que criar seu “choque positivo” – ações capazes de mostrar aos ingleses que não é o caso de se deixarem contaminar pelo endzeitstimmung. É um desafio formidável – não só para Brown, mas também para líderes em todo o mundo. Recentemente, Brown anunciou novas medidas destinadas a devolver a confiança nos bancos. Elas coincidiram com o comunicado de uma perda bilionária do Royal Bank of Scotland, a mais alta da história das corporações britânicas. O que era para ser um sopro quente de otimismo se converteu num vento gelado de inquietação. A Inglaterra enfrenta seu pior cenário econômico em 60 anos. Um relatório recente do Fundo Monetário Internacional afirmou que a economia inglesa deverá cair 2,8% em 2009, a pior previsão para os países industrializados. Na quinta-feira, ao reduzir em meio porcentual – para 1% – sua taxa de juros básica, o Banco da Inglaterra afirmou existir um “risco substancial” de que a demanda no país continue fraca. “Vai ser o ano mais duro desde a guerra”, diz um dos mais respeitados comentaristas da mídia inglesa, Will Hutton, do jornal Observer.

Como muitos outros, Hutton parece temer que a recessão – a esta altura um dado da vida para os ingleses – possa descer ainda alguns degraus e se converter numa depressão. Há poucos dias, diante de um grupo de jornalistas, Brown ouviu de um deles um comentário desconectado dos fatos concretos, é verdade – mas revelador da angústia inglesa deste princípio alarmante de ano. O repórter disse que a economia inglesa começava a lembrar a da Islândia, o país que foi à bancarrota. Brown recomendou ao jornalista cuidado com as palavras. Palavras, sabe-se, têm um enorme potencial explosivo, como o próprio Brown, um incansável defensor das virtudes da globalização, há pouco pôde perceber. Uma das frases de efeito de Brown, quando buscava popularidade entre os eleitores, dizia: “Empregos britânicos para trabalhadores britânicos”. Dias atrás, cartazes nacionalistas estampavam ironicamente essa mesma sentença – uma ácida cobrança a Brown –, num protesto de trabalhadores ingleses contra o recrutamento de portugueses e italianos para a construção de uma refinaria de petróleo.

Os cartazes nacionalistas empunhados por trabalhadores ingleses são um pequeno mas expressivo sinal de um dos inevitáveis efeitos colaterais desta que é a primeira grande crise da economia globalizada: a discussão em torno da própria globalização. O que parecia ser um consenso quase que universalmente aceito – as vantagens do livre-comércio e da crescente integração entre os países – começa a ser debatido num tom perigosamente emocional. Conceitos tidos como em completa obsolescência no mundo globalizado, como nacionalismo, xenofobia e protecionismo, ameaçam se reerguer e colocar em xeque o mundo tal como o conhecemos hoje. Uma palavra vai aparecendo na mídia: desglobalização. O Fórum Econômico Mundial de Davos, que ao longo dos últimos anos se tornou um alegre, otimista e solidário símbolo da globalização e da busca bem-sucedida de harmonia entre os países, foi tomado na recente edição de 2009 por uma atmosfera bem diferente. Davos sempre teve um tom de festa e concórdia. Desta vez, o que se viu foi um encontro de líderes aparentemente desconectados uns dos outros, dispostos a trocar acusações – e assustados com o tamanho da crise. Davos nunca esteve mais distante do conceito de integração que caracteriza um mundo globalizado.
Jamais, também, coube tão bem, ali, o endzeitstimmung alemão. Na versão de 2008 de Davos, dominada por um clima de “moderado otimismo”, segundo definiu na época Klaus Schwab, fundador e presidente do Fórum, as palavras catastrofistas do economista Nouriel Roubini, da Universidade de Nova York, soaram deslocadas e exageradas. “Não há onde se esconder”, disse então s Roubini em Davos. “Estamos diante, pela primeira vez em décadas, de uma recessão global sincronizada. Não é uma recessão como as outras.” Os fatos mostraram que Roubini, infelizmente, estava certo. Hoje, ele é visto como um profeta. O que Roubini vê agora pela frente? “Já não se trata de saber se as coisas serão duras ou suaves”, disse ele. “A questão é saber quão duras serão.”

Foi no ar lúgubre de Davos que Gordon Brown falou sobre o perigo da desglobalização. Brown fez uma apaixonada defesa da cooperação entre os países. Brown como que encarnou o antigo – e pelo menos temporariamente perdido – espírito de fraternidade de Davos. Sobretudo na retórica, como notaram alguns. Brown bateu duro no protecionismo, mas, ao mesmo tempo, seu governo tem feito pressões para que os bancos britânicos socorridos deem prioridade para sua clientela inglesa. Esquisito? Sim. Entre tantas dúvidas, eis uma certeza: o mundo está mais confuso em 2009 do que esteve em muitos anos.

Não é apenas o futuro que provoca inquietação. Também o passado traz sustos. Nos últimos dias, a memória de uma dupla de políticos americanos tem sido constantemente invocada pelos defensores do livre-comércio como um exemplo dos riscos do protecionismo: Willis Hawley e Reed Smoot. Em 1930, os dois foram responsáveis por uma lei que aumentou a tarifa de importação de 20 mil produtos a níveis recordes nos Estados Unidos. A retaliação veio rapidamente – e o resultado é que as exportações americanas caíram pela metade. O comércio internacional murchou. Para muitos estudiosos, o espetacular cerco às importações americanas, assinado pela dupla Hawley e Smoot, deu uma contribuição milionária para a depressão econômica mundial dos anos 30 – que, entre outros efeitos, facilitou a ascensão de Adolf Hitler na Alemanha. Os acordos que vigoram hoje protegem o mundo de ações como a de Hawley e Smoot, segundo especialistas em comércio exterior. Mas, não obstante a suposta proteção legal contra a eclosão irrestrita de protecionismo em escala global, Hawley e Smoot voltaram a ser lembrados – com apreensão – depois de uma prolongada temporada de esquecimento. A crise “se alimentará de si mesma” se os governos não refrearem medidas nacionalistas e não evitarem o retorno do protecionismo, afirma o economista Jeffry Frieden, da Universidade Harvard.

Os líderes dos principais países do mundo têm um novo encontro marcado. Em abril, os ministros das finanças do G-20 – grupo que congrega países desenvolvidos e emergentes, entre os quais o Brasil – se reunirão em Londres. Há desde já uma grande expectativa em relação ao que se verá ali – “uma oportunidade vital de mudança”, para usar palavras que serviram de manchete na semana passada para o site oficial do seminário. O objetivo é um novo desenho para o sistema financeiro internacional – incluída aí a remodelação do FMI e do Banco Mundial –, algo capaz de evitar ou ao menos abrandar crises como esta a que o mundo assiste. O encontro de Londres conseguirá dissipar a mistura de desalento e desespero que assola nestes dias a Europa e não só ela? “A não ser que todos os países estejam bem, vai ser difícil devolver a saúde ao sistema econômico global como um todo”, diz o economista Joseph Stiglitz, detentor de um Nobel. “Estamos mais interdependentes que nunca uns dos outros.” A interdependência de que fala Stiglitz – uma ode à cooperação entre os países em oposição a ações protecionistas que ameacem desfazer os alicerces da globalização – trouxe magníficos resultados para o mundo nos últimos anos. Mas agora, quando se olha para qualquer ponto do mapa e o que se vê basicamente é uma pilha de números ruins no presente e o temor de um futuro ainda pior, a interdependência provoca, antes que tudo, calafrios. Talvez a mais urgente tarefa dos líderes que se reunirão em Londres em abril seja desfazer, em escala global, a sensação de que o apocalipse está na próxima esquina – oendzeitstimmung do vocabulário alemão.

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