quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Camboja - Justiça para quem?

Jornal do Brasil

18/02/2009

Nic Dunlop, autor da biografia de Duch

Há exatamente 10 anos, descobri o torturador-chefe de Pol Pot morando no oeste do Camboja. O camarada Duch falou sinceramente sobre seu papel durante o reinado do terror do Khmer Vermelho.

– Fiz coisas muito ruins em minha vida – admite. – As mortes precisam ser compreendidas.

A partir da minha descoberta e da confissão extraordinária dele, Duch foi preso. Esta semana, depois de três anos de operações, Duch é o primeiro a ir a julgamento no tribunal da Organização das Nações Unidas em Phnom Penh.

Entre 1975 e 1979, mais de 1,7 milhão de pessoas morreram nas mãos do Khmer Vermelho. Por percentual da população, o Khmer Vermelho promoveu os assassinatos em massa mais eficazes da história moderna, sendo responsável pelo número de mortes que ofusca o dos holocaustos na Alemanha nazista e em Ruanda juntos.

Levaram 30 anos para o Khmer Vermelho ir a julgamento. Depois de o regime de Pol Pot ser substituído pelo vietnamita em 1979, a justiça foi deixada de lado pelos interesses concorrentes da China, dos EUA e da União Soviética. O Khmer Vermelho continuou a ser reconhecido como representante legal do Camboja na ONU e os EUA apoiaram uma coalizão de guerrilha que eles dominaram.

Quando a Guerra Fria acabou, o Khmer Vermelho continuou a luta por poder. Nos anos 1990, o governo cambojano garantiu anistias para desertores do Khmer Vermelho e a justiça foi trocada pela paz. Nem todos os crimes de Duch serão investigados. O mandato para esse tribunal foi limitado ao período de 1975 a 79, quando o Khmer Vermelho detinha o poder. Mas a chacina, segundo Duch, começou anos antes.

Soube de uma prisão secreta do Khmer Vermelho chamada M-99, aberta dois anos antes de Pol Pot chegar ao poder. Duch enviou prisioneiros para lá. Encontrei recentemente o local e conheci uma sobrevivente de 81 anos chamada Sao Yeng.

Milhares foram mortos na M-99 incluindo o filho dela e sua esposa. Ele foi acusado de perder a enxada deliberadamente. Yeng descreveu como ele gritou pedindo a ajuda dela enquanto era torturado. Ele morreu depois. É incrível como, apesar do julgamento iminente de Duch, Sao Yeng ainda não tinha ouvido falar sobre o tribunal. A ligação de Duch com a prisão continua nebulosa e Sao Yeng não reconheceu a fotografia dele. Não havia razão para tal.

O Khmer Vermelho era obcecado pela discrição. Para a maioria das pessoas que viveram o horror, a experiência delas era localizada e a população se mantinha ignorante. Ainda não se sabe qual a estrutura da liderança e como as ordens para os assassinatos foram levadas a cabo.

Por causa da posição como executor-chefe de Pol Pot, Duch pode explicar a tomada de decisões para as mortes e confirmar, como fez comigo, que assassinatos em massa eram política. Isso o torna não só um forte candidato a ser processado, mas também uma testemunha-chave para os trabalhos internos do regime de Pol Pot. Mas a M-99 não foi investigada pelo tribunal e não deve ser parte do julgamento de Duch. Já existe evidência suficiente para condenação. Mas isso vai satisfazer pessoas como Sao Yeng?

Disseram-me diversas vezes que esse tribunal era para pessoas do Camboja. Será? De acordo com um relatório recente do Centro de Direitos Humanos da Universidade da Califórnia em Berkley, 85% da população têm pouco ou nenhum conhecimento do tribunal. O custo total do tribunal é de US$ 143 milhões. O orçamento para explicar suas atividades aos cambojanos é de apenas US$ 50 mil por ano. Se explicar esse processo às pessoas é fundamental, como me disseram, isso não está refletido no orçamento.

O tribunal também tem de levantar os padrões do judiciário cambojano, mas continua, em vez disso, a ser acusado de corrupção, interferência política e falta de transparência. Se ele explicasse claramente seus procedimentos para as pessoas comuns, elas estariam numa posição melhor para serem capazes de julgar se o processo é corrupto, se sofre interferência política e se a justiça está, de fato, sendo feita em nome deles.

Explicar os procedimentos das atividades do tribunal devia ser o mais importante. Sem isso, o tribunal corre o risco de se tornar irrelevante a menos que se torne mais acessível aos cambojanos. As pessoas se perguntam o tamanho da sinceridade dos doadores internacionais e do governo em relação a conceder uma justiça verdadeiramente significativa se poucos a entendem.

O maior desafio para este tribunal é demonstrar um processo que possa ser compreendido, e não apenas conceder um punhado de condenações.

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