sábado, 28 de fevereiro de 2009

Parlamento uruguaio vota por fim da lei da anistia

O Globo

27/02/2009

Janaína Figueiredo
Em gesto apenas simbólico, perdão a militares é abolido
BUENOS AIRES. Em decisão simbólica, a Assembleia Geral do Uruguai declarou inconstitucional a Lei de Caducidade (anistia aos militares aprovada em referendo na década de 80), em sintonia com a posição adotada semana passada pelo presidente Tabaré Vázquez, primeiro chefe de Estado de esquerda do país. A declaração foi aprovada por 69 votos a favor, mas apenas com a presença de 71 parlamentares, de um total de 130 cadeiras. Os partidos de centro e direita optaram por não participar da votação.
Na prática, porém, a polêmica lei continuará vigente já que sua anulação só pode ser decretada pela Suprema Corte de Justiça.
- Nossa decisão não terá impacto jurídico, mas, sim, político - argumentou o senador Rafael Michelini, filho de Zelmar Michelini, congressista uruguaio sequestrado e assassinado pelos militares, no âmbito da chamada Operação Condor (plano de ação conjunta das ditaduras do Cone Sul).
A reunião da Assembleia Geral foi convocada pelo vice-presidente, Rodolfo Nin Noboa, acusado pelos opositores do governo de ter "armado um circo político, com intenções eleitorais".
- Não temos interesse eleitoral algum - disse Nin Noboa.
No entanto, o Uruguai já está em ritmo de campanha eleitoral. Em outubro será eleito o sucessor de Vázquez.
O Parlamento se pronunciou especificamente sobre o caso de Nibya Sabalsagaray, militante comunista assassinada em 1974 num quartel. Nos últimos anos, o cerco a civis e militares que participaram da repressão a opositores da ditadura (1973-1985) se fechou no país. Em 2006, pela primeira vez desde a redemocratização do Uruguai, a Justiça ordenou a detenção do ex-presidente Juan Maria Bordaberry, que comandou o Poder Executivo entre 1973 e 1976.
Bordaberry foi acusado de ser um dos principais responsáveis pelo sequestro e desaparecimento dos congressistas Michelini e Héctor Gutiérrez Ruiz, e dos militantes do movimento Tupamaro Rosario Barredo e William Whitelaw, todos ocorridos em 1976. Na mesma época, também foi detido o ex-ministro das Relações Exteriores do governo militar Juan Carlos Blanco.
Ontem, o ex-ditador Gregório Álvarez (1981-1985), processado pela primeira vez em 2007 pelo "delito reiterado de desaparecimento forçado de pessoas" e "traslado clandestino de presos políticos que estavam na Argentina e que pouco depois foram assassinados", compareceu a um tribunal de Montevidéu que julga a morte do militante tupamaro Roberto Luzardo, em 1973. Álvarez está detido numa prisão especial construída para militares envolvidos em casos de violação dos direitos humanos, localizada na capital do país.

Ministro pede ações em massa para mudar Lei de Anistia

O Estado de São Paulo

28/02/2009

Para Vannuchi, ideia é mostrar ao STF demanda da sociedade contra perdão a torturadores

Alexandre Rodrigues

O ministro-chefe da Secretaria Especial de Direitos Humanos, Paulo Vannuchi, pediu ontem que vítimas da repressão do regime militar, seus familiares e entidades de classe se organizem nos Estados para propor ações judiciais em massa questionando a abrangência da Lei de Anistia, que completa 30 anos em 2009. Em uma solenidade no Rio, ele defendeu a tese de que a sociedade civil intensifique a pressão para que documentos e informações sobre o paradeiro de desaparecidos políticos sejam revelados e informou que o governo prepara uma campanha publicitária com familiares de desaparecidos.

Para Vannuchi, só a "saturação" provocada por um grande volume de processos mostrará ao Supremo Tribunal Federal (STF) que há uma demanda da sociedade por uma nova interpretação da Lei de Anistia, sem o perdão a torturadores. Até agora, o entendimento que prevalece é o de que os militares envolvidos em violações não podem ser processados por terem sido anistiados pela lei de 1979.

"Casos como o de Rubens Paiva e Stuart Angel não podem ser abandonados. Essa informação (o paradeiro deles) tem de aparecer", discursou Vannuchi na abertura da 8ª Anistia Cultural, que julgou pedidos de indenização de 21 estudantes banidos de universidades na ditadura.

"Não haverá nas Forças Armadas nenhuma pessoa com capacidade de dar informação sobre isso ou para transformar numa narrativa que o ministro da Defesa faça?", cobrou Vannuchi, que disse ter conversado sobre isso com o presidente Lula na semana passada.

Ele informou que os ministros Dilma Rousseff (Casa Civil) e Franklin Martins (Comunicação) devem lançar até maio o sistema de acesso a dados de 14 arquivos estaduais, chamado Projeto Memórias Reveladas, com um edital que convoca donos de acervos particulares a transferir documentos para arquivos públicos. Segundo o ministro, Martins prepara um comercial de TV em que aparecerão mães de desaparecidos políticos segurando fotos dos filhos e dizendo que não querem morrer sem saber o paradeiro deles.

DEBATE

Em entrevista na saída, Vannuchi disse que sua secretaria e o Ministério da Justiça continuarão o debate interno no governo até uma posição do STF sobre a Lei de Anistia. "A decisão do Judiciário pode não concordar com a minha, mas será respeitada por nós. Enquanto não há isso, não há como avaliar que o debate está encerrado, proibido. Não há como bloquear a força de 140 famílias que clamam pelo direito de ter o corpo de seus filhos, maridos, mulheres, irmãos para sepultar."

Durante o evento, o presidente da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, Paulo Abrão, pediu que movimentos sociais, intelectuais, imprensa e instituições também se mobilizem pela punição de torturadores e o esclarecimento de pontos nebulosos da repressão. A presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), Lúcia Stumpf, afirmou que a entidade prepara uma série de manifestações no País em março que terão esse tema entre as reivindicações. "Temos direito de conhecer a nossa história", defendeu.

A sessão da Comissão de Anistia, realizada na sede da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) no Rio, julgou 21 processos de universitários presos e impedidos de estudar sob a alegação de atividade subversiva, por decreto do então presidente Costa e Silva.

Direitos globais

O Globo

28/02/2009

Cristovam Buarque

Na semana passada, a Academia da Latinidade, inspirada e dirigida pelo professor Candido Mendes, realizou no Instituto Nobel para a Paz e na Academia de Ciências da Noruega um debate de três dias sobre a ética na universalização dos direitos humanos. Embora o principal tema tenha sido as relações entre cristianismo e islamismo, ao longo dos debates surgiram cinco novos direitos humanos, que ainda precisam ser globalizados.

Primeiro, o direito ao meio ambiente. É preciso que o patrimônio natural do planeta seja garantido para as gerações futuras. Esse é um direito humano tão sagrado quanto os já reconhecidos e defendidos há 60 anos, pela Declaração Universal. E vai exigir mudanças profundas no sistema produtivo e nos padrões de consumo das gerações atuais.

Segundo, o direito à migração. No mundo onde uma crise do sistema financeiro norte-americano se espalha por todos os países, onde o comércio é praticado livremente, onde um carro ligado em qualquer parte do mundo eleva a temperatura de todo o planeta, ainda há fronteiras que impedem a mobilidade das pessoas. Os pobres são impedidos de se mudar em busca de emprego em outros países. O mundo global precisa tratar a migração internacional como um direito humano fundamental, derrubar as fronteiras da migração, como derrubou as fronteiras comerciais.

Terceiro, o direito à educação. Se o capital econômico está baseado no conhecimento, e o emprego de cada pessoa depende de sua qualificação, é inaceitável que a educação de cada criança dependa dos recursos da prefeitura da sua cidade. Se os direitos proíbem a tortura, não podemos permitir que ainda existam cerca de 800 milhões de analfabetos no mundo. Nem podemos tolerar que, por falta de educação, mais de um bilhão de jovens sejam incapazes de navegar no mundo virtual que caracteriza a contemporaneidade.

O quarto direito é ao emprego. As sociedades devem se unir em torno de um grande programa mundial de geração de empregos. Obviamente, esse emprego não poderá ser imposto ao setor privado, para produzir bens para o mercado, mas pode ser criado pelo setor público para atender à demanda por bens culturais, pela recuperação do meio ambiente, pela atenção em saúde, pela educação. A Bolsa-Escola era um exemplo desse emprego social: a família era empregada para garantir que o filho estudasse.

O quinto direito é à saúde. Ao nascer no mundo global de hoje, as pessoas têm mais desigualdade no acesso à saúde, inclusive no direito a viver mais ou menos, do que tinham no passado. No século XIX, a medicina era praticamente a mesma para qualquer pessoa. No século XXI, o acesso à medicina é completamente diferente, segundo a renda da pessoa. Isso é imoral. E pode levar a uma diferenciação tão grande entre os seres humanos, que provocará o desaparecimento do conceito de semelhança. O mundo precisa definir sistemas de atendimento médico que iguale a chance de todos à saúde, sem importar em que país estão e a renda de que disponham.

Fiz a defesa desses cinco direitos durante os debates do XIX Colóquio da Academia da Latinidade, em Oslo. Creio que o Congresso Nacional deveria debater o assunto nas Comissões de Direitos Humanos da Câmara e do Senado. Ao mesmo tempo, com a liderança que adquiriu nos governos dos presidentes Fernando Henrique e Lula, o Brasil deve tentar influir no cenário internacional, nas entidades que pertencem ao sistema das Nações Unidas, para que sejam encontradas formas de realizar o que pode ainda parecer um sonho: cinco novos direitos humanos globais.

No final da grande crise de 1929 a 1945, o mundo aprovou a Declaração Universal dos Direitos Humanos e implantou o Plano Marshall, que recuperou a economia da Europa e lançou as bases para o desenvolvimento dos países do Terceiro Mundo. As crises globais deste começo de século XXI - ambiental, financeira, social - podem ser o novo tempo dos direitos humanos globais e sociais. O Brasil tem um papel a cumprir, omitir-se é fugir à responsabilidade.

CRISTOVAM BUARQUE é senador (PDT-DF).

Argentina extingue Justiça Militar

Folha de São Paulo de 28 de fevereiro de 2009




Argentina extingue Justiça Militar e libera soldado gay
Reforma garante ainda independência de opinião




A Argentina pôs em vigor ontem reforma da Justiça Militar que acabou com os tribunais especiais para militares e com punições a homossexuais nas Forças Armadas, além de eliminar a pena de morte do ordenamento jurídico local.
A partir de agora todo militar que cometer crime comum será julgado em tribunais federais, por juízes civis, e fica extinto o Código de Justiça Militar de 1951. A nova lei foi aprovada no ano passado pelo Congresso e demorou seis meses para entrar em vigor.
As mudanças integram o conjunto de medidas que o ex-presidente Néstor Kirchner (2003-2007) impulsou durante seu governo, que teve o julgamento de repressores da ditadura (1976-1983) como principal bandeira política. Orientação que vem sendo mantida por sua mulher e sucessora, Cristina Kirchner.
"É um passo adiante na Argentina e na região rumo ao controle civil das Forças Armadas", afirmou à Folha o diretor-executivo da ONG Cels (Centro de Estudos Legais e Sociais), Gaston Chillier.
Para Chillier, com a nova legislação a Argentina se coloca em um campo oposto ao do Brasil, onde a Justiça Militar ainda dispõe de grande autonomia para julgar os crimes de militares, o que enseja críticas de corporativismo.
Muitas das normas agora extintas na Argentina já não estavam vigentes na prática -o último caso de militar submetido a pena de morte, por exemplo, ocorrera em 1956. Militares que praticassem atos homossexuais continuavam, contudo, sujeitos a expulsão da corporação ou prisão por até dois anos.
A nova legislação também impõe alterações no sistema disciplinar das Forças Armadas. O militar passa a ter direito a advogado particular e a independência de opinião.
As mudanças tiveram origem no caso do capitão da reserva Rodolfo Correa Belisle, que testemunhou na Justiça comum contra superiores no caso da morte do soldado Omar Carrasco, em 1994, e foi condenado pela Justiça Militar a três meses de prisão. O episódio da morte de Carrasco, dentro de um quartel, foi determinante para o fim do serviço militar obrigatório na Argentina.
O caso Belisle foi levado à Comissão Intermericana de Direitos Humanos em 1997 por um grupo de advogados, que denunciaram a violação de direitos do militar. A Argentina negou as acusações até 2004, quando passou a negociar "solução amistosa" com a comissão, concretizada na reforma do sistema de Justiça Militar.

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

Pelo direito das vítimas

Estado de São Paulo de 22 de fevereiro de 2009
Pelo direito das vítimas
Para jurista argentino que presidiu comissão da OEA, Brasil não pode usar a Lei da Anistia de 1979 para proteger torturadores

Juan Méndez*
- A ação apresentada no ano passado por uma procuradora federal contra antigos funcionários do DOI-Codi, sobre quem pesam acusações gravíssimas de tortura, execuções e desaparecimentos forçados, sofreu recentemente um revés. Isso porque uma decisão da Justiça considerou que os crimes em questão - um dos pedidos de investigação era sobre a morte do jornalista Vladimir Herzog, ocorrida em 1975 - estavam prescritos, por causa do prazo transcorrido desde que foram cometidos. Essa é uma má notícia para o Brasil e para a causa dos direitos humanos.

A possibilidade - corajosamente aberta pelos procuradores paulistas - de o Brasil reabrir o doloroso capítulo dos crimes praticados pelas ditaduras militares, mostra que, por mais que se tente obstar a Justiça, não existe uma estratégia legal ou política que permita deixar impunes as graves violações dos direitos humanos mediante o uso de anistias ou indultos, ou alegando a prescrição dos crimes. Os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil obrigam o País a encarar esse passado de maneira resoluta, a definir as responsabilidades e rever a maneira como foi aplicada a Lei da Anistia, de 1979.

O Centro Internacional para a Justiça de Transição (ICTJ)acompanha de perto o debate interno iniciado com a iniciativa dos procuradores Marlon Weichert e Eugênia Fávero. Eles questionam a maneira como se aplicou a lei de anistia no Brasil, beneficiando funcionários públicos acusados de graves violações dos direitos humanos. O debate nacional deveria ter como resultado a adoção de medidas efetivas para se obter a verdade, a justiça e o reconhecimento para as vítimas, e ser um caminho claro para a reconciliação e a prevenção de práticas monstruosas como a tortura, a execução extrajudicial ou os desaparecimentos forçados.

Além do compromisso com a justiça, a verdade e a proteção dos direitos humanos, inerentes ao Estado de Direito, o Brasil precisa também considerar as razões jurídicas que o obrigam, como membro da comunidade internacional e Estado parte das Nações Unidas e da Organização dos Estados Americanos (OEA), a reabrir esse capítulo da sua história, por mais doloroso, polêmico ou criticado que seja o processo.

Alega-se que é impossível reabrir investigações sobre os crimes cometidos na ditadura por causa do transcurso do tempo e das anistias existentes. O direito internacional estabelece outra coisa. Foi isso que o ICTJ fez saber aos procuradores brasileiros num parecer em que explica as razões jurídicas que permitem a reabertura desses processos.

Em resumo, como se trata de crimes de lesa-humanidade, à luz dos tratados de direitos humanos ratificados pelo Brasil, esses fatos não podem prescrever com o tempo e não podem ser amparados por anistias.

Os atos cometidos durante a ditadura militar no Brasil, entre 1964 e 1985, foram crimes de lesa-humanidade. A definição desses crimes pode ser encontrada nos Princípios de Nuremberg (1950) consagrados como normas de caráter imperativo (ius cogens), o que implica sua proibição absoluta.

Da mesma maneira, a definição de crime de lesa-humanidade foi reiterada em diferentes conceitos, princípios e convenções estabelecidas após Nuremberg e consideradas normas que devem ser cumpridas pelos Estados, do mesmo modo que as normas incluídas nos estatutos dos tribunais penais ad hoc encarregados da solução de casos de violações de direitos humanos na ex-Iugoslávia e em Ruanda, como também no Estatuto da Corte Penal Internacional.

E esses princípios também foram afirmados de modo reiterado por órgãos internacionais de controle, como a Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas, e se refletem na jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

De acordo com essas regras, um único ato desumano (assassinato, tortura, desaparecimento forçado, violação, deportação, perseguição ou outro) cometido no cenário ou contexto de um ataque sistemático ou generalizado, configura crime de lesa-humanidade. Com base nos fatos ocorridos no período da ditadura militar, é claro que nos "anos de chumbo" no Brasil houve um ataque sistemático e generalizado contra a população civil, estruturado como uma política de Estado nos fatídicos Atos Institucionais, e a criação de um aparelho repressivo violento.

Os atos de sequestro, homicídio, falsidade ideológica, ocultação de cadáver, cometidos por agentes do Estado brasileiro durante o período da ditadura militar são atos desumanos que configuram crimes de lesa-humanidade, no âmbito de uma política de Estado e dirigidos contra setores da população civil. Seu caráter criminoso se baseia em normas do direito internacional que já vigoravam nos anos em que esses atos foram cometidos. É essa argumentação que permite assegurar que, embora tenham transcorrido mais de 20 anos, o Brasil tem que examinar os arquivos da ditadura e abrir processos judiciais para esclarecer as violações cometidas. Isso porque essas violações continuam vigentes, conforme a resolução 2338 da Assembleia-Geral das Nações Unidas e a convenção sobre a imprescritibilidade dos crimes de guerra e de lesa-humanidade.

De acordo com a Comissão de Direitos Humanos e a Corte Interamericana, as leis de anistia para violações graves de direitos humanos e crimes de lesa-humanidade impedem a investigação dos fatos e perpetuam a impunidade. Há uma posição unificada do sistema universal e do sistema interamericano de direitos humanos que considera que essas leis são contrárias a princípios de caráter universal e violam os tratados internacionais de direitos humanos, entre eles o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Igualmente, tribunais nacionais de instâncias superiores em países como Argentina, Chile, Peru e Colômbia decidiram que anistias, indultos e absolvições não podem impedir o cumprimento do dever do Estado de investigar e punir os crimes de lesa-humanidade cometidos em seu território por seus agentes. O cumprimento da sua obrigação internacional de persegui-los e puni-los, abstendo-se de usar a prescrição ou a existência de leis de anistia como justificativa para não fazê-lo, é a única posição adequada. De outra maneira, a afirmação por antinomia seria a de que o Estado viola deliberadamente seus compromissos internacionais.

As opções são claras: ou o Brasil decide comportar-se como um autêntico Estado de Direito, que respeita as obrigações internacionais consagradas na sua Carta Constitucional ou, pelo contrário, prefere enviar um perigoso sinal de impunidade a todos os que, em posições de poder, são capazes de abusar dos seus concidadãos.

*Ex-presidente da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA e diretor do Centro Internacional para a Justiça de Transição (ICTJ). Este artigo contou com a colaboração do escritório do ICTJ em Bogotá

sábado, 21 de fevereiro de 2009

Comissão da verdade nos Estados Unidos

El Pais de 21 de fevereiro de 2009
Comisión de la verdad en Estados Unidos
El senador Leahy propone investigar posibles violaciones a las leyes y a la Constitución en la etapa de Bush. Es el mejor modo de evitar en el futuro horrores como Guantánamo, los vuelos secretos de la CIA y la tortura

Desde los juicios de Nuremberg y hasta los que puedan producirse en Cuba dentro de algún tiempo, un reto decisivo propio de todo tránsito, en una etapa (bélica o política) caracterizada por violaciones horrorosas (el primer caso) o simplemente reprobables (el segundo caso), a los derechos humanos ha sido el ajuste de cuentas con el pasado.


Obama no oculta sus reservas ante esta iniciativa; prefiere "mirar hacia adelante"
Nuremberg sentó precedentes -los ejecutantes no pueden invocar la obediencia debida- y en América Latina se ha pasado por diversas variantes de las comisiones de la verdad en Argentina (Nunca Jamás, de Sábato), en Chile, en Uruguay, en El Salvador, en Guatemala y en México a medias. Quizás una de las más conocidas y más acreditadas haya sido la Comisión de la Verdad y de la Reconciliación establecida por Nelson Mandela en Suráfrica y presidida por Desmond Tutu, aunque no quedó a salvo de críticas importantes en torno a sus disposiciones de indulto a cambio de confesiones y de debilidad de acciones punitivas. Que el tema sigue vigente me lo confirmó hace unas semanas un presidente latinoamericano, personalmente cercano a los círculos gobernantes cubanos, quien me argumentaba, con resignación, que el gran obstáculo para cualquier paso a la democracia representativa en la isla reside en el terror de la dirigencia habanera ante el juicio y castigo eventual por sus posibles sucesores.

Por eso, resulta tan interesante la idea formulada hace unos días por el senador norteamericano Patrick Leahy, procedente del Estado de Vermont, y que además de presidir el Comité Judicial de esa cámara es uno de los integrantes más progresistas de la misma. Leahy propuso la creación de una Comisión de la Verdad para investigar las posibles violaciones a las leyes y a la Constitución por la Administración Bush. Dichas violaciones, que evidentemente encerrarían atropellos a los derechos humanos, se centrarían en el tema de la tortura (sobre todo el recurso al llamado water boarding, mas no limitado a ello), los centros de detención (principal, mas no únicamente Guantánamo), las llamadas entregas extraordinarias, que incluyeron aparentemente el sobrevuelo y escalas de aviones de la CIA en España (a Arabia Saudí, mas no exclusivamente a ese país) y otros abusos cometidos o palomeados por ex altos funcionarios como el vicepresidente Cheney, el secretario de la Defensa, Rumsfeld, y el procurador general, Gonzales.

Leahy, junto con algunos senadores más que apoyan la sugerencia como Sheldon Whitehouse de Road Island, y el representante John Conyers, presidente del Comité Judicial de la Cámara Baja, así como partidarios de la propuesta en la comunidad de derechos humanos, consideran que una Comisión de la Verdad, quizás semejante a la surafricana, dotada de poderes de presentación de personas y documentos, y de indulto, pero carente de la facultad del ejercicio de la acción penal, sería a la vez deseable y necesaria. Lo sería, en primer lugar, porque la acusación, consignación y juicio a través de los canales judiciales ordinarios, aunque sea posible, probablemente no desemboque en condenas y sentencias, sobre todo por razones de procedimiento; y en segundo lugar, porque consideran que la única manera de estigmatizar y prohibir, en el futuro, acciones semejantes a las del Gobierno de Bush consiste en investigarlas y castigarlas de esta manera para revocarles cualquier vigencia con precedentes aceptables. También creen, con bastante razón, que el resto del mundo jamás creerá en la rectificación y el arrepentimiento estadounidenses hasta que no se ajusten cuentas con el pasado, lo cual sólo puede lograrse, en esta perspectiva, a través de algún tipo de catarsis de "saber y publicitar", sino de "castigar".

Abundan las objeciones, por supuesto, y algunas de ellas, sin duda, explican las reservas del presidente Obama, que ha reaccionado insistiendo en que prefiere mirar hacia adelante, que hacia atrás. La primera objeción estriba justamente en que este procedimiento hace hincapié en el pasado, y en vista del rechazo virulento que la idea misma ha provocado entre varios miembros del Partido Republicano, resulta obvio que no sería conducente a cualquier tipo de bipartidismo, en el tema que fuera. En segundo lugar, si una comisión de esta índole fuera a acusar a alguien, o si sus conclusiones provocaran la consignación de alguien, pero dichos esfuerzos fracasaran antes de llegar a la sentencia, el episodio constituiría una especie de rehabilitación del Gobierno de Bush, y dejaría el respeto por los derechos humanos y por la ley más desacreditado que antes. La consigna de "dejar que los muertos entierren a los muertos", tema de un enorme debate reciente en España, no carece de méritos, aunque denigrar la investigación del pasado alegando que EE UU no es América Latina y que todo esto recoge un retintín tercermundista representa justamente el tipo de actitud que hundió a EE UU en el desprestigio que hoy padece en el mundo entero.

El que escribe pudo participar directamente en los debates que tuvieron lugar en México a principio de la Administración anterior sobre la creación de una Comisión de la Verdad. Junto con Adolfo Aguilar Zinser (DEP), fuimos los únicos integrantes del Gabinete del presidente Fox a favor de este camino. Pensábamos que en un mundo ideal, las pesquisas en torno al conjunto de abusos acontecidos durante los 70 años del régimen autoritario del PRI no debían circunscribirse a las violaciones de los derechos humanos (masacres: del 68, 10 de junio del 71, Acteal, Aguas Blancas, etcétera; desapariciones y tortura), sino abordar también los abusos de poder político y la corrupción. Pero aun limitando la mirada hacia atrás al tema de los derechos humanos, habría constituido un enorme paso hacia delante.

Las ventajas de una Comisión de la Verdad en México se antojaban evidentes. Se trataría de castigar a los autores de crímenes en el pasado; de establecer una ruptura con ese pasado, demostrándole a las familias de las víctimas, a la sociedad mexicana y a la comunidad internacional que, efectivamente, comenzaba una nueva era en México en materia de respeto a los derechos humanos, reconociendo que las instituciones judiciales del país, precisamente porque pertenecían a la era anterior, resultaban insuficientes para enfrentar estos desafíos.

Los inconvenientes también parecían evidentes: actuar de esa manera antagonizaría de manera ineludible al viejo partido en el poder, imposibilitando cualquier alianza con el PRI y condenado al nuevo Gobierno a la impotencia, dada su falta de mayoría en ambas Cámaras. La comunidad empresarial, la Iglesia, las fuerzas armadas, y quizás incluso los EE UU, no contemplaban con buenos ojos cualquier intento de remover los escombros del pasado, sobre todo si se trataba de excesos de los cuales hubieran sido cómplices. De cualquier manera, los retos ante el nuevo Gobierno eran de tal magnitud que los poderes fácticos mexicanos concluyeron que debiera concentrar su energía en el presente y en el futuro, no en el pasado. Sabemos hoy que Fox, al igual que el actual presidente de México, y aparentemente en compañía de Obama también, no obtuvieron ningún apoyo de sus respectivas oposiciones a cambio de su magnanimidad. Ahí hay una lección importante.

En esta batalla alcanzamos una especie de empate técnico. Se creó una Fiscalía Especial para investigar los crímenes del pasado, por un periodo muy definido, con magros recursos, y con un mandato ambiguo en materia de indulto, testigos protegidos y acceso obligatorio a documentos y testimonios. Al final decepcionaron los resultados, en gran medida porque los escasos intentos de juicio (por ejemplo, del ex presidente Luis Echeverría o contra el ex jefe de Seguridad Miguel Nassar Haro) fracasaron.

La enseñanza que el autor sacó de esta experiencia, que puede o no ser pertinente para EE UU -y otros países, por cierto-, es que si bien las medidas a medias jamás son idóneas, y en ocasiones pueden ser contraproducentes, son mejor que nada. La peor de las opciones reside en perpetuar la impunidad; casi siempre, las instituciones existentes, por el mero hecho de haber permitido los crímenes del pasado, son incapaces de investigarlos y castigarlos en el presente, o de impedirlos en el futuro.


Jorge Castañeda, ex secretario de Relaciones Exteriores de México, es profesor de Estudios Latinoamericanos en la Universidad de Nueva York

Pesquisa sobre transgênico é limitada

Folha de São Paulo de 21 de fevereiro de 2009

Agricultores que compram sementes modificadas têm sido impedidos de fornecer amostras a cientistas, diz relatório enviado à agência



Empresas de biotecnologia estão impedindo cientistas independentes de pesquisar a eficácia e o impacto ambiental de plantações geneticamente modificadas, afirma um relatório encaminhado ao governo americano por um grupo de 26 pesquisadores de universidades.
"Nenhuma investigação independente pode ser conduzida de forma legal em muitas questões críticas", escreveram os cientistas na declaração apresentada à EPA (Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos), que está recolhendo opiniões para pautar uma série de encontros científicos que realiza nesta semana sobre transgênicos.
A declaração vai provavelmente dar força aos críticos dessas plantações, como grupos ambientalistas que há muito queixam-se de que transgênicos não têm sido suficientemente estudados e que poderão ter consequências inesperadas à saúde e ao ambiente.
Os autores do novo manifesto, especialistas em insetos de milharais, não divulgaram seus nomes porque receavam ser cortados de pesquisas pelas empresas. Mas vários deles concordaram em dar entrevistas e ter seus nomes utilizados.
O problema, dizem os cientistas, é que os agricultores e outros compradores de sementes geneticamente modificadas têm de assinar um acordo para garantir que honrarão os direitos de patentes e os regulamentos ambientais. Mas os acordos também proíbem o cultivo das culturas para fins de pesquisa.

Permissão negada
Dessa forma, enquanto cientistas de universidades podem comprar livremente pesticidas ou sementes convencionais para suas pesquisas, não podem fazer o mesmo com sementes geneticamente modificadas.
Em vez disso, devem solicitar autorização das empresas de sementes. E, às vezes, a permissão é negada ou a empresa insiste em rever as conclusões antes de poderem ser publicadas, afirmam os pesquisadores.
Esses acordos são problemáticos há muito tempo, mas os cientistas disseram ter ido a público agora porque suas frustrações foram se acumulando.
"Se as empresas podem controlar a pesquisa, elas podem esconder possíveis problemas que apareceriam em qualquer estudo", diz Ken Ostlie, professor da Universidade de Minnesota, um dos cientistas que assinaram a declaração.
O mais surpreendente é que os cientistas que fizeram o protesto -a maioria deles afiliados a universidades com grandes programas em agrociências- dizem não ser opositores do uso da biotecnologia.
Entretanto, dizem, a asfixia provocada pela indústria sobre as pesquisas faz com que eles não possam fornecer algumas informações para os agricultores sobre a melhor maneira de cultivar as lavouras.
E, afirmam, os dados fornecidos a órgãos reguladores do governo estão sendo "indevidamente limitados". As empresas "têm o potencial de maquiar os dados, a informação que é submetida à EPA", afirma o entomologista Elson J. Shields, da Universidade Cornell.

Licença interrompida
Os acordos da Syngenta com os agricultores não só proíbem a pesquisa em geral mas também dizem que um comprador de semente não pode comparar um produto da empresa com qualquer outra cultura rival.
Ostlie, conta que, ainda em 2007, tinha permissão de três empresas para comparar a maneira com que as variedades de milho resistentes a insetos se saíam contra uma larva de besouro que ataca a cultura.
Mas, em 2008, a Syngenta, uma das três empresas, retirou sua permissão, e seu estudo precisou parar. "A empresa decidiu que não era de seu interesse deixar que a pesquisa continuasse", afirmou.
Chris DiFonzo, da Universidade Estadual de Michigan, disse que, quando conduz suas pesquisas em insetos, evita entrar em campos com culturas transgênicas porque sua presença faria com que os agricultores violassem os acordos e ficassem sujeitos a processo.

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

A hora e a vez do novo Estado

Valor Econômico

19/02/2009

Marcio Pochman

A crise mundial torna mais evidente o conjunto de equívocos que resulta da recente experiência neoliberal. Os países que mais longe avançaram o princípio da autorregulação das forças de mercado e da desregulamentação do Estado encontram-se entre os mais frágeis e vulneráveis no contexto atual de turbulências e incertezas globais.

Fácil imaginar como a economia brasileira estaria débil e à deriva se a trajetória privatista e de inserção externa subordinada aos interesses dos países ricos dos anos 90 não tivesse sido interrompida. Sem bancos públicos (BB, CEF, BNB e BNDES) e empresas estatais, como Petrobras e Eletrobrás, por exemplo, o Brasil não teria a mínima condição de responder imediata e positivamente à crise do crédito e do investimento privado. Países que se desfizeram de bancos e empresas públicas, como o caso argentino, convivem hoje com maiores dificuldades para enfrentar afirmativamente a crise. No Brasil, a fase da privatização implicou reduzir a participação dos bancos públicos de mais de 50% para quase um terço da disponibilidade total do crédito doméstico, enquanto a transferência para o setor privado de empresas estatais respondeu por 15% do PIB e pela destruição de mais de 500 mil postos de trabalho. Em valor, o processo de privatização brasileiro somente conseguiu ser inferior à experiência soviética, com parte significativa do setor produtivo estatal sendo capturado pelo capital estrangeiro.

Da mesma forma, a opção política pela diversificação comercial permite ao Brasil o reposicionamento no mundo com soberania, bem diferente das economias com exportações concentradas em poucos países, como parece indicar o México, com mais de 80% do comércio externo só com os EUA. A recessão nos países ricos contamina mais facilmente aquelas nações dependentes de suas trocas externas.

Para o Brasil, o peso dos países ricos no comércio externo encontra-se pouco acima de 40%, quando nos anos 90 era de mais de 67% do total. Estas constatações sobre o país em relação a outras nações descrevem resumidamente uma situação melhor, porém ainda insuficiente para indicar a necessária construção de novo caminho a ser percorrido. Isso porque se tem presente que o neoliberalismo cometeu o seu haraquiri, não tendo sido superado - até o momento - pelo estabelecimento de projeto econômico e social alternativo. As respostas à crise do capital globalizado podem até ser transformadas numa etapa de desenvolvimento do novo padrão civilizatório, mas ainda estão distante disso.

De maneira geral, percebe-se que o Estado reaparece como elemento central do enfrentamento à turbulência mundial, embora ainda desfalcado da perspectiva transformadora de oportunidades e desafios do Século XXI. A reprodução dos tradicionais traços do padrão de Estado dos últimos 100 anos indica tão-somente o aprofundamento da organização por funções setoriais (caixinhas), cada vez mais ineficientes, quando não concorrentes entre si e à margem do potencial das forças do mercado. Adiciona-se a isso o acúmulo das variadas ondas de "choques de gestão" internalizadas pela administração do Estado, que produziram tanto a regressão da capacidade e sistematicidade de grande parte das políticas como o esvaziamento da própria função pública. Por um lado, o corte do funcionalismo e de sua remuneração procedido pela internalização de métodos privados acirrou a competição na função pública e fortaleceu a autonomização setorializada e não convergente das políticas adotadas pelo conjunto do governo. Como na lógica privada, o todo deu lugar a partes, trazendo consigo a prevalência da visão e ação de curto-prazismo no interior da função pública. O planejamento e o compromisso de longo prazo foram substituídos por uma sucessão irracional de programas e projetos pilotos que, alterados constantemente pelas autoridades de plantão, fizeram com que o Estado fosse abandonando o sentido estruturador do padrão civilizatório fora da emergência do curtíssimo prazo. Por outro lado, a estabilidade da esfera pública foi sendo contaminada pela lógica da eventualidade, amplamente acolhida pelo curso da terceirização das funções e da contratação de mão-de-obra. Assim, o Estado foi-se comprometendo com repasses crescentes de recursos a instituições - algumas nem sempre decentes (fundações, ONG's e cooperativas) - portadoras de flexibilidade para o exercício dos desvios da função pública. Assim, orçamentos e licitações tornaram-se, muitas vezes, o espaço privilegiado para manifestação da força dos interesses privados, negociatas e maior corrupção. Em síntese, a emergência da corrosão do caráter da função pública, posto que o tradicional funcionário de Estado, demarcado pelo profissionalismo e meritocracia, passou a dar lugar - em algumas vezes - ao comissionado e ao corpo estranho dos terceirizados.

O novo Estado precisa ser construído. Ele deve ser o meio necessário para o desenvolvimento do padrão civilizatório contemporâneo em conformidade com as favoráveis possibilidades do Século XXI. A sociedade pós-industrial, com ganhos espetaculares de produtividade imaterial e expectativa da vida ao redor dos 100 anos de idade, abre inédita e superior perspectiva civilizatória: educação para a vida toda, ingresso no mercado de trabalho depois de 25 anos, trabalho menos dependente da sobrevivência e mais associado à utilidade e criatividade sócio-coletiva. Para além das exigências do Século XX, que conformaram tanto o Novo Estado Industrial (J. Kenneth Galbraith) como o Bem-Estar Social (K. Gunnar Myrdal), encontra-se em curso novos e complexos desafios que exigem profunda reforma estatal.

Três grandes eixos estruturadores do novo Estado precisam ser perseguidos com clareza e efetividade. O primeiro diz respeito à constituição de novas institucionalidades na relação do Estado com o mercado. Alavancada pela experiência neoliberal, o mercado enfraqueceu as bases de promoção da competição, cada vez mais sufocadas pelo predomínio da monopolização expresso pelos vícios privados das grandes corporações transnacionais.

O esvaziamento da competição precisa ser rapidamente combatido com novas instituições portadoras de futuro, capazes de garantir a continuidade da inovação por meio da concorrência combinada com a cooperação entre empreendedores e da maior regulação das grandes corporações empresariais. O segundo grande eixo estruturador do novo Estado deve resultar da revolução na propriedade que impulsione uma relação mais transparente, democrática e justa com toda a sociedade. Neste caso, a ampliação do fundo público se faz necessária para sustentar o padrão civilizatório do Século XXI, a partir da tributação sobre o excedente adicional gerado por novas fontes de riqueza, que por serem intangíveis escapam crescentemente das anacrônicas bases arrecadatórias vigentes há mais de 200 anos. Por fim, o terceiro eixo reside na profunda transformação do padrão de gestão pública. Políticas cada vez mais matriciais e intersetoriais pressupõem a organização do Estado em torno do enfrentamento de problemas estruturais e conjunturais. Noutras palavras, a meritocracia e o profissionalismo para conduzir ações públicas articuladas para lidar com problemas estruturais e políticas governamentais descentralizadas e compartilhadas com a sociedade e mercado para enfrentar diversos e específicos problemas conjunturais. Urge fazer do Estado do futuro o experimentalismo do presente. Muito mais do que anunciar as dificuldades da crise global, cabe ressaltar as oportunidades que dela derivam como a realização de uma profunda reforma do Estado que viabilize o alcance das condições pós-crise para sustentação do novo desenvolvimento ambiental, econômico e social.

Marcio Pochmann é presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e professor licenciado do Instituto de Economia e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Universidade Estadual de Campinas. Escreve mensalmente às quintas-feiras.

Camboja - Justiça para quem?

Jornal do Brasil

18/02/2009

Nic Dunlop, autor da biografia de Duch

Há exatamente 10 anos, descobri o torturador-chefe de Pol Pot morando no oeste do Camboja. O camarada Duch falou sinceramente sobre seu papel durante o reinado do terror do Khmer Vermelho.

– Fiz coisas muito ruins em minha vida – admite. – As mortes precisam ser compreendidas.

A partir da minha descoberta e da confissão extraordinária dele, Duch foi preso. Esta semana, depois de três anos de operações, Duch é o primeiro a ir a julgamento no tribunal da Organização das Nações Unidas em Phnom Penh.

Entre 1975 e 1979, mais de 1,7 milhão de pessoas morreram nas mãos do Khmer Vermelho. Por percentual da população, o Khmer Vermelho promoveu os assassinatos em massa mais eficazes da história moderna, sendo responsável pelo número de mortes que ofusca o dos holocaustos na Alemanha nazista e em Ruanda juntos.

Levaram 30 anos para o Khmer Vermelho ir a julgamento. Depois de o regime de Pol Pot ser substituído pelo vietnamita em 1979, a justiça foi deixada de lado pelos interesses concorrentes da China, dos EUA e da União Soviética. O Khmer Vermelho continuou a ser reconhecido como representante legal do Camboja na ONU e os EUA apoiaram uma coalizão de guerrilha que eles dominaram.

Quando a Guerra Fria acabou, o Khmer Vermelho continuou a luta por poder. Nos anos 1990, o governo cambojano garantiu anistias para desertores do Khmer Vermelho e a justiça foi trocada pela paz. Nem todos os crimes de Duch serão investigados. O mandato para esse tribunal foi limitado ao período de 1975 a 79, quando o Khmer Vermelho detinha o poder. Mas a chacina, segundo Duch, começou anos antes.

Soube de uma prisão secreta do Khmer Vermelho chamada M-99, aberta dois anos antes de Pol Pot chegar ao poder. Duch enviou prisioneiros para lá. Encontrei recentemente o local e conheci uma sobrevivente de 81 anos chamada Sao Yeng.

Milhares foram mortos na M-99 incluindo o filho dela e sua esposa. Ele foi acusado de perder a enxada deliberadamente. Yeng descreveu como ele gritou pedindo a ajuda dela enquanto era torturado. Ele morreu depois. É incrível como, apesar do julgamento iminente de Duch, Sao Yeng ainda não tinha ouvido falar sobre o tribunal. A ligação de Duch com a prisão continua nebulosa e Sao Yeng não reconheceu a fotografia dele. Não havia razão para tal.

O Khmer Vermelho era obcecado pela discrição. Para a maioria das pessoas que viveram o horror, a experiência delas era localizada e a população se mantinha ignorante. Ainda não se sabe qual a estrutura da liderança e como as ordens para os assassinatos foram levadas a cabo.

Por causa da posição como executor-chefe de Pol Pot, Duch pode explicar a tomada de decisões para as mortes e confirmar, como fez comigo, que assassinatos em massa eram política. Isso o torna não só um forte candidato a ser processado, mas também uma testemunha-chave para os trabalhos internos do regime de Pol Pot. Mas a M-99 não foi investigada pelo tribunal e não deve ser parte do julgamento de Duch. Já existe evidência suficiente para condenação. Mas isso vai satisfazer pessoas como Sao Yeng?

Disseram-me diversas vezes que esse tribunal era para pessoas do Camboja. Será? De acordo com um relatório recente do Centro de Direitos Humanos da Universidade da Califórnia em Berkley, 85% da população têm pouco ou nenhum conhecimento do tribunal. O custo total do tribunal é de US$ 143 milhões. O orçamento para explicar suas atividades aos cambojanos é de apenas US$ 50 mil por ano. Se explicar esse processo às pessoas é fundamental, como me disseram, isso não está refletido no orçamento.

O tribunal também tem de levantar os padrões do judiciário cambojano, mas continua, em vez disso, a ser acusado de corrupção, interferência política e falta de transparência. Se ele explicasse claramente seus procedimentos para as pessoas comuns, elas estariam numa posição melhor para serem capazes de julgar se o processo é corrupto, se sofre interferência política e se a justiça está, de fato, sendo feita em nome deles.

Explicar os procedimentos das atividades do tribunal devia ser o mais importante. Sem isso, o tribunal corre o risco de se tornar irrelevante a menos que se torne mais acessível aos cambojanos. As pessoas se perguntam o tamanho da sinceridade dos doadores internacionais e do governo em relação a conceder uma justiça verdadeiramente significativa se poucos a entendem.

O maior desafio para este tribunal é demonstrar um processo que possa ser compreendido, e não apenas conceder um punhado de condenações.

Maior presença do setor público minimiza efeitos globais da crise

Gazeta Mercantil

18/02/2009
Viviane Monteiro


Brasília, 18 de Fevereiro de 2009 - A Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad) defendeu mais intervenção do setor público na economia a fim de minimizar os impactos da crise no Brasil e no resto do mundo. O economista da divisão de Globalização e Estratégias de Desenvolvimento do organismo, Alfredo Calcagno, disse que se deve adotar políticas expansivas e de menor taxa de juros. "É preciso que o Estado compense a redução prevista do investimento privado; essa crise não se resolve com o livre mercado", destacou em sua palestra no seminário "Crise Econômica Internacional", promovido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em Brasília.

"A gente propõe uma política monetária expansiva e, principalmente, uma política fiscal expansiva, pois achamos que é através do gasto fiscal que os países podem tentar manter um processo de crescimento este ano, apesar de ser menor do que os de 2007 e 2008", disse o economista. Segundo ele, esse não é o momento para se adotar políticas de ajustes econômicos para acalmar o mercado.

O diretor do Centro de Estudos de Relações Econômicas Internacionais do Instituto de Economia da Universidade de Campinas (Unicamp), José Carlos Braga, criticou as iniciativas dos bancos centrais. Segundo ele, as autoridades tentam evitar a ruptura do sistema financeiro, mas não conseguem injetar crédito no sistema e nem tampouco atender às necessidade de crédito à população. O professor da Unicamp defendeu a estatização do sistema financeiro. "É preciso se criar um banco público para se conceder crédito (à população)".

Já o diretor da Comércio Internacional e Integração da Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (Cepal), Osvaldo Kacef, alertou para a questão dos déficits públicos e da redução do comércio exterior que limitam a implantação de políticas anticíclicas no bloco. Além disso, ele ressaltou que as reservas internacionais estão mais voláteis por estarem aplicadas em investimentos de curto prazo.

No entanto, para o economista da Unctad, Calcagno, a situação da economia da América Latina, aparece "relativamente" menos afetada pela crise mundial. Porém, destacou que o bloco será prejudicado de qualquer jeito. "O dinamismo do comércio mundial está caindo. Os preços das matérias-primas e de produtos de exportação caíram significativamente. E as remessas dos trabalhados que moram nos países desenvolvidos deixaram de crescer", justificou ele.

Calcagno discorda de que a "política expansionista" defendida pela Unctad possa gerar picos inflacionário futuramente. "O risco inflacionário não existe", descartou.

Segundo Calcagno, o risco inflacionário tem sido superdimensionado no mundo. "Mesmo diante do momento em que parecia que existia um risco no início de 2008, a gente considerava que era mais um choque de oferta e que era pontual, pois estava vinculado ao alto preço de energia e de produtos agropecuários. Agora os preços caíram e a demanda mundial também está caindo o risco inflacionário não existe".

O economista que defende a redução do juros disse que a implantação da "política monetária expansionista" é limitada, sobretudo nos países desenvolvidos. É o exemplo do Japão, onde "não se pode reduzir mais juros; e dos Estados Unidos, onde a taxa já está quase em zero". Porém, ele avalia que há espaço para se reduzir o juro na América Latina, inclusive no Brasil. Porém, disse que a implantação de uma política monetária "relativamente expansionista" não é suficiente para haver a retomada da economia. Além do aumento dos gastos públicos na economia, ele defendeu políticas de redução de impostos e de distribuição de renda para classes desfavorecidas.

A Organização Internacional do Trabalho (OIT) defendeu melhoria na política social e a extensão do aumento do teto da parcela de seguro-desemprego para todos os trabalhadores brasileiros. Fora isso, cobrou a obrigatoriedade do benefício para as empregadas domésticas, com o objetivo de reduzir o impacto da crise mundial no mercado de trabalho do Brasil. "Por que no Brasil não há seguro desemprego (obrigatório) paras as empregadas domésticas?", questionou a pesquisadora do departamento de estratégia de emprego da OIT no Brasil, Janine Berg, no seminário

Janine vê risco no aumento da informalidade, na taxa de desemprego, nos índices de pobreza e deterioração do padrão de vida melhorado nos últimos anos. Dessa forma, ela defendeu a extensão do teto do seguro-desemprego, de cinco meses para sete meses, para todos os trabalhadores do Brasil. E criticou a atitude do governo de selecionar apenas alguns setores que teriam sido os mais prejudicados pelos impactos da crise, cujo impacto seria de R$ 1,1 bilhão. Segundo ela, apenas 2/3 dos trabalhadores formais recebem o seguro desemprego no Brasil. Hoje existem 35,5 milhões de empregados com carteira assinada.

Janine vê também espaço para aumentar os benefícios do programa Bolsa Família, para o qual o governo desembolsa apenas R$ 12 bilhões anuais, o equivalente a 11,1 milhões de beneficiados. A cifra representa apenas 0,4% do PIB. Enquanto isso, na China, disse a pesquisadora o governo estendeu os benefícios sociais para 30 milhões de pessoas. No Brasil, benefícios oscilam de R$ 20 a R$ 182 mensais.

Segundo ela, assistência social reduz a pobreza e estimula a economia, porque representa mais gastos por parte da população.

O pacote de Obama

O economista da Unctad, Calcagno, apoiou o pacote do presidente dos EUA, Barack Obama - firmado ontem - para socorrer a economia. "O que a administração americana está fazendo agora é muito necessário. E cobre muitos aspectos", disse, porém reconheceu que existe resistência às medidas. "Elas têm recebido críticas em relação à sua imprecisão, pois ainda não se sabe muito bem como vai se conseguir expandir o crédito, se vai conseguir limpar os bancos com seus ativos tóxicos", disse.

(Gazeta Mercantil/Caderno A - Pág. 11)(Viviane Monteiro)

Projeto criando seguro ambiental

Jornal Valor Economico de 19 de fevereiro de 2009 noticia:

Projeto cria seguro ambiental obrigatório


Uma nova e polêmica proposta na área da legislação ambiental pode chegar ao Congresso Nacional neste ano: a criação da obrigatoriedade de contratação de seguros de responsabilidade civil para a cobertura de danos ao meio ambiente. O tema está em estudo na Superintendência de Seguros Privados (Susep) e prevê a criação de uma companhia estatal, com participação da iniciativa privada, que garantiria a cobertura de danos ambientais às empresas, que, por sua vez, teriam a obrigação de contratá-la, sob pena de não conseguirem licenciamentos para iniciar suas obras. Se aprovado na Susep, o próximo passo do anteprojeto é seu encaminhamento ao Congresso, onde dois projetos sobre o tema tramitam desde 2003 - um deles, no entanto, foi arquivado pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados.

O tema já tem sido discutido em diversos países. Nos Estados Unidos e na Europa, o seguro ambiental não é compulsório, mas o segmento está em expansão. Já a Argentina passou a exigir, desde o ano passado, a contratação do seguro. No Brasil, os projetos já existentes nesse sentido - o já arquivado Projeto de Lei nº 937, e o Projeto de Lei nº 2.313, de 2003, proposto pela organização não-governamental Atitude e que ainda tramita na Câmara - condicionam a concessão de licenças ambientais à contratação de seguros de responsabilidade civil por danos ambientais, auditoria ambiental e contratação de técnicos especializados para acompanhar o empreendimento. Os projetos foram alvo de críticas de empresas pelo fato de não apontarem os limites e a forma de liquidação dos sinistros, o que os tornaria de difícil realização para as empresas e seguradoras.


A principal diferença da nova proposta, elaborada por procuradores federais e ainda pendente de avaliação na Susep, é a criação da "Seguradora Ambiental do Brasil", subordinada ao Ministério da Fazenda, por intermédio do poder de polícia administrativo do Conselho Nacional de Seguros Privados (CNSP) e da Susep, e com participação da iniciativa privada. De acordo com o procurador federal representante da Susep Guilherme Baldan Cabral dos Santos, um dos autores do projeto, tanto as pessoas físicas quanto as pessoas jurídicas estariam obrigadas ao seguro, em proporções diferentes que variam conforme o risco ambiental da atividade envolvida, no caso das empresas. Em um primeiro momento, a seguradora repararia o dano ambiental e, caso comprovado que ele foi causado por culpa de uma conduta inadequada da empresa, e não por um fenômeno natural, seria possível que a entidade ajuizasse uma ação regressiva na Justiça contra a empresa. Segundo Santos, a arrecadação da seguradora funcionaria nos moldes do Seguro Obrigatório de Veículos Automotores de Vias Terrestres (DPVAT). "Estamos baseados no artigo 225 da Constituição Federal, que determina ao poder público e à coletividade defender o meio ambiente e preservá-lo para as gerações futuras", diz Santos.


Como o projeto está em fase inicial na Susep, sua viabilidade ainda não foi discutida. Para o advogado João Luiz Cunha dos Santos, do escritório Carlos Mafra de Laet Advogados e que atua no mercado de seguros há 29 anos, a implantação da proposta com a consequente criação da seguradora estatal seria possível. Segundo ele, o mercado de seguros ambientais ainda é muito pequeno e não está preparado para absorver a demanda em caso de se tornar obrigatório. "Em uma segunda fase, o mercado poderia competir com a estatal, assim como ocorreu com o fim do monopólio no mercado de resseguros", diz Cunha. O advogado se refere ao IRB Brasil Re, empresa do governo que tinha o monopólio do setor até abril do ano passado - atualmente, já existem 42 corretoras atuando no segmento no país. "A fiscalização será muito importante para que o projeto se cumpra", diz Cunha.


Outra novidade da proposta é a previsão de vinculação com acordos internacionais relacionados ao meio ambiente, com a chancela das Organizações das Nações Unidas (ONU), para permitir que a estatal receba doações a um fundo garantidor de reservas técnicas de instituições estrangeiras, que teriam como contrapartida a aquisição de créditos de carbono. "Seria uma boa forma de atrair investimentos para o Brasil", diz Santos, co-autor da proposta.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

O retorno do protecionismo

Época

16/02/2009

José Fucs
Quase todos os países estão adotando medidas nacionalistas. É uma reação compreensível em época de recessão. Mas é ruim para todo o mundo

Na quarta-feira, enquanto o mercado financeiro ainda digeria seu plano de resgate dos bancos, o novo presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, viveu um momento de alívio. Depois de um vaivém no Congresso que chegou a colocar em xeque sua capacidade de tirar o país da crise atual, o Senado e a Câmara dos Deputados dos EUA anunciaram um acordo para aprovar o pacote de estímulo à economia apoiado por Obama. A aprovação do pacote – a outra perna das medidas anunciadas por seu governo para enfrentar a crise – renova as expectativas de que a atividade econômica americana, que registrou uma queda anualizada de 3,4% no último trimestre de 2008, a maior desde 1982, comece a reagir (leia a reportagem à pág. 70). “Fico muito agradecido pelo Congresso ter entendido a urgência que o momento atual exige”, disse Obama, ao comentar o acordo.

Embora tenha sofrido algumas modificações no Legislativo e seu valor tenha sido reduzido dos US$ 920 bilhões desejados por Obama para US$ 789 bilhões, o pacote teve suas linhas principais preservadas. Do valor total, US$ 507 bilhões vão para investimentos e US$ 282 bilhões serão aplicados em incentivos fiscais e cortes de impostos. O pacote inclui US$ 150 bilhões para projetos de infraestrutura, medidas de estímulo ao desenvolvimento de fontes alternativas de energia e políticas sociais (leia o quadro ao lado). Mas a manutenção de um dispositivo aprovado pela Câmara e mantido pelo Senado no texto final do projeto preocupa os analistas e uma boa parte dos líderes internacionais.

O dispositivo, conhecido em inglês como “Buy American”, prevê uma reserva de mercado para alguns produtos americanos – ferro, aço e manufaturados – em todos os empreendimentos que envolvam dinheiro do pacote. O texto original da Câmara, que previa sua aplicação incondicional, foi atenuado no Senado. Agora, a aplicação deverá ser subordinada aos tratados internacionais assinados pelos EUA. Mas sua essência foi mantida e ninguém sabe dizer ao certo o que a ressalva introduzida pelo Senado significa na prática. Embora Obama tenha se manifestado contra a medida, tudo leva a crer que ele não deverá vetá-la. O que menos Obama deseja no momento é arrumar confusão com o Congresso.

A inclusão da reserva de mercado no pacote americano fez crescer em todo o mundo o receio de que a crise atual estimule uma nova onda de protecionismo. Um dos maiores símbolos dessa onda foi o movimento “Buy American” original, da década de 1980. Naquela época, os Estados Unidos foram invadidos por produtos japoneses melhores e mais baratos que os similares americanos. Quando a recessão atingiu o país, em 1982, os americanos erroneamente culparam os produtos japoneses. O movimento não foi bem-sucedido. Só no fim da década, os americanos retomaram a hegemonia nos negócios, porque suas empresas investiram em inovação e ganharam eficiência de gestão.

A volta do protecionismo seria um risco para os avanços alcançados com a globalização. Teme-se que, na tentativa de cada país estimular sua própria economia, a adoção de medidas protecionistas leve a uma reação em cadeia. Isso reduziria o comércio internacional, aumentaria o desemprego e autoalimentaria a crise. A busca de vantagens em cada país levaria ao pior cenário para todos. “Se o espectro do nacionalismo econômico não for enterrado para sempre, as consequências serão dramáticas”, diz a revista The Economist, em reportagem de capa na semana passada. De acordo com a Economist, há o risco de uma depressão mundial.

Muitos analistas temem que se repita o que aconteceu durante a Grande Depressão, nos anos 30. Na época, os EUA aumentaram a tarifa de importação de 20 mil produtos. A retaliação que se seguiu contribuiu para agravar a crise. Nos últimos meses, diversos países, inclusive o Brasil, já implementaram medidas para proteger a produção local dos efeitos da crise. A União Europeia adotou subsídios para derivados de leite e amenizou as normas que regulam a concessão de crédito com juros subsidiados pelos governos. A China, entre outras medidas, criou incentivos fiscais para estimular exportações e reduziu tributos sobre vendas de veículos fabricados no país. No Brasil, o governo reduziu tributos para estimular a venda de veículos nacionais e reduziu impostos sobre exportações. Chegou a estudar a exigência de licença para importações, mas acabou desistindo da ideia. “Estão jogando o livre-comércio na privada”, disse o francês Pascal Lamy, diretor-geral da Organização Mundial do Comércio (OMC), no Fórum Econômico Mundial, em Davos, na Suíça, no fim de janeiro.

Segundo Lamy, a OMC está monitorando as ações de seus 153 países membros para identificar eventuais medidas protecionistas. O primeiro levantamento, publicado no fim de janeiro, ainda não é alarmante, mas mostra o crescimento do protecionismo. Sua atualização deverá ser divulgada em abril, durante o encontro do G-20, o grupo dos países mais industrializados e dos principais países emergentes, em Londres. “Até agora, não há nada dramático. Há algumas ações adotadas aqui e ali, mas nós sabemos, com base na experiência, que criar obstáculos ao comércio só torna as coisas ainda piores”, afirmou Lamy.

O protecionismo – que hoje designa a adoção de subsídios a empresas nacionais, barreiras alfandegárias ou a simples proibição de importações – tem sua origem no mercantilismo, o sistema econômico que predominou entre o fim da Idade Média, no século XVI, e meados do século XVIII. O mercantilismo defendia o acúmulo de divisas em metais preciosos pelo Estado por meio do controle de importações e do aumento das exportações. Foi o filósofo Adam Smith, o pai da economia moderna, quem primeiro questionou a eficácia do mercantilismo para promover o desenvolvimento. Segundo Smith, só o livre-comércio garantiria a eficiência econômica, por favorecer a especialização das pessoas (e dos países) nas atividades em que são melhores. Suas ideias foram contestadas por muitos economistas, mas hoje praticamente todas as correntes concordam que o protecionismo dificulta a prosperidade dos povos.

O Brasil teve um longo histórico de protecionismo. Implementado nos tempos de Getúlio Vargas, tinha o objetivo de apoiar a incipiente indústria nacional, dentro de uma política de substituição de importações. Só que, em vez de ajudar, atrapalhou a economia do país. Protegida da concorrência externa, a indústria brasileira se acomodou, tornou-se ineficiente. Não tinha estímulo para investir na inovação. Com isso, os produtos consumidos no país eram piores e mais caros que os importados. Só no início dos anos 90, o presidente Fernando Collor de Mello abriu a economia brasileira à concorrência internacional. Forçou a indústria do país a se modernizar para sobreviver. As empresas brasileiras também puderam investir na compra de máquinas e equipamentos lá fora para se tornar mais eficientes. Nesse processo, o Brasil se tornou uma potência exportadora – e criou milhões de empregos.

Em Davos, o protecionismo virou quase um palavrão para os cerca de 2 mil economistas, banqueiros, empresários e autoridades de quase cem países que participaram do encontro. A necessidade de preservar o livre-comércio para facilitar a superação da crise tornou-se uma espécie de mantra. Dizia-se, ali, que ele não é a causa da crise. Ao contrário, é uma solução, por estimular a atividade econômica global. Houve críticas até para o chamado “protecionismo financeiro”, por meio do qual os grandes bancos internacionais sacam dinheiro dos mercados emergentes e passam a concentrar seus negócios nos países de origem para atender às exigências feitas pelo governo para lhes conceder assistência. Segundo uma previsão feita pelo Instituto de Finanças Internacionais, o fluxo de capitais estrangeiros para os mercados emergentes deverá cair de US$ 930 bilhões em 2008 para US$ 165 bilhões em 2009, incluindo os investimentos diretos na produção.

Duas das principais estrelas de Davos, os primeiros-ministros Wen Jiabao, da China, e Vladimir Putin, da Rússia, fizeram defesas enfáticas do livre-comércio. O ministro do Comércio da Índia, Kamal Nath, reforçou o coro.“No coração da globalização mora a competitividade global. Se os governos começarem a proteger sua produção não competitiva, não será um comércio justo”, afirmou. “O protecionismo não protege ninguém”, disse o primeiro-ministro britânico, Gordon Brown, do Partido Trabalhista. “Esse é um momento em que não são necessárias apenas medidas nacionais para enfrentar a crise global. É um momento em que o mundo tem de se unir.”

O problema é que, com público internacional, todo mundo mostra indignação com o protecionismo. Em casa, o discurso muda. Embora a preservação do livre-comércio seja essencial para reduzir o impacto da crise, é difícil explicar seus benefícios para os eleitores. Quando o desemprego aumenta e o governo injeta recursos em empresas em dificuldade, cresce o clamor para proteger a produção nacional. Na opinião de Christine Lagarde, ministra das Finanças da França, o protecionismo é “um mal necessário” durante a crise.“O grande desafio é encontrar uma fórmula para estimular as economias nacionais sem passar por cima das regras comerciais”, diz.

Presente ao encontro de Davos, o chanceler brasileiro, Celso Amorim, definiu o protecionismo como “a mais contagiosa das doenças”. Por pouco ele não teve de enfrentar uma “saia-justa” no evento. A medida que previa a exigência de licenças para importação, que estava em estudo no governo, causou péssima impressão. Vinha sendo usada como exemplo negativo por funcionários da OMC em conversas com jornalistas estrangeiros nos corredores de Davos. Em dois dias, a racionalidade imperou e o governo brasileiro desistiu de adotá-la.

Amorim participou de um painel específico em Davos para discutir o protecionismo e defendeu a conclusão da Rodada de Doha, em que se negociam novas bases para o comércio global, mais equilibradas entre países industrializados e emergentes. A ministra de Economia da Suíça, Doris Leuthard, chegou a sugerir um cronograma para a retomada das conversações, que deverá incluir um encontro preparatório antes do G-20, em Londres, em abril, outro em junho e um encontro pleno em Genebra, em julho.

É difícil imaginar, porém, na atual conjuntura, com os políticos sendo pressionados em todo o mundo a proteger as empresas e os trabalhadores de seus países, que haverá clima para uma maior liberalização do comércio internacional. Infelizmente, é quando mais se precisa de abertura comercial que o protecionismo se fortalece.

A aposta de Obama
As principais medidas incluídas no pacote de US$ 789 bilhões (US$ 507 bilhões em investimentos e US$ 282 bilhões em incentivos fiscais) em análise no Congresso dos EUA
Investimentos de US$ 150 bilhões nas áreas de transporte, energia e tecnologia
Estímulo à adoção de fontes alternativas de energia e ao aumento da eficiência energética em edifícios públicos
Apoio ao desenvolvimento de projetos de água potável e de recuperação de áreas destinadas a depósito de detritos e de lixo nuclear
Ajuda de US$ 54 bilhões aos Estados para cobertura de perdas de receita com a crise. Parte do dinheiro poderá ser usada em projetos de modernização de escolas
Reserva de mercado em projetos realizados com o dinheiro do pacote para alguns produtos americanos – ferro, aço e manufaturados
Cobertura de US$ 87 bilhões para os Estados enfrentarem aumentos nos custos do atendimento médico
Apoio financeiro às pequenas empresas em dificuldades
Crédito de até US$ 8 mil para quem comprar seu primeiro imóvel
Dedução de impostos pagos na compra de carros novos na declaração do Imposto de Renda
Crédito anual de até US$ 400 para pessoas físicas e US$ 800 para casais, conforme a renda de cada um
Pagamento extra de US$ 250 para beneficiários da Previdência Social e de programas de complementação de renda
Redução das contribuições à Previdência Social para trabalhadores isentos de Imposto de Renda
Ampliação de benefícios, desconto no seguro-saúde e vale-refeição para trabalhadores desempregados

A Era da Responsabilidade

Correio Braziliense

16/02/2009

Robert Zoellick, Presidente do Grupo Banco Mundial
Os historiadores dividiram a história ocidental em épocas que representam os seus valores culturais, econômicos e políticos. Assim, temos a Baixa Idade Média, a Renascença, a Reforma e o Iluminismo. Como será definida a primeira metade do século 21? Poderá ser chamada de Era da Reversão, em que os países retrocedem para soluções internas, circunscritos em suas fronteiras, levando consigo as memórias de prosperidade? Será a Era da Intolerância, em que os imigrantes e estrangeiros são responsabilizados pelo aumento do desemprego? Ou será conhecida apenas como O Declínio, tão abrupto quanto cruel?
Como o presidente Barack Obama identificou de forma correta, esse período também poderia e deveria ser chamado de Era da Responsabilidade. Para que isso se concretize, serão necessárias mudanças de atitude e políticas de cooperação, nos EUA e no mundo inteiro. Quais seriam as características de uma Era da Responsabilidade?
Em primeiro lugar, seria uma era da globalização responsável, onde a inclusão social e a sustentabilidade prevaleceriam sobre o enriquecimento de poucos. Isso significa o empenho na geração de um crescimento que abranja oportunidades para os pobres, desenvolvimento tecnológico, microfinanças e empréstimos para pequenos empresários, acordos comerciais que beneficiem ambas as partes envolvidas e níveis de ajuda que sejam suficientes para o alcance das Metas de Desenvolvimento do Milênio. As primeiras etapas dessa agenda são a conclusão da Rodada de Doha e a renovação do compromisso de fornecer a ajuda que foi prometida.
Em segundo lugar, deverá ser uma era de gestão responsável do meio ambiente global. Para que isso aconteça, um acordo sobre mudanças climáticas poderia ser instituído em Copenhague, em dezembro, com o objetivo de reduzir as emissões de carbono usando novas tecnologias.
Em terceiro lugar, seria uma era de responsabilidade financeira, tanto no nível pessoal quanto sistêmico. Esse período deveria começar pelo estabelecimento de um acordo, em Londres, na reunião de cúpula das grandes economias que participam do G20, para que os governos cooperem com a expansão fiscal no âmbito de uma estratégia de disciplina orçamentária. Os países deveriam também acordar um plano que reabra os mercados de crédito, solucione os maus empréstimos, de modo que os bancos possam se recapitalizar, e evite o protecionismo.
Em quarto lugar, seria uma era de multilateralismo responsável, em que os países e as instituições procuram soluções práticas para problemas interdependentes. Alguns exemplos disso seriam o esforço para estabelecer acordos sobre o fornecimento humanitário de alimentos e a fixação de preços ou tarifas que estimulem o investimento na conservação e em fontes mais limpas de energia.
Em quinto lugar, seria uma era de partes interessadas responsáveis, em que a sua participação na economia internacional implicaria tanto responsabilidades quanto benefícios. Uma época que presenciaria os antigos clubes de países ricos dando lugar a um conselho diretor expandido, fundamentado nas atuais realidades econômicas. Esse grupo seria desafiado a atuar e discutir questões em conjunto. A nossa Era da Responsabilidade deve ser global e não apenas ocidental.
O modo como responderemos à crise nos próximos meses definirá o curso a ser adotado. Em uma primeira etapa, os países desenvolvidos deverão concordar em destinar 0,7% dos seus pacotes de estímulos econômicos para um fundo de vulnerabilidade, com o objetivo de apoiar os mais necessitados nos países em desenvolvimento. O Banco Mundial poderia administrar a distribuição dos recursos junto com as Nações Unidas e os bancos regionais de desenvolvimento. Poderíamos utilizar os mecanismos existentes para fornecer o capital de modo rápido e flexível, apoiados por esquemas de monitoramento e salvaguardas a fim de que o dinheiro seja empregado de forma adequada.
Após o choque de preços dos alimentos e dos combustíveis, no ano passado, a crise financeira aumenta os riscos para os países e as populações mais pobres. A retração do crédito e a recessão mundial estão minando as receitas governamentais e reduzindo sua habilidade para atingir as metas de educação, saúde e igualdade de gêneros. As transferências de dinheiro se tornam mais lentas. Os investimentos estrangeiros e domésticos estão congelados. O comércio está em declínio. Os distúrbios sociais aumentam. As estimativas sugerem que uma queda de 1% nas taxas de crescimento dos países emergentes insere mais 20 milhões de pessoas na pobreza. Cem milhões de indivíduos já foram levados a essa situação como resultado dos transtornos ocorridos no ano passado.
Os países pobres necessitam de três intervenções: programas de proteção social para ajudar a atenuar o impacto da crise econômica sobre os pobres; investimento em infraestrutura com vistas a criar uma base para a produtividade, o crescimento e a geração de emprego; e crédito para pequenas e médias empresas de forma a abrir postos de trabalho. Os doadores poderiam adaptar as contribuições ao fundo de vulnerabilidade de modo a atender aos seus interesses. Essa abordagem surtiu efeito no recente apoio do Japão e da Alemanha à recapitalização dos bancos promovida pelo Banco Mundial nos países pobres e na decisão de conceder financiamentos provisórios para projetos de infraestrutura viáveis, que ultimamente perderam acesso ao crédito.
Esse plano é possível de ser implementado. O percentual de ajuda estabelecido pelas Nações Unidas corresponde a 0,7% da economia de um país. O patamar de contribuição de 0,7% de cada pacote de estímulo de uma nação desenvolvida representa apenas uma fração mínima das centenas de bilhões destinados ao socorro financeiro proporcionado aos bancos. No entanto, esse percentual poderia fazer uma grande diferença para centenas de milhões de pessoas que são vítimas de uma crise pela qual não são responsáveis. E o que é mais importante: essa iniciativa sinalizaria um compromisso que o mundo está claramente escolhendo assumir, ao invés de ser direcionado pela crise. Ação internacional ou políticas protecionistas? Era da Responsabilidade ou Era da Reversão? A escolha é clara.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Xenofobia e Europa

Folha de São Paulo de 16 de fevereiro de 2009:
Crise acentua o risco de xenofobia europeia aumentar

Para estudioso, demissões em massa devem inflar aversão a estrangeiros já alimentada por sensação de declínio europeu e "guerra ao terror"

Operários britânicos protestam contra a contratação de portugueses e italianos para a construção de uma refinaria em Lindsey; manifestações se disseminaram

APÓS ANOS de marasmo econômico, a Europa mergulha numa onda de demissões propalada pela desaceleração econômica que ameaça atiçar a velha aversão de alguns setores por estrangeiros. Especialista em xenofobia, o sociólogo belga Marc Jacquemain diz ser cedo para avaliar se a crise agravou o quadro. Mas o sentimento de declínio das nações europeias somado à propagação de ideias populistas sob tal cenário, alerta, torna provável o acirramento do racismo.

SAMY ADGHIRNI
DA REPORTAGEM LOCAL

Meses antes do início da crise econômica mundial, em setembro, o premiê italiano, Silvio Berlusconi, já lançava seu pacote anti-imigração. Sob pressão do Vaticano, a criminalização dos clandestinos foi engavetada, mas o estado de emergência decretado nacionalmente por "excesso de imigrantes" e o censo dos ciganos, qualificado de "racista" pela União Europeia (UE), emplacaram.
As iniciativas, resposta à parcela da opinião pública que considera os estrangeiros responsáveis pela alta da criminalidade, surgiam num cenário europeu marcado pela proliferação de governos dominados ou integrados por partidos de extrema-direita. A virulência e a banalização dos discursos xenófobos, impulsionadas pelo desemprego e a queda do poder de compra, contaminaram até legendas historicamente moderadas em termos de imigração.
O acirramento da tensão se traduziu em violência. Segundo dados oficiais, houve aumento de denúncias de agressões raciais em pelo menos oito países da UE desde o 11 de Setembro.
A profunda crise econômica deflagrada nos EUA coincide agora com novos reflexos ultranacionalistas. Trabalhadores de uma refinaria de petróleo do Reino Unido fizeram greve contra a admissão de empregados estrangeiros, e imigrantes romenos foram trocados por ingleses nas obras para as Olimpíadas de Londres (2012).
Já Berlusconi tenta mudar a lei para permitir que médicos possam delatar a autoridades policiais pacientes estrangeiros em situação irregular na Itália.
À Folha, por telefone, o sociólogo Jacquemain disse temer que alguns países acabem dando as costas ao mundo e afirmou que a "rejeição do diferente" é inerente à natureza humana. Leia a seguir os principais trechos da entrevista.




FOLHA - A xenofobia está em alta na Europa?
MARC JACQUEMAIN - Parece-me precipitado dizer que a xenofobia está aumentando. Não há evidência estatística. Concretamente, o que temos são fenômenos políticos que correm o risco de acirrá-la. Um exemplo é o discurso sobre a "preferência nacional", que tem se disseminado e agora norteia até os partidos de direita clássica.
Nicolas Sarkozy se elegeu à Presidência da França em 2007 com uma plataforma repleta de ideias inspiradas na extrema direita, apesar de ele mesmo não ser um xenófobo. Na Itália, Silvio Berlusconi, cuja base eleitoral, diga-se de passagem, se restringe em grande parte ao norte do país, defende abertamente ideias populistas e governa com apoio da Liga Norte, partido com valores xenófobos.
Nesse contexto, a posição em relação à imigração acabou se tornando uma linha de demarcação clara entre esquerda e direita na Europa. E, como há uma direitização da cena política europeia, é possível que aumente a busca por bodes expiatórios imigrantes.
Esse fenômeno ocorre mesmo dentro da Europa, onde estamos longe de aceitarmos uns aos outros. Poloneses e romenos são mal vistos na Alemanha e em Portugal. Os europeus têm dificuldades até entre si.

FOLHA - De onde vem tamanho medo dos imigrantes?
JACQUEMAIN - Não dá para saber o que passa pela cabeça das pessoas. Em todo caso, há uma clara expressão da xenofobia no plano político. Ela tende a se generalizar, mas se manifesta com destaque maior nas regiões mais ricas da Europa -Holanda, Áustria, Suíça, Noruega, norte da Itália...
O fenômeno surge principalmente de parte da classe média, que viveu por décadas em situação privilegiada e hoje se sente fragilizada em relação à globalização. Os pais sabem que seus filhos enfrentarão um cenário com muito mais dificuldade do que eles. Apontar para o imigrante como bode expiatório foi a estratégia que muitos partidos políticos adotaram na Europa. Isso acabou alimentando mais ainda a ideia de construir uma Europa-fortaleza para se proteger da concorrência externa.
Esta é a questão fundamental por trás do sentimento anti-imigrante de uma parcela expressiva de europeus. Mas é preciso ressaltar que essa tendência à xenofobia também foi impulsionada pela propagação das ideias antiterroristas e de guerra entre civilizações defendidas por George W. Bush, que via perigo islamista em toda parte. Os europeus rejeitaram claramente o belicismo de seu governo, mas acabaram embarcando na onda de medo do islã. Afinal, quem está perto do mundo islâmico é a Europa, não os EUA.
É a convergência desses dois fenômenos -o sentimento de declínio dos europeus e o delírio antiterrorista do governo Bush- que explica boa parte da atual xenofobia europeia.

FOLHA - A crise econômica global pode aumentar o racismo?
JACQUEMAIN - É sempre complicado tentar prever reações sociológicas, mas acho bastante provável que isso ocorra. Todos os ingredientes estão aí.

FOLHA - Existe alguma relação entre a xenofobia e as medidas protecionistas que os governos estão tomando contra a crise?
JACQUEMAIN - Acho que existe uma conexão, embora de contornos ainda imprecisos, entre os reflexos protecionistas dos governos nas últimas semanas e a xenofobia de partes significativas da população.
As dificuldades sociais e econômicas estão pressionando muitos chefes de Estado e de governo na Europa a levarem cada vez mais em conta a impressão popular de que a concorrência de fora representa uma ameaça direta aos sistemas domésticos. É difícil manter parâmetros duradouros de racionalidade diante de uma crise tão profunda e que reforça tão intensamente a simbologia do declínio coletivo.
Populações de regiões como Flandres [Bélgica de língua flamenga e Holanda] e Escandinávia tendem a achar que podem se livrar dos problemas se resolverem as coisas sozinhas.
Ainda não há sinais objetivos de que isso ocorrerá, mas percebo um risco de alguns países ricos decidirem dar as costas ao mundo. Além de ser uma reação xenófoba, causaria uma grande fragmentação sociológica capaz de minar o projeto de se caminhar rumo à consolidação de uma Europa política.

FOLHA - O impacto da crise sobre os sentimentos xenófobos será o mesmo na Europa e nos EUA?
JACQUEMAIN - A globalização está fragmentando todas as grandes sociedades, na Europa, na América do Norte, na América Latina, na Ásia, na África. E os contornos do fenômeno não estão totalmente claros. Do ponto de vista econômico, os EUA ostentam enormes contrastes. São a maior potência econômica, comercial e financeira no mundo. Mas as áreas ricas do Brasil são muito mais ricas do que as áreas pobres dos EUA. Do ponto de vista cultural, os EUA formam hoje um conjunto bem mais homogêneo do que a fragmentada e dividida Europa, mesmo tendo vivido uma guerra civil terrível [1861-65, deixando quase um milhão de mortos].

FOLHA - A xenofobia se resume apenas a explicações sociológicas e econômicas?
JACQUEMAIN - De jeito nenhum. O que algumas pessoas chamam de sentimento de "rejeição do outro", do "diferente", é um dado constante da natureza humana. Mas essa rejeição muda em função das circunstâncias. As táticas dos políticos em determinados contextos podem fazer com que a aversão aumente ou seja administrada de forma mais harmoniosa. Na lente criada pelo momento atual, as diferenças tendem a ser mais vistas como ameaça.

domingo, 15 de fevereiro de 2009

Globalização em xeque

Jornal do Brasil

15/02/2009

Natalia Pacheco

Ascensão do neoprotecionismo dará lugar à nova integração, com controle limitado de capitais

A crise financeira internacional exumou um protecionismo que caminhava para ser reduzido às páginas da História. Como um volta ao passado, as restrições ao livre fluxo de mercadorias crescem paralelamente à ameaça à livre circulação de capitais e ao livre trânsito de trabalhadores. Longe de constituir o único efeito colateral de um colapso que se revela cada vez mais complexo, no entanto, o neoprotecionismo representa um espectro com potencial para assombrar não só as massas trabalhadoras, mas para colocar em xeque a própria globalização.

Especialistas temem, no entanto, que, ao se popularizar como um discurso pronto em resposta à desaceleração da atividade econômica e ao dramático aumento do desemprego, o neoprotecionismo permaneça mais tempo do que o desejado. Nesse caso, justificam, poderia ­ como na crise de 1929 ­fermentar o colapso econômico a ponto de produzir uma indigesta crise política.

Mesmo os menos catastrofistas, que duvidam do poder destrutivo da atual crise, admitem, no entanto, que a prosperidade dos últimos 10 anos, que transformou emergentes como a China em potências, dará lugar a um comércio mais tímido. Se, por um lado, tal fenômeno reduz o ritmo de diminuição da pobreza do mundo, por outro, dará lugar a um fluxo mais regrado de comércio e menor frenético de transferência de capitais.

- A volta do livre comércio será mais regrada. E a aprovação da Rodada Doha, uma das maiores esperanças do Brasil para aumentar as suas exportações, vai demorar a sair ­ afirma o economista-chefe da Confederação Nacional do Comércio (CNC), Carlos Thadeu de Freitas, ao esclarecer que, em sua nova forma, o protecionismo tem se consolidado de forma velada, sem contrariar as regras da Organização Mundial do Comércio (OMC).

Os países, afirma Freitas, vão recorrer cada vez mais a exigências ambientais ou fitossanitárias, como ao etanol na União Europeia e à carne na Rússia.

Uma nova globalização
O economista ressalta, no entanto, que a novidade da atual crise foi a criação do protecionismo financeiro, motivado pela escassez de crédito no mercado financeiro internacional. ­

- Os governos vão estimular seus bancos centrais a emprestar mais aos próprios países. Esse é o maior problema. As empresas com planos de investimentos robustos vão sentir falta de crédito no mercado, porque os bancos estarão orientados a ajudar as companhias de seus países ­- ressalta.

Embora os efeitos colaterais da crise estejam evidentes, o mesmo não se pode dizer da realidade pós-colapso. Para os que se arriscam, como o professor de Economia e presidente do Instituto Desemprego Zero, José Carlos de Assis, da crise vai emergir uma nova globalização, marcada pelo que classifica de proteção estratégica às indústrias, maior cooperação entre as nações e maior restrição à especulação financeira. ­

- A globalização financeira vai mudar completamente. Os países vão vigiar suas economias porque sabem que não dá mais para a especulação. O princípio da globalização pós-crise será cooperação -­ avalia Assis.

Mesmo com a recuperação das economias, os primeiros anos do pós-colapso ainda serão minguados, se comparados aos anos de exuberância, com menores volumes de negócios.

Para o professor de Economia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Antônio Corrêa de Lacerda, uma maior integração global será resgatada aos poucos, mas não nos níveis do período anterior à crise financeira internacional, que eclodiu com a queda do banco americano Lehman Brothers, em setembro de 2008.

-­ O ritmo vai voltar, mas não de uma hora para outra. Vai demandar tempo. Quando as economias já estiverem a todo vapor, o volume de negócios engata novamente. Será um comércio mais rígido, mas isso não implicará diretamente nas balanças. É um mecanismo para evitar a especulação -­ explica o professor.

Nem tudo são flores
Apesar do freio no livre comércio no período de crise -­ e a provável adoção de regras para as futuras negociações -­ para o economista e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Reinaldo Gonçalves, a globalização vai voltar com força total assim que a crise voltar. E mais: os volumes dos negócios serão bem maiores do que os atuais, o que poderá provocar uma outra crise financeira no futuro, devido às especulações. ­

- A adoção de medidas protecionistas em períodos de crise é natural. A globalização está aí há cinco séculos e não acabou. Já passou por muitos colapsos econômicos e resistiu. E a tendência, após o fim de uma crise, é de maiores volumes de negócios. Infelizmente, o capitalismo não aprende com os próprios erros -­ lamenta.

O professor lembra que o monitoramento e a exigência de transparência financeiras são pontuais, ou seja, perduram apenas na crise. Depois que as economias retomam suas atividades, o mercado volta a ser especulativo, o que gera outras bolhas financeiras. Os negócios sofrerão um baque momentâneo.

-­ O giro financeiro vai diminuir apenas durante a crise - diz.

A crise financeira - riscos e incertezas

O Estado de São Paulo

15/02/2009

Celso Lafer
No exercício de funções governamentais de responsabilidade, um tipo de conhecimento indispensável é aquele que se caracteriza pela aptidão para entender o conjunto das coisas. Esse tipo de conhecimento, associado à compreensão da relação entre meios disponíveis e fins desejáveis, é o que confere ao governante perícia estratégica para perceber o que está aberto às possibilidades futuras. Esse tipo de conhecimento tem a feição de uma "visão global". Como diz Fernando Henrique Cardoso, é uma espécie de "quadro mental", fruto da experiência, da sensibilidade e do domínio de assuntos, que permite a um governante, sem perder o sentido de direção, ir contextualizando a informação fragmentada que provém do mundo complexo e interdependente em que vivemos.
Entender o conjunto das coisas que estão ocorrendo no mundo, com destaque para a crise econômico-financeira, que a partir dos EUA se espraiou globalmente, é uma dificuldade compartilhada em todos os lugares por governantes e governados.
A crise teve como ponto de partida os desequilíbrios do sistema financeiro global. Este se esfacelou com as virtualidades de suas engenharias, seus derivativos, subprimes, suas securitizações e alavancagens, que foram ao chão como um castelo de cartas. Isso trouxe, em vários países, com destaque para os EUA, intervenções governamentais maciças e sem precedentes em matéria de escala, voltadas para conter o pânico financeiro. Essas intervenções até agora não conseguiram conter o impacto da crise financeira na economia real da produção e dos serviços. Daí os problemas do desemprego, da diminuição do crescimento e, em muitos casos, da recessão, que se avolumam em escala planetária.
A crise vai muito além dos problemas mais técnicos da liquidez e da solvibilidade, que em princípio os bancos centrais e as intervenções governamentais podem encaminhar. É uma crise de confiança, que vem sendo alimentada por vários fatores, entre eles: 1) As fraudes financeiras que se tornaram do conhecimento geral; 2) a ampla circulação de instrumentos financeiros, como os acima mencionados, que na sua complexidade deixavam na penumbra o imenso potencial do perigo que carregavam; 3) as consequências da excessiva alavancagem, animada pela ganância de lucro, que redundaram em imensos prejuízos à medida que despencou o preço dos ativos; e 4) a percepção generalizada internacionalmente da falta de transparência dos produtos financeiros, das instituições de crédito e do funcionamento dos mercados financeiros globais, que passaram a ser considerados uma espécie de "caixa-preta", destituída de apropriados mecanismos de supervisão e de controle.
Qual é o significado e o alcance desta crise, que aprofunda tensões difusas em todos os países, inclusive no Brasil? Os economistas fazem uma distinção entre risco e incerteza. O risco comporta cálculo, enseja alguma previsibilidade e abre horizontes para cenários de possibilidades que o imprevisto pode trazer. Os vários tipos de seguro, desde a sua origem, como o seguro marítimo, os hedges, são uma expressão de um cálculo probabilístico que permite a gestão de riscos. A incerteza, ao contrário, não comporta cálculo e por isso tende a propiciar o imobilismo, do qual são exemplos os bancos que não emprestam, os investimentos empresariais que se suspendem e o consumo dos particulares que se contém.
O risco é uma característica da sociedade moderna e o capitalismo nela identifica um caminho de inovação e progresso. Nesta nossa era de globalização, Anthony Giddens chama a atenção para o novo risco do risco. Este provém de um maior desconhecimento do nível de risco, manufaturado pela ação humana. Disso são exemplos o risco ecológico, o nuclear e o da direção do conhecimento científico-tecnológico, que, com suas constantes inovações, transpõe continuamente barreiras antes tidas como naturais. A crise financeira, como crise de confiança, é uma expressão do risco manufaturado pelo sistema financeiro global, que por conta de suas falhas de avaliação, gestão temerária, carência de supervisão e de normas se transformou num não debelado curto-circuito de incerteza.
A crise é global e os seus efeitos estão se internalizando na vida dos países, em maior ou menor grau, à luz das suas especificidades. Ela coloca um grande desafio nacional para o governo do presidente Lula. Com efeito, até o advento da crise, o governo Lula pôde contar com os ventos favoráveis da economia mundial e com a herança positiva recebida do governo Fernando Henrique, de uma gestão econômica bem-sucedida no controle da inflação, que saneou o sistema financeiro nacional e introduziu qualidade no processo decisório macroeconômico. Pôde valer-se, também, da rede de proteção social criada pelo governo anterior, ampliando-a de maneira importante, com base inclusive nos recursos gerados pelo crescimento econômico. As qualidades de comunicação do presidente Lula, a carga simbólica de sua biografia e a sua capacidade, com base no seu "quadro mental", de ir tocando as coisas são componentes explicativos da sua popularidade e do seu sucesso.
Em política sempre há o inesperado. Hannah Arendt gostava de citar uma frase de Proudhon: "A fecundidade do inesperado supera em muito a prudência do melhor estadista", aduzindo que, com maior razão, o inesperado escapa ao cálculo dos peritos. A crise é o inesperado da vulnerabilidade para um governo que vinha navegando com relativa tranquilidade. Gestão de riscos e incertezas é uma responsabilidade governamental. Observo, com isso, que a crise coloca para o governo Lula e seus colaboradores um novo desafio. O de encontrar meios e modos para, em contraste com os seis últimos anos, navegar num mundo que para nós, hoje, caracteriza-se - para falar com Camões - por ser "tempo de tormenta e vento esquivo".

Venezuela: ''As pessoas poderão votar, e não eleger'' /Entrevista

Folha de São Paulo

15/02/2009

Fabiano Maisonnave
DE CARACAS

A reeleição indefinida, aliada ao uso da máquina do Estado, tira a legitimidade das eleições na Venezuela, diz Julio Borges, coordenador nacional Primeiro Justiça (PJ, direita), um dos partidos mais importantes da oposição. Para Borges, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva é "hipócrita" ao apoiar o colega Hugo Chávez, mas ser contra a mesma mudança no Brasil. Eis sua entrevista à Folha:

FOLHA - Por que o sr. defende o "não" neste referendo?
JULIO BORGES - É uma pergunta que já foi feita em 2007, e o povo já disse "não". Voltar a apresentá-la é um desrespeito à soberania popular. Em segundo lugar, reeleição ilimitada, na história venezuelana, só ocorreu durante duas ditaduras militares. O problema não é só a reeleição ilimitada mas também o abuso do poder, o uso do petróleo, dos meios de comunicação do Estado, das Forças Armadas, das instituições. Essa combinação faria com que as pessoas pudessem votar, mas não eleger, porque não haverá jogo limpo.

FOLHA - Há risco de a oposição rechaçar o resultado?
BORGES - O que está acontecendo é a degradação do processo eleitoral. Na medida em que você tem um jogo injusto, o que se está plantando é uma grande decepção. Nosso desafio é que a maioria dos que dizem que não votarão está a favor do "não", mas não crê no sistema. Portanto, uma minoria acaba se impondo à maioria porque não confia no sistema.

FOLHA - Lula visitou a Venezuela durante a campanha e fez declarações de apoio a Chávez. O que o sr. diria ele?
BORGES - Parece hipócrita, pois o presidente Lula vem aqui e afinal está pensando mais nos negócios do que na democracia. Dentro do Brasil, Lula diz que é contra a reeleição ilimitada e que se rebelaria contra o seu partido se alguém fizesse essa proposta. É como a Bolívia, onde se limitou a reeleição. Mas eles vêm aqui fazer o jogo de Chávez e, lamentavelmente, a razão se chama petróleo, não democracia.

FOLHA - Um dos principais argumentos do chavismo é que em vários países da Europa, como Inglaterra, Espanha e França, não há limite de mandatos.
BORGES - A referência importante é a América, e aqui não há reeleição sem limite do Alasca até a Argentina, exceto em Cuba. Aqui, são regimes presidencialistas. Na Europa, são parlamentaristas.

FOLHA - E o argumento de que, sem Chávez, a Venezuela mergulharia na guerra civil?
BORGES - O mesmo se diz em qualquer país onde o governo controla tudo. Chávez tem dez anos no poder e virou a única referência. O [ditador chileno, Augusto] Pinochet, em 1989, acusava a oposição de não ter líderes.