terça-feira, 2 de junho de 2009

EUA: uma corte mais parecida com o país

Veja

01/06/2009

André Petry, de Nova York

Obama indica a primeira hispânica para a mais alta instância da Justiça dos EUA, prestigiando a massa de latinos, que já supera o contingente de negros no país
A Suprema Corte dos Estados Unidos, inicialmente formada por seis magistrados protestantes, levou 46 anos para admitir o primeiro católico. Seu nome era Roger Taney. Escravocrata até a medula, dizia que nem os escravos libertos podiam ser considerados cidadãos. Em 1916, a Suprema Corte recebeu o primeiro judeu, Louis Brandeis, magistrado à frente de seu tempo e preocupado com uma coisa exótica chamada direitos humanos. Em 1967, assumiu o primeiro negro, Thurgood Marshall, cuja trajetória como advogado e depois como juiz foi pautada pela defesa da emancipação racial. Em 1981, tomou posse a primeira mulher, Sandra Day O’Connor, cujas preocupações eram conservadoras em quase todos os campos, exceto no que dizia respeito às mulheres. Sendo a instituição que mais influencia a vida dos americanos, e é por eles influenciada, a Suprema Corte é um reflexo, nem sempre fiel, da sociedade – e, enfim, chegou a vez de receber a primeira juíza hispânica, denominação atribuída aos cidadãos cujos ascendentes vieram de algum país das Américas em que se fala espanhol. É Sonia Sotomayor, 54 anos, divorciada, sem filhos, torcedora dos Yankees, a cujos jogos assiste sentada na geral, junto da galera. Seus pais vieram da ilha de Porto Rico, "estado associado" aos EUA há mais de um século.

Os hispânicos correspondem a 15% da população dos Estados Unidos. Há mais hispânicos (47 milhões) do que negros (40 milhões). A juíza Sonia Sotomayor chegou exibindo o estandarte de sua latinidade e o orgulho de ser "nyorican", algo como "nova-iorquenha", mistura de nova-iorquina com porto-riquenha. Entre menos de uma dezena de candidatos, na maioria mulheres, o presidente Barack Obama escolheu Sotomayor por tudo o que ela representa: é hispânica, é mulher e percorreu, nas palavras de Obama, uma "jornada extraordinária", que ecoa a do próprio presidente. É diabética desde os 8 anos, toma insulina diariamente, perdeu o pai aos 9 e foi criada pela mãe, uma telefonista que virou enfermeira, em um conjunto habitacional popular no Bronx, no norte de Nova York. Basta lembrar-se dos filmes: prédios atulhados de hispânicos e negros, com paredes pichadas e tráfico de drogas na soleira do edifício. Nos tempos da juíza, diga-se, não era assim tão barra-pesada. Mas também nada sugeria que ela pudesse sair dali para estudar nas melhores universidades americanas (Princeton e Yale), tornar-se a primeira juíza federal hispânica em Nova York e viver num apartamento no Greenwich Village. Fosse no Rio, seria como trocar o Irajá pela Lagoa.

A indicação de Sotomayor deflagrou o debate nacional que sempre acontece quando um novo juiz é indicado: liberal ou conservador? Traduzindo, nos termos em que as correntes se dividem: contra ou a favor do aborto? Atualmente, a corte tem um equilíbrio delicadíssimo entre os liberais e os conservadores. Embora sete dos nove membros tenham sido nomeados por republicanos – de Gerald Ford a Bush filho –, nem todos rezam pela mesma cartilha e as decisões mais polêmicas costumam sair pelo placar de 5 a 4. O fiel da balança é Anthony Kennedy, implacável inquisidor dos advogados que sobem à tribuna para defender seus clientes. Foi indicado pelo presidente Ronald Reagan e ora vota com os liberais, ora com os conservadores. Os magistrados da corte têm isso de positivo. São indicados por republicanos ou democratas, mas na hora H decidem no embate de sua consciência com os códigos. Sotomayor vai substituir David Souter, que chegou à corte com fama de ser contra o aborto, foi alvo de protestos de feministas – o slogan era: "Fora Souter, ou as mulheres morrerão" – e, dois anos depois, surpreendeu votando a favor do aborto.

De Sotomayor, já se disse de tudo. "Racista às avessas", berrou a voz mais radical da direita, o radialista Rush Limbaugh, porque a juíza, num discurso antigo, disse a bobagem segundo a qual uma juíza latina, com sua experiência de mulher e hispânica, deve decidir melhor do que um juiz branco, com a pobreza de ser homem e europeu. A direita diz que é a favor do aborto. A esquerda diz o contrário, e até já mandou carta aos congressistas alertando para essa possibilidade. "Acredito que ela será mais imprevisível do que estão pensando", diz Stephen Carter, professor de direito em Yale, velho amigo de Sotomayor e ex-assistente de Marshall, o primeiro negro da corte. "Eu acho isso bom", acrescenta ele. "A última coisa de que precisamos é atulhar a corte de magistrados com opiniões definitivas sobre todas as questões relevantes." Na sabatina no Senado, Sotomayor será bombardeada com perguntas sobre todas as questões relevantes. Ao contrário do que ocorre no Brasil, o Senado americano não faz figuração ao questionar os indicados. Mais aprova do que rejeita, mas, quando o candidato não agrada, rejeita-o sem pejo.

A influência mútua entre a corte e a sociedade é uma das preciosidades da história jurídica dos EUA. Como as instituições não nascem prontas, a Suprema Corte é uma delicada construção da democracia americana. Em fevereiro de 1790, a primeira reunião, improvisada num modesto prédio de dois andares em Nova York, foi cancelada por falta de quórum. Só três juízes apareceram. Seus primeiros integrantes – entre eles, um caloteiro, que chegou a ser preso duas vezes, um senil e outro meio maluco – não lhe davam a mínima. Um renunciou cinco dias depois de indicado. Outro jamais compareceu a uma única sessão. Em seus 219 anos de história, no entanto, a Suprema Corte foi ganhando autonomia e respeito. O primeiro recado de que não estava ali para brincadeira veio em 1803, quando derrubou uma lei aprovada pelo Congresso. Hoje é uma instituição invejável. "A relação entre a corte e a sociedade é complexa e dinâmica", diz Linda Greenhouse, que cobriu 2 691 decisões da corte em quase trinta anos como repórter do New York Times e agora dá aulas em Yale. "A corte busca o meio da estrada, refletindo as correntes de opinião majoritárias da sociedade, mas com alguma frequência os juízes perdem essa sintonia porque ficam na corte muito depois do presidente que os nomeou com uma agenda que já perdeu relevância."

"Não sei se esse equilíbrio mútuo entre a corte e a sociedade é bom ou ruim, mas sei que seria difícil eliminá-lo", diz o professor Jesse Choper, da Universidade da Califórnia, em Berkeley, ex-assistente de Earl Warren, que presidiu a corte de 1953 a 1969. As decisões da Suprema Corte têm força notável e chegam a se incorporar no vocabulário cotidiano dos americanos – como a expressão "devido processo legal" –, mas não calam a voz das ruas. O aborto, legalizado em 1973, até hoje é polêmico. Em 1857, quando decidiu que o Congresso não tinha poder para abolir a escravidão, pôs lenha na guerra civil. Não provocou nenhum distúrbio de rua quando, em 1896, legalizou a segregação racial na tristemente famosa expressão "iguais mas separados". Mas a violência racial sensibilizou a corte 58 anos depois, quando acabou com a segregação sob a formulação singela segundo a qual a separação carrega em si a desigualdade. "Prova de que as decisões da corte moldam a paisagem política do país, mas a própria corte é moldada pelo intelecto e pela personalidade dos seus magistrados", afirma Philip Bobbitt, autor de sete livros e professor de jurisprudência da Universidade Columbia, em Nova York.

Os juízes da Suprema Corte ganham menos de 30 000 reais por mês, como os congressistas, mas têm a vantagem de ocupar cargo vitalício ou aposentar-se com salário integral. Começam a trabalhar na primeira segunda-feira de outubro e encerram o ano no fim de junho. Em média, ficam quinze anos no cargo, e um novo é nomeado a cada 22 meses. Todo ano, recebem 10 000 processos, dos quais 100 são debatidos em plenária, uma carga de trabalho de dar inveja aos ministros brasileiros, que ganham 100 000 processos por ano. Por tradição, antes de cada debate os nove juízes se cumprimentam com um aperto de mãos. É uma forma de evitar entreveros de joaquins e gilmares, lembrando aos presentes que, apesar das divergências, deve prevalecer um ambiente de harmonia. Parece bobagem, mas ali se sentam pessoas com experiências radicalmente distintas. O mais antigo, John Paul Stevens, 89 anos, nasceu em uma família milionária do ramo dos seguros e da hotelaria em Chicago. Ao seu lado, agora, estará Sonia Sotomayor, do Bronx.

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