domingo, 14 de junho de 2009

Brecht e o papel da Ciência

Folha de São Paulo, domingo, 14 de junho de 2009

Interpretando Galileu
PEÇA DE BERTOLT BRECHT QUE INTRODUZIU A VIDA E OS DILEMAS ÉTICOS DO CIENTISTA ITALIANO A GERAÇÕES DE ESPECTADORES COMPLETA 70 ANOS


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O Galileu de Brecht não aceita a absolvição. Ele afirma ter errado ao abjurar sua doutrina
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TIAGO TRANJAN
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Galileu: "(...) Repassei o meu caso, e pensei sobre o juízo que o mundo da ciência (...) deverá fazer a respeito."
Duas bombas atômicas -e uma guerra, a emigração para os EUA, o macartismo, o retorno para a Alemanha Oriental- separam o texto final de "A Vida de Galileu" (1955) de sua primeira versão, escrita por Bertolt Brecht em 1939, durante o exílio na Dinamarca.
A peça, considerada por muitos o ponto culminante do teatro brechtiano, introduziu gerações de plateias ao personagem Galileu, não apenas como genial cientista, mas como portador de um dilema ético central para toda a ciência contemporânea. Essa ciência que, justamente a partir da Renascença, foi ganhando relevância progressiva, até se tornar importante força de moldagem social, ao mesmo tempo em que se institucionalizava e se profissionalizava.
Um antigo discípulo: "O senhor escondeu a verdade, diante do inimigo. Também no campo da ética o senhor estava séculos adiante de nós (...) O senhor fugia meramente a uma briga política sem chances, para avançar o trabalho verdadeiro da ciência".
Em retiro forçado, após abjurar a doutrina heliocêntrica de Copérnico devido às ameaças da Inquisição, Galileu prossegue solitariamente seu trabalho científico. É nessas condições que escreve sua obra máxima, os "Discursos sobre Duas Novas Ciências". Com ela, a ciência começa a assumir a forma como a conhecemos hoje, como descrição matemática do mundo, baseada na livre investigação dos fatos. Galileu aparece envolvido, aqui, em uma luta grandiosa: para libertar a ciência do jugo da religião, dos preconceitos intelectuais, da tirania ideológica. Para ele, o livro da natureza está aberto para quem deseje ler; e o valor a ser buscado é a verdade, o conhecimento. Delineiam-se nessa luta valores que viriam a ser vistos como fundamentais para a ciência: imparcialidade, autonomia e neutralidade. Valores cognitivos puros. Valores da busca pelo conhecimento.
Galileu: "A prática da ciência me parece exigir notável coragem (...). Ela negocia com o saber obtido através da dúvida. Arranjando saber, a respeito de tudo e para todos, ela procura fazer com que todos duvidem."
De maneira surpreendente e cruel, porém, na última cena da peça, o Galileu de Brecht não aceita a absolvição oferecida por seu ex-discípulo. Ele afirma ter errado ao abjurar sua doutrina. Diz ter perdido a luta: essa luta pela nova física que, hoje, nos parece ganha. Por que, então, o genial cientista não consegue perdoar-se? Acontece que o Galileu de Brecht está falando de uma outra luta. "A miséria de muitos é velha como as montanhas, e, segundo os púlpitos e as cátedras, ela é indestrutível, como as montanhas."
Para Brecht, o conhecimento era um instrumento de transformação. Toda sua teoria do teatro épico fundava-se na ideia de que o homem podia sempre reconstruir-se, ao mesmo tempo em que reconstruía as próprias estruturas sociais. Não havia natureza definitiva da humanidade, senão a possibilidade de avançar, de descobrir novas formas de sociabilidade, mais justas e fraternas. Para isso, porém, uma condição impunha-se: que as pessoas pudessem compreender sua própria realidade, e refletir acerca de seu papel no mundo.
Galileu: "E se os cientistas (...) acham que basta amontoar saber, a ciência pode se transformar em aleijão (...) Com o tempo, é possível que vocês descubram tudo o que haja por descobrir, e ainda assim o seu avanço há de ser apenas um avanço para longe da humanidade. O precipício entre vocês e a humanidade pode crescer tanto que, ao grito alegre de vocês, grito de quem descobriu alguma coisa nova, responda um grito universal de horror."
As duas bombas atômicas haviam se tornado a marca profunda do que Brecht vinha tentando dizer. Podia-se ver agora, que a ciência não possuía apenas um método, a ser libertado e aperfeiçoado, nem somente um objetivo -o conhecimento -a ser buscado. Ela possuía também um uso político e uma apropriação social, e estes exigiam, urgentemente, uma nova configuração. Diferentes lutas, mas que precisavam ser lutadas sempre ao mesmo tempo.
Tanto Galileu quanto Brecht buscam a "verdade". Mas qual verdade? Brecht pede a Galileu que faça com sua busca científica o que ele próprio fizera com sua arte: a busca da "verdade" como revelação do homem ao próprio homem. Cabe então perguntar: estaria Brecht oferecendo, assim, um novo dogmatismo ideológico, que deveria submeter a investigação científica assim como o "realismo socialista" havia tentado submeter a arte?
A mensagem é mais crucial e precisa. Brecht coloca em dúvida a possibilidade do valor cognitivo puro, pois sabe que valores estão sempre imersos em uma sociedade. O termo "verdade" só pode apontar em uma direção: para uma melhor compreensão do ser humano e de suas possibilidades no mundo; para a consciência do homem que constantemente se reconstrói. A cobrança que Brecht dirige a Galileu -aos cientistas e homens de sua época- é tudo menos dogmática. Existe uma busca pelo conhecimento científico? Não se questiona. Mas, tudo somado, a "verdade" pode apenas ser uma busca humana.

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