Carta Capital
01/06/2009
COREIA DO NORTE
As ameaças de Kim Jong-il soam como um apelo por mais apoio humanitário externo e uma busca por coesão interna
Com mais um teste nuclear subterrâneo e o lançamento de cinco mísseis balísticos de curto alcance, a Coreia do Norte voltou a provocar uma crise internacional. Enquanto o Conselho de Segurança das Nações Unidas (com a presença do Japão e da Coreia do Sul) elaborava uma nova resolução contra Pyongyang por sua "clara violação" de uma resolução anterior, de 2006, os Estados Unidos retaliavam com outro desafio. No caso, uma ação militar em parceria com os sul-coreanos.
Seul anunciou, após o teste nuclear dos vizinhos do norte, que iria aderir ao programa, de autoria americana, de vistoria de navios suspeitos de transportar armas de destruição em massa. O programa, concebido por George W. Bush em 2003, conhecido como Proliferation Security Initiative (PSI), foi criado para tentar colocar um fim no tráfego de mísseis c tecnologias nucleares realizado por países como Coreia do Norte e o Irã. Uma das maiores fontes de receita para Pyongyang seriam as exportações de mísseis ao Oriente Médio.
Os norte-coreanos decidiram então elevar um pouco o tom das ameaças. Um porta-voz do governo afirmou que “qualquer ação hostil” contra os navios do país provocará um “poderoso ataque militar” como reação. A administração coreana acredita que o objetivo dos EUA é asfixiá-la. “Na sua maneira de pensar, e na sua ambição desenfreada, os Estados Unidos continuam crendo que só poderão dominar o mundo quando controlarem esta região (Leste da Ásia)”, anunciou a tevê estatal.
A propaganda nacionalista (para não dizer surrealista) contra os Estados Unidos, e contra vários outros governos, vinda de um pequeno país totalitário com meio século de vida, tem sido, sem dúvida, uma maneira de instilar algum senso de orgulho nos seus cidadãos.
Pyongyang não divulga seus indicadores econômicos. Contudo, segundo o estudo anual intitulado Bilan du Monde, realizado pelo diário francês Le Monde, o Produto Interno Bruto da Coreia do Norte, em 2007, teria sido de cerca de 15 bilhões de euros. Com isso, sua renda per capita seria de meros 2 euros.
Por causa de desastres naturais, de uma economia precariamente dirigida e da escassez de alimentos, 2 milhões de norte-coreanos morreram desde meados dos anos 90. Os abusos aos direitos humanos são sistemáticos. Execuções públicas, tortura, trabalho forçado e campos de prisioneiros são comuns nas oito províncias do pequeno país.
A situação de penúria e a necessidade de obter algum apoio internacional para vencer a fome e os problemas econômicos mais urgentes parecem mover os testes nucleares. A exibição de força militar seria uma moeda de troca: abandonam-se os testes se o Ocidente ampliar suas concessões diplomáticas e econômicas.
Ao ordenar o teste com uma segunda bomba nuclear nesta semana, Kim Jong-il, o excêntrico ditador de 67 anos da Coreia do Norte, tenta se reafirmar com uma liderança importante no tabuleiro político internacional. Diabético e com problemas cardíacos, Jong-il sofreu um derrame no ano passado o ficou um tempo afastado do contato com a população. Agora apela ao nacionalismo para manter a coesão interna. Pelas ruas das cidades do pais, pôsteres mostram trabalhadores dando socos no ar enquanto mísseis cortam o céu.
Há uma propaganda de apelo mitológico em torno do dirigente. Um dos mitos é a história de que Jong-il teria nascido na Sibéria, durante o exílio de seu pai, Kim Il-sung, fundador do país em 1948. Um arco-íris duplo e uma estrela brilhante teriam marcado o evento. Na verdade, o jovem Kim teria sido concebido em um vilarejo no interior da Coreia do Norte, de forma bem menos bíblica. Em 1997, três anos após a morte do pai, Kim tornou-se o líder do Partido Trabalhista e chefe supremo da nação.
Diplomatas e dissidentes alegam que Kim padece de intensa paranoia, é hipocondríaco e vaidoso. Seria cinéfilo, amante da boa gastronomia e de bons vinhos e conhaque. Segundo Kenji Fujimoto, ex-chefe japonês de Kim, o ditador organizava banquetes de até quatro dias. Mulheres (locais e estrangeiras) sua chamada "brigada do prazer" dançavam nuas durante os jantares. Fuji-moto conseguiu escapar do país ao alegar a necessidade de comprar os melhores ouriços-do-mar no Japão. Uma versão nada impossível. Konstantin Pulikovsky, emissário russo e contemporâneo de Kim numa viagem de trem pela Rússia (ele tem medo de avião), disse que diariamente o líder norte-coreano recebia lagostas vivas. E as degustava com pauzinhos de prata.
De acordo com a mitologia vigente, Kim seria excelente cavaleiro, teria memória fotográfica e jogaria golfe com a destreza de um profissional. E aqui chegamos ao segundo motivo que poderia tê-lo levado a detonar uma bomba nuclear: reafirmar os direitos de sucessão da única dinastia existente num país comunista.
Quem seria o herdeiro desse grande homem? O caçula dos três filhos, Kim Jong-un, de 27 anos, parece ser o preferido, após seus irmãos mais velhos terem decepcionado o pai. Kim Jong-nam, de 38 anos, foi pego com um passaporte falso no Japão. Kim Jong-chol, de 28, seria, segundo o próprio pai, afeminado. Não podem ser descartados, contudo, possíveis sucessores no exército e no partido.
O preço de tamanho desafio internacional - seja por motivos econômicos, seja por conta da política interna - é no mínimo alto. Mas a Coreia do Norte ignora os avisos internacionais desde o anúncio, em abril, da disposição em realizar os testes nucleares. À época, o Conselho de Segurança das Nações Unidas ameaçou com sanções após o lançamento de foguetes de longo alcance. A Coreia do Norte explicou, então, que havia apenas colocado em órbita um satélite de comunicações. Mas a vasta maioria de observadores vê aquele como um lançamento para testar a tecnologia do míssil Taepo-dong-2, com potencial de atingir regiões dos Estados Unidos.
A já citada resolução aprovada pela ONU em 2006 havia proibido a Coreia do Norte de se engajar em qualquer tentativa de obter esse tipo de tecnologia nuclear. Aparentemente, desde aquele período, o governo de Pyongyang colaborava com o organismo e participava de forma transparente de conversações multilaterais (ao lado de Estados Unidos, Japão, China, Rússia e Coreia do Sul) que levariam ao desmonte de seu arsenal. Mas neste fim de maio, mudou de rumo e expulsou os observadores internacionais.
Os testes aumentaram a inquietação na região. O Japão teme ser alvo de mísseis de curto alcance e reativou o debate sobre como se defender ou mesmo armar ataques preventivos. Taiwan e Coreia do Sul, explicitamente ameaçados pelo vizinho, também buscam formas de se defender, o que pode levar a uma nova corrida armamentista no pedaço. E mais: Pyongyang declarou nulo o armistício assinado com Seul ao fim da guerra ocorrida entre 1950 e 1953.
Mesmo a China, que exerce grande influência sobre Kim, anda incomodada. Pequim tem sediado encontros multilaterais para normalizar a situação. Por integrar o Conselho de Segurança da ONU, a China tem impedido reacões mais explícitas contra a Coreia, na tentativa de encontrar uma solução menos traumática.
Na área econômica, os chineses são o principal apoio do regime norte-coreano. E não querem um Kim rebelde nem enfraquecido, já que a Coreia tem uma importante posição estratégica como contraponto às forças dos Estados Unidos na região. Mais independente, Pyongyang poderia causar problemas a Pequim. Ainda mais frágil, poderia significar uma onda de imigrantes que só aumentaria o trabalho de um governo que já tem a difícil missão de alimentar mais de 1 bilhão de habitantes.
A dúvida é sobre a forma de intervenção de Barack Obama. No primeiro momento após o disparo dos mísseis, o presidente dos EUA acenou com a possibilidade de diálogo. Mas, ante a nova série de testes, Hillary Clinton, secretária de Estado, disse que a Coreia do Norte vai enfrentar as consequências de sua decisão. "O sucesso de qualquer sanção vai depender de quão agressivamente a China vai implementá-las", discursou a secretária, em recado direto aos dirigentes de Pequim.
A diplomacia brasileira também foi surpreendida. O Itamaraty condenou os testes e decidiu, em demonstração de descontentamento, adiar a inauguração de um escritório no país. "O chanceler Celso Amorim me pediu que não partisse logo, que deixasse para ver o que vai acontecer", declarou Arnaldo Carrilho, designado para a função em Pyongyang.
Segundo Carrilho, o Brasil poderia exercer um papel importante para tirar a Coreia do Norte do isolamento. “Com esta bomba, então, ficou muito entupidinho o negócio, então a ideia é o Brasil chegar e ajudar", afirmou o diplomata. Se as negociações multilaterais não forem retomadas, o Conselho de Segurança apresentará novas sanções contra a Coreia do Norte nas próximas semanas.
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