domingo, 21 de junho de 2009

Espanha pendurará a toga de juiz universal

O Globo

21/06/2009

Reforma tirará da Justiça local poder de julgar ditadores e criminosos responsáveis por violações em outros países

Priscila Guilayn - Correspondente

MADRI. O caso Pinochet fez a jurisdição universal espanhola famosa em todo o mundo. Embora não tivesse pisado na Espanha, o ex-ditador chileno foi detido em Londres, onde permaneceu preso por 503 dias até o Reino Unido decidir-se, por razões médicas, mandá-lo de volta a seu país. Por trás da surpreendente prisão estava o respeitado juiz espanhol Baltazar Garzón.

Desde então, a Espanha foi aumentando seu papel de protagonista ao acolher 14 importantes casos de crimes internacionais, envolvendo EUA (Guantánamo), Ruanda, Tibete, Israel, Guatemala e El Salvador. Agora, no entanto, os socialistas (no governo) e os conservadores do Partido Popular fizeram um acordo: preparam uma reforma que promete dar, até o final deste mês, marcha a ré na legislação atual. A Espanha deixará de ser o orgulho no mundo.

— A Espanha está jogando com a impunidade. Será que não se interessa em combater os crimes mais atrozes? Atrás disso estão seus interesses particulares.

É um enorme retrocesso e uma enorme desinformação — diz Giulia Tamayo, advogada especializada em justiça universal da ONG Anistia Internacional.

A justiça universal não se exerce contra Estados e sim contra criminosos, responsáveis por crimes de guerra e contra a Humanidade, torturas, genocídio, desaparições forçadas e outras formas de terrorismo de Estado.

Mas, ao ditar ordens internacionais de captura contra os acusados de cometer estes crimes, são grandes as ameaças de conflitos diplomáticos.

ONGs de direitos humanos criticam decisão

O governo chinês, por exemplo, exigiu, no dia 7 de maio, que a Espanha tomasse medidas “imediatas e efetivas” para que fosse arquivado o processo aberto contra o ex-presidente Jiang Zemin e outros seis altos funcionários por crimes de lesahumanidade, genocídio e tortura cometidos no Tibete, no rastro da ocupação chinesa. Em janeiro, a então chanceler israelense, Tzipi Livni, já tinha batido à porta do colega espanhol, Miguel Ángel Moratinos, com o mesmo pedido. Queria evitar que sete militares israelenses, entre eles um ex-ministro de Defesa, fossem julgados pelo ataque que matou 14 civis e feriu 150 em Gaza, em 2002, quando um avião de Israel jogou uma bomba para matar o dirigente do Hamas Salah Shehadeh.

— Alguns mitos e distorções precederam a decisão de fazer esta reforma. Argumentos falsos como o de que a Justiça espanhola era ineficaz e que a execução da justiça universal é cara. Tudo falso. Dos casos abertos na Espanha, os de jurisdição universal são 0,0005% — explica a responsável por investigações da Anistia Internacional.

As principais organizações mundiais de defesa dos direitos humanos, como Anistia Internacional e Human Rights Watch, apresentaram abaixo-assinados contra a reforma. Ela pretende limitar a justiça universal, mudando de paradigma: passaria de justiça universal ao princípio de personalidade passiva, centrandose na nacionalidade das vítimas. O caso teria de ter alguma conexão com a Espanha ou algum cidadão espanhol.

Desde 1985, a legislação espanhola contempla a possibilidade de que se julguem crimes cometidos fora do território nacional. No entanto, tal princípio só começou a ser aplicado 12 anos depois, com o caso Pinochet, que marcou um antes e um depois da justiça universal.

Foi um processo argentino o único dos 14 casos de jurisdição universal acolhidos pela Audiência Nacional que teve resolução. O militar Adolfo Scilingo foi condenado a 1.084 anos de prisão por 30 mortes, além de tortura e detenção ilegal de 256 pessoas, em 1976 e 1977. Na Espanha, o acusado deve estar presente no momento do julgamento para exercer seu direito de defesa.

— Nos últimos cinco anos, a situação na Argentina mudou.

Revogaram a Lei de Ponto Final e a Lei de Anistia, e, portanto, outros torturadores, que foram colocados à disposição da Justiça espanhola, estão sendo extraditados para serem julgados lá — explica Xavier Pons, catedrático de Direito Internacional da Universidade de Barcelona.

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