Folha de São Paulo de 16 de fevereiro de 2009:
Crise acentua o risco de xenofobia europeia aumentar
Para estudioso, demissões em massa devem inflar aversão a estrangeiros já alimentada por sensação de declínio europeu e "guerra ao terror"
Operários britânicos protestam contra a contratação de portugueses e italianos para a construção de uma refinaria em Lindsey; manifestações se disseminaram
APÓS ANOS de marasmo econômico, a Europa mergulha numa onda de demissões propalada pela desaceleração econômica que ameaça atiçar a velha aversão de alguns setores por estrangeiros. Especialista em xenofobia, o sociólogo belga Marc Jacquemain diz ser cedo para avaliar se a crise agravou o quadro. Mas o sentimento de declínio das nações europeias somado à propagação de ideias populistas sob tal cenário, alerta, torna provável o acirramento do racismo.
SAMY ADGHIRNI
DA REPORTAGEM LOCAL
Meses antes do início da crise econômica mundial, em setembro, o premiê italiano, Silvio Berlusconi, já lançava seu pacote anti-imigração. Sob pressão do Vaticano, a criminalização dos clandestinos foi engavetada, mas o estado de emergência decretado nacionalmente por "excesso de imigrantes" e o censo dos ciganos, qualificado de "racista" pela União Europeia (UE), emplacaram.
As iniciativas, resposta à parcela da opinião pública que considera os estrangeiros responsáveis pela alta da criminalidade, surgiam num cenário europeu marcado pela proliferação de governos dominados ou integrados por partidos de extrema-direita. A virulência e a banalização dos discursos xenófobos, impulsionadas pelo desemprego e a queda do poder de compra, contaminaram até legendas historicamente moderadas em termos de imigração.
O acirramento da tensão se traduziu em violência. Segundo dados oficiais, houve aumento de denúncias de agressões raciais em pelo menos oito países da UE desde o 11 de Setembro.
A profunda crise econômica deflagrada nos EUA coincide agora com novos reflexos ultranacionalistas. Trabalhadores de uma refinaria de petróleo do Reino Unido fizeram greve contra a admissão de empregados estrangeiros, e imigrantes romenos foram trocados por ingleses nas obras para as Olimpíadas de Londres (2012).
Já Berlusconi tenta mudar a lei para permitir que médicos possam delatar a autoridades policiais pacientes estrangeiros em situação irregular na Itália.
À Folha, por telefone, o sociólogo Jacquemain disse temer que alguns países acabem dando as costas ao mundo e afirmou que a "rejeição do diferente" é inerente à natureza humana. Leia a seguir os principais trechos da entrevista.
FOLHA - A xenofobia está em alta na Europa?
MARC JACQUEMAIN - Parece-me precipitado dizer que a xenofobia está aumentando. Não há evidência estatística. Concretamente, o que temos são fenômenos políticos que correm o risco de acirrá-la. Um exemplo é o discurso sobre a "preferência nacional", que tem se disseminado e agora norteia até os partidos de direita clássica.
Nicolas Sarkozy se elegeu à Presidência da França em 2007 com uma plataforma repleta de ideias inspiradas na extrema direita, apesar de ele mesmo não ser um xenófobo. Na Itália, Silvio Berlusconi, cuja base eleitoral, diga-se de passagem, se restringe em grande parte ao norte do país, defende abertamente ideias populistas e governa com apoio da Liga Norte, partido com valores xenófobos.
Nesse contexto, a posição em relação à imigração acabou se tornando uma linha de demarcação clara entre esquerda e direita na Europa. E, como há uma direitização da cena política europeia, é possível que aumente a busca por bodes expiatórios imigrantes.
Esse fenômeno ocorre mesmo dentro da Europa, onde estamos longe de aceitarmos uns aos outros. Poloneses e romenos são mal vistos na Alemanha e em Portugal. Os europeus têm dificuldades até entre si.
FOLHA - De onde vem tamanho medo dos imigrantes?
JACQUEMAIN - Não dá para saber o que passa pela cabeça das pessoas. Em todo caso, há uma clara expressão da xenofobia no plano político. Ela tende a se generalizar, mas se manifesta com destaque maior nas regiões mais ricas da Europa -Holanda, Áustria, Suíça, Noruega, norte da Itália...
O fenômeno surge principalmente de parte da classe média, que viveu por décadas em situação privilegiada e hoje se sente fragilizada em relação à globalização. Os pais sabem que seus filhos enfrentarão um cenário com muito mais dificuldade do que eles. Apontar para o imigrante como bode expiatório foi a estratégia que muitos partidos políticos adotaram na Europa. Isso acabou alimentando mais ainda a ideia de construir uma Europa-fortaleza para se proteger da concorrência externa.
Esta é a questão fundamental por trás do sentimento anti-imigrante de uma parcela expressiva de europeus. Mas é preciso ressaltar que essa tendência à xenofobia também foi impulsionada pela propagação das ideias antiterroristas e de guerra entre civilizações defendidas por George W. Bush, que via perigo islamista em toda parte. Os europeus rejeitaram claramente o belicismo de seu governo, mas acabaram embarcando na onda de medo do islã. Afinal, quem está perto do mundo islâmico é a Europa, não os EUA.
É a convergência desses dois fenômenos -o sentimento de declínio dos europeus e o delírio antiterrorista do governo Bush- que explica boa parte da atual xenofobia europeia.
FOLHA - A crise econômica global pode aumentar o racismo?
JACQUEMAIN - É sempre complicado tentar prever reações sociológicas, mas acho bastante provável que isso ocorra. Todos os ingredientes estão aí.
FOLHA - Existe alguma relação entre a xenofobia e as medidas protecionistas que os governos estão tomando contra a crise?
JACQUEMAIN - Acho que existe uma conexão, embora de contornos ainda imprecisos, entre os reflexos protecionistas dos governos nas últimas semanas e a xenofobia de partes significativas da população.
As dificuldades sociais e econômicas estão pressionando muitos chefes de Estado e de governo na Europa a levarem cada vez mais em conta a impressão popular de que a concorrência de fora representa uma ameaça direta aos sistemas domésticos. É difícil manter parâmetros duradouros de racionalidade diante de uma crise tão profunda e que reforça tão intensamente a simbologia do declínio coletivo.
Populações de regiões como Flandres [Bélgica de língua flamenga e Holanda] e Escandinávia tendem a achar que podem se livrar dos problemas se resolverem as coisas sozinhas.
Ainda não há sinais objetivos de que isso ocorrerá, mas percebo um risco de alguns países ricos decidirem dar as costas ao mundo. Além de ser uma reação xenófoba, causaria uma grande fragmentação sociológica capaz de minar o projeto de se caminhar rumo à consolidação de uma Europa política.
FOLHA - O impacto da crise sobre os sentimentos xenófobos será o mesmo na Europa e nos EUA?
JACQUEMAIN - A globalização está fragmentando todas as grandes sociedades, na Europa, na América do Norte, na América Latina, na Ásia, na África. E os contornos do fenômeno não estão totalmente claros. Do ponto de vista econômico, os EUA ostentam enormes contrastes. São a maior potência econômica, comercial e financeira no mundo. Mas as áreas ricas do Brasil são muito mais ricas do que as áreas pobres dos EUA. Do ponto de vista cultural, os EUA formam hoje um conjunto bem mais homogêneo do que a fragmentada e dividida Europa, mesmo tendo vivido uma guerra civil terrível [1861-65, deixando quase um milhão de mortos].
FOLHA - A xenofobia se resume apenas a explicações sociológicas e econômicas?
JACQUEMAIN - De jeito nenhum. O que algumas pessoas chamam de sentimento de "rejeição do outro", do "diferente", é um dado constante da natureza humana. Mas essa rejeição muda em função das circunstâncias. As táticas dos políticos em determinados contextos podem fazer com que a aversão aumente ou seja administrada de forma mais harmoniosa. Na lente criada pelo momento atual, as diferenças tendem a ser mais vistas como ameaça.