O Estado de São Paulo
15/02/2009
Celso Lafer
No exercício de funções governamentais de responsabilidade, um tipo de conhecimento indispensável é aquele que se caracteriza pela aptidão para entender o conjunto das coisas. Esse tipo de conhecimento, associado à compreensão da relação entre meios disponíveis e fins desejáveis, é o que confere ao governante perícia estratégica para perceber o que está aberto às possibilidades futuras. Esse tipo de conhecimento tem a feição de uma "visão global". Como diz Fernando Henrique Cardoso, é uma espécie de "quadro mental", fruto da experiência, da sensibilidade e do domínio de assuntos, que permite a um governante, sem perder o sentido de direção, ir contextualizando a informação fragmentada que provém do mundo complexo e interdependente em que vivemos.
Entender o conjunto das coisas que estão ocorrendo no mundo, com destaque para a crise econômico-financeira, que a partir dos EUA se espraiou globalmente, é uma dificuldade compartilhada em todos os lugares por governantes e governados.
A crise teve como ponto de partida os desequilíbrios do sistema financeiro global. Este se esfacelou com as virtualidades de suas engenharias, seus derivativos, subprimes, suas securitizações e alavancagens, que foram ao chão como um castelo de cartas. Isso trouxe, em vários países, com destaque para os EUA, intervenções governamentais maciças e sem precedentes em matéria de escala, voltadas para conter o pânico financeiro. Essas intervenções até agora não conseguiram conter o impacto da crise financeira na economia real da produção e dos serviços. Daí os problemas do desemprego, da diminuição do crescimento e, em muitos casos, da recessão, que se avolumam em escala planetária.
A crise vai muito além dos problemas mais técnicos da liquidez e da solvibilidade, que em princípio os bancos centrais e as intervenções governamentais podem encaminhar. É uma crise de confiança, que vem sendo alimentada por vários fatores, entre eles: 1) As fraudes financeiras que se tornaram do conhecimento geral; 2) a ampla circulação de instrumentos financeiros, como os acima mencionados, que na sua complexidade deixavam na penumbra o imenso potencial do perigo que carregavam; 3) as consequências da excessiva alavancagem, animada pela ganância de lucro, que redundaram em imensos prejuízos à medida que despencou o preço dos ativos; e 4) a percepção generalizada internacionalmente da falta de transparência dos produtos financeiros, das instituições de crédito e do funcionamento dos mercados financeiros globais, que passaram a ser considerados uma espécie de "caixa-preta", destituída de apropriados mecanismos de supervisão e de controle.
Qual é o significado e o alcance desta crise, que aprofunda tensões difusas em todos os países, inclusive no Brasil? Os economistas fazem uma distinção entre risco e incerteza. O risco comporta cálculo, enseja alguma previsibilidade e abre horizontes para cenários de possibilidades que o imprevisto pode trazer. Os vários tipos de seguro, desde a sua origem, como o seguro marítimo, os hedges, são uma expressão de um cálculo probabilístico que permite a gestão de riscos. A incerteza, ao contrário, não comporta cálculo e por isso tende a propiciar o imobilismo, do qual são exemplos os bancos que não emprestam, os investimentos empresariais que se suspendem e o consumo dos particulares que se contém.
O risco é uma característica da sociedade moderna e o capitalismo nela identifica um caminho de inovação e progresso. Nesta nossa era de globalização, Anthony Giddens chama a atenção para o novo risco do risco. Este provém de um maior desconhecimento do nível de risco, manufaturado pela ação humana. Disso são exemplos o risco ecológico, o nuclear e o da direção do conhecimento científico-tecnológico, que, com suas constantes inovações, transpõe continuamente barreiras antes tidas como naturais. A crise financeira, como crise de confiança, é uma expressão do risco manufaturado pelo sistema financeiro global, que por conta de suas falhas de avaliação, gestão temerária, carência de supervisão e de normas se transformou num não debelado curto-circuito de incerteza.
A crise é global e os seus efeitos estão se internalizando na vida dos países, em maior ou menor grau, à luz das suas especificidades. Ela coloca um grande desafio nacional para o governo do presidente Lula. Com efeito, até o advento da crise, o governo Lula pôde contar com os ventos favoráveis da economia mundial e com a herança positiva recebida do governo Fernando Henrique, de uma gestão econômica bem-sucedida no controle da inflação, que saneou o sistema financeiro nacional e introduziu qualidade no processo decisório macroeconômico. Pôde valer-se, também, da rede de proteção social criada pelo governo anterior, ampliando-a de maneira importante, com base inclusive nos recursos gerados pelo crescimento econômico. As qualidades de comunicação do presidente Lula, a carga simbólica de sua biografia e a sua capacidade, com base no seu "quadro mental", de ir tocando as coisas são componentes explicativos da sua popularidade e do seu sucesso.
Em política sempre há o inesperado. Hannah Arendt gostava de citar uma frase de Proudhon: "A fecundidade do inesperado supera em muito a prudência do melhor estadista", aduzindo que, com maior razão, o inesperado escapa ao cálculo dos peritos. A crise é o inesperado da vulnerabilidade para um governo que vinha navegando com relativa tranquilidade. Gestão de riscos e incertezas é uma responsabilidade governamental. Observo, com isso, que a crise coloca para o governo Lula e seus colaboradores um novo desafio. O de encontrar meios e modos para, em contraste com os seis últimos anos, navegar num mundo que para nós, hoje, caracteriza-se - para falar com Camões - por ser "tempo de tormenta e vento esquivo".
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