Folha de São Paulo de 14 de junho de 2009
Bancofobia
O HISTORIADOR BRITÂNICO SIMON SCHAMA INVESTIGA A RESISTÊNCIA NOS EUA À CRIAÇÃO DE UM BANCO CENTRAL, NO SÉCULO 19, QUE OPÔS VALORES RURAIS E URBANOS
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Para o presidente Andrew Jackson, o domínio de um banco central era um "jugo despótico"
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SIMON SCHAMA
Porque não estão acostumados a receber ordens de ficar em pé no canto da sala de aula usando um chapéu de burro, os banqueiros dos EUA, ao que se diz, estão começando a se irritar com os "testes de desgaste" que lhes foram impostos pelo Tesouro para receberem verbas do fundo de resgate.
Há boatos de que eles estão "resistindo" às restrições que foram adotadas quanto ao salário dos executivos financeiros.
Antes que sua arrogância volte a transbordar, talvez devessem considerar a longa história do relacionamento de amor e ódio entre os bancos e o governo dos EUA. Uma providência simples seria estudar a cédula de US$ 20.
Pois nela, no espaço que separa as palavras "Federal" e "Reserve", irrompe a cabeleira basta de Andrew Jackson [1767-1845], o presidente norte-americano que mais se preocupou com a questão do penteado.
O sétimo presidente do país também foi inimigo jurado do dinheiro em papel e da criação de um banco central. Jackson fez carreira combatendo índios, derrotando os britânicos e conquistando o afeto das populações fronteiriças.
Mas o que realmente o irritava era o Banco dos Estados Unidos, instituição à qual havia sido concedido o monopólio sobre a emissão de papel-moeda. "O monstro", declarou no auge de sua batalha contra o presidente do banco, Nicholas Biddle, "quer me matar, mas eu o matarei primeiro".
Povo x monstro
E foi isso exatamente o que Jackson fez com o Banco dos EUA, vetando a renovação de sua carta-patente pelo Senado, em 1832, e conduzindo sua campanha à reeleição com a plataforma "o povo versus o monstro".
O resultado da extinção da regulação monetária era previsível: especulação descontrolada. Dois anos depois que Jackson encerrou seu segundo mandato, em março de 1837, o segundo dos grandes colapsos financeiros da história dos EUA estava em curso (o primeiro acontecera em 1819).
E um terceiro se seguiu rapidamente em 1839, durante o governo de Martin Van Buren [1837-41], o sucessor que Jackson havia escolhido a dedo. Às vésperas da Guerra Civil Americana [1861-65], o desejo de descentralização monetária que Jackson um dia expressou havia sido realizado de maneira muito mais ampla do que ele poderia ter sonhado.
Havia mais de 7.000 moedas locais circulando na república, e a falsificação de papel-moeda era epidêmica.
Foi necessária a Lei Bancária que o presidente Abraham Lincoln assinou em 1862 -devido à necessidade desesperada de garantir o crédito necessário para enfrentar a guerra- para que um mínimo de ordem monetária fosse imposto.
Jackson, como nos informa a recente biografia produzida por Jon Meacham ["American Lion - Andrew Jackson in the White House", Leão Americano - Andrew Jackson na Casa Branca, Random House, 512 págs., US$ 18, R$ 35], escrita de maneira elegante e excessivamente generosa para com a figura central do livro, foi uma personalidade excepcional na política norte-americana de muitas maneiras.
Em seu repugnante entusiasmo pela limpeza étnica e eliminação dos indígenas norte-americanos, em sua desconsideração de opiniões inconvenientes da Suprema Corte e em sua certeza de que representava a personificação da democracia popular.
O fato de que os entusiastas de um banco central eram admiradores do Banco da Inglaterra só servia para reforçar a convicção do veterano general de que essas instituições traziam algo de desprezível e antiamericano.
Sua suspeita quase paranoica quanto ao monopólio do banco permitiram que ele explorasse as inseguranças de muitos norte-americanos com relação ao caráter moral do dinheiro.
Nota promissória
Na década de 1790, os caminhos do sucesso para qualquer jovem ambicioso que vivesse na fronteira eram a especulação com terras, a advocacia ou o serviço militar, e Jackson se dedicou a essas três atividades.
Em 1795, passou três semanas na Filadélfia tentando vender uma propriedade de alguns milhares de hectares de excelentes terras de fronteira. Encontrou um comprador, que pagou com nota promissória.
Jackson adquiriu vagões e mais vagões de provisões, usando a nota endossada. Pouco depois, os fornecedores desses bens informaram a ele que a falência do emissor da nota o tornava responsável pelo saldo restante da promissória. Essa dívida paralisou por muito tempo as perspectivas econômicas de Jackson e lhe causou desconfiança duradoura quanto aos instrumentos de comércio em papel.
Jackson veio a acreditar que os meios circulantes são, na melhor das hipóteses, uma criação pouco confiável de um capricho financeiro (já que aqueles que dele dependem nunca sabem que valor receberão pelos instrumentos) e, na pior, a ferramenta preferencial de uma conspiração para escravizar pela dívida.
Assim, o presidente deliberadamente iludiu o país quanto aos males do Banco dos EUA e o seu monopólio.
Alegou não apenas que ele representava uma interposição inconstitucional entre o governo eleito e o povo, mas que havia fracassado em sua responsabilidade de estabelecer um papel-moeda sólido e aceito em todo o país.
Na verdade, nas condições instáveis que reinavam nos EUA na década de 1830, o papel-moeda do Banco dos EUA era de longe o meio mais confiável para conduzir transações. Mas Jackson estava convencido de que, a menos que o banco fosse eliminado, a democracia norte-americana estaria sempre infectada por suas maquinações. O que estava em jogo era uma batalha entre valores rurais e urbanos pela alma econômica dos EUA.
De certa forma, essa batalha era tão crucial quanto a disputa entre o sul escravagista e o norte abolicionista, porque envolvia uma definição direta daquilo que o país deveria ser: um lugar onde simplicidade e transparência imperavam, em comunidades pequenas norteadas pela moral, ou uma máquina autoalimentada de crescimento econômico e poderio ilimitado? "Campo dos Sonhos" ou "Cidadão Kane"?
Mas, além da destruição do banco, Jackson esperava livrar a nação daquilo que ele insistia ser a grande trapaça dos meios circulantes.
Para ele, o papel encorajava a especulação, a especulação escravizava os cidadãos aos monopolistas do banco, e as pessoas que saíam feridas eram "os ossos e músculos" da nação, "homens que amam a liberdade e desejam nada mais que leis iguais e direitos iguais", "as classes agrícolas, mecânicas e laboriosas da sociedade".
O domínio exercido por um banco central, que poderia "tornar o dinheiro escasso quando bem quisesse", era para ele um "jugo despótico".
O Banco dos EUA estava liquidado, mas ai do país caso um sucessor viesse a surgir, como agência por meio da qual os "interesses endinheirados" seriam capazes de tiranizar a maioria honesta!
Esse sucessor, o Federal Reserve [Fed, o atual banco central norte-americano], a cuja boa-fé e crédito Jackson agora empresta sua efígie, demorou muito a se materializar, e só foi estabelecido em 1913.
Os poderes que Jackson acreditava capazes de subverter as liberdades da maioria "honesta" -a capacidade de regular a base monetária- agora são considerados indispensáveis à nossa sobrevivência financeira.
A diferença é que, enquanto o Fed é uma instituição pública, o Banco dos EUA não o era. No entanto, Jackson provavelmente continuaria a desaprovar a qualidade que mais apreciamos no Fed: sua independência com relação ao Tesouro.
Mas a criação do Fed, às vésperas da Primeira Guerra Mundial [1914-18], devia muito à sobrevivência da retórica de oposição aos "interesses endinheirados" proposta por Jackson.
Fazenda x banco
Paradoxalmente, o ouro que Jackson imaginava que poderia servir como defesa do homem comum contra a fraude plutocrática era agora alvo da ira dos populistas. Uma vez mais, a oposição era entre campo e cidade, fazenda e banco.
E foi assim que entrou na liça, contra o candidato presidencial republicano William McKinley [que foi o presidente norte-americano de 1897 a 1901], o pior pesadelo dos defensores do padrão-ouro: o deputado William Jennings Bryan, admirador apaixonado de Andrew Jackson, advogado em uma pequena cidadezinha do Nebraska e pregador laico.
Todos aqueles que o ouviam, seja no circuito evangélico de Chautauqua ou no plenário do Congresso, diziam que Bryan era o mais impressionante orador que haviam encontrado. E Bryan era democrata. Antes que ele transformasse o partido, este era uma organização de derrotados.
Na convenção democrata de 1896, em Chicago, Bryan -ainda que viesse a sair derrotado da eleição- revolucionou o partido, transformando-o na agremiação que viria a abraçar a causa do "homem comum" nos momentos difíceis: o partido de Franklin Roosevelt, Lyndon Johnson e Obama.
Ouro e trabalho
Bryan subiu ao palanque em um terno de alpaca negro e de corte desleixado. "Estou aqui para lhes falar sobre uma causa tão sagrada quanto a liberdade -a da humanidade".
"O padrão-ouro é a pedra que uma parte dos EUA amarrou ao pescoço da outra. A alegação de seus defensores, os republicanos, é que eles são o partido dos negócios".
[Mas] "o homem que trabalha por um salário é tão homem de negócios quanto seu empregador, e o advogado em uma cidadezinha do interior é tão homem de negócios quanto o conselheiro de uma grande empresa em uma metrópole [...] Os mineiros que descem 300 metros às profundezas da terra ou galgam encostas de 600 metros, trazendo de seus esconderijos os metais preciosos que serão despejados nos canais do comércio, são tão homens de negócios quanto os (...) magnatas, que, de suas salas escondidas, manipulam o dinheiro do mundo".
Foi uma obra de arte norte-americana, tão afeita ao solo escuro do país quanto os versos de Walt Whitman ou a feroz sátira de Mark Twain.
Depois, ele decolou para mostrar a eles um continente sofrendo as agruras da dor social. Era o ouro, o produto dos Midas de Wall Street, que causava esse sofrimento. O que aqueles que o acumulavam sabiam sobre os EUA reais, sobre a terra do trabalho e da oração?
Com sua famosa peroração, Bryan ofereceu ao Partido Democrata, vitorioso ou não, o seu novo evangelho.
Seria bom não esquecermos que temos outro cristão sério na Casa Branca. Mas determinar se, nos tempos financeiros difíceis que ainda podem estar à espera, ele realmente terá capacidade de mudar e transformar o dinheiro em algo moral novamente é algo que ainda resta provar.
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SIMON SCHAMA é historiador, autor de "O Futuro da América" (Companhia das Letras). A íntegra deste texto saiu no "Financial Times".
domingo, 14 de junho de 2009
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