Folha de São Paulo, sábado, 24 de outubro de 2009
Ortega superestima seu poder, diz ex-vice
Sérgio Ramírez, que integrou 1º governo de sandinista, diz que aposta em reeleição enfrentará obstáculos
O presidente Daniel Ortega, da Frente Sandinista (FSLN, esquerda), comemorou nesta semana a controversa decisão da Corte Suprema de Justiça da Nicarágua que abriu caminho para que ele se candidate à reeleição em 2011.
Mas o escritor nicaraguense Sergio Ramírez -que integrou a junta que governou a Nicarágua após a vitória sandinista em 1979 e foi vice-presidente no primeiro governo Ortega (1985-1990)- ataca a decisão e projeta um futuro turbulento para seu ex-aliado. "Sob esse argumento, de igualdade de todos perante a lei, pode-se desmontar toda a Carta", diz. Dissidente do sandinismo desde os anos 90, ele diz que o presidente terá dificuldades para conter os ânimos políticos e sociais. Enumera as razões: a tentativa de união inédita entre direita e dissidentes sandinistas contra Ortega, a rejeição da elite econômica à medida e a precária situação econômica.
Ontem, Ortega recebeu a primeira notícia ruim: segundo pesquisa nos principais centros urbanos, 71,3% pensam que ele não deve tentar se reeleger.
Enquanto a oposição promete bloquear iniciativas do governo no Parlamento, o governo corre para aprovar o Orçamento de 2010, que inclui medidas impopulares que visam convencer o FMI (Fundo Monetário Internacional) a liberar US$ 90 milhões para o país.
Da Universidade Harvard, nos EUA, onde está ministrando desde setembro o seminário "História pública e privada na novela latino-americana", Ramírez falou ontem à Folha. Leia os principais trechos:
FOLHA - A mobilização da oposição contra a reeleição pode vingar?
SERGIO RAMÍREZ - Quem vai decidir é a capacidade da oposição de mobilização popular. Esse é um assunto que se vai decidir nas ruas. Para isso funcionar, a oposição tem de demonstrar que está unida. Há, pela primeira vez, uma única frente de luta contra o governo, incluindo [o ex-presidente Arnoldo] Alemán, MRS [Movimento Renovador Sandinista], o setor privado, a sociedade civil.
FOLHA - Há desconfianças sobre Alemán, que já se aliou a Ortega...
RAMÍREZ - Temos de dar o benefício da dúvida a Alemán. Parece-me que discriminá-lo por seu passado, tirá-lo de uma aliança contra um golpe contra a Constituição não é correto. Ele tem de provar que está sinceramente ao lado da frente.
FOLHA - Por que Ortega resolveu defender a mudança agora, a dois anos da eleição? Qual o cálculo?
RAMÍREZ - Ortega pensa que até 2011, com a cabeça fria, a oposição vai pensar que, se ficar fora das eleições, ficará fora do jogo. Pensa que vai conseguir controlar politicamente o jogo, os ânimos. É um processo que está amarrado porque o Conselho Supremo Eleitoral, como a Corte Suprema, dependem de Ortega. Se contarem os votos como nas eleições municipais de 2008, quando houve fraude evidente, é o sistema democrático que estará em escombros. O movimento é uma escalada que pretende fazer com que as pessoas não queiram ir votar. Se só os militantes da Frente Sandinista votarem, Ortega ganhará, e o resto perderá a fé no sistema. Esse me parece que é um dos cálculos. Mas para isso ele precisava ter controle absoluto da situação econômica e social, e não acho que tenha.
FOLHA - Por que não tem?
RAMÍREZ - A situação econômica é muito ruim. As leis econômicas que o governo quer passar na Assembleia Nacional são regras ditadas pelo FMI, muito impopulares. Por conta do deficit fiscal, querem taxar as remessas enviadas pelos imigrantes, a segunda fonte de divisa. Segundo a última pesquisa, só 23% da população apoia a medida e o governo. É um apoio muito precário para tentar uma operação dessa magnitude. Tanto o Conselho Superior das Empresas Privadas como a Câmara Americana de Comércio, as mais importantes do setor, estão contra a reeleição. É algo novo. Eles têm tido tolerância com Ortega na medida em que pensavam que ele seria substituído. Quando veem que está ficando para sempre, a situação muda de figura.
FOLHA - E qual é o papel de Hugo Chávez nessa dinâmica?
RAMÍREZ - É muito importante. Chávez é quem sustenta Ortega, paga a conta petroleira diretamente a ele. Esse dinheiro não vai para os fundos públicos.
FOLHA - Para onde caminha a crise de Honduras?
RAMÍREZ - Houve mau cálculo político tanto de [Manuel] Zelaya como dos golpistas, e é por isso que situação está travada, e não vejo como pode ser resolvida. O fato de um golpe como esse ficar impune é muito perigoso para a América Latina.
FOLHA - A crise de Honduras reverbera na região, na Guatemala?
RAMÍREZ - A situação da Guatemala é muito perigosa, e a de El Salvador pode chegar a ser. Nos dois países houve guerras civis nos anos 80. Os Exércitos que combateram contra as guerrilhas estão lá. O que há é uma tolerância forçada. A tensão está lá. Na Guatemala, o Exército segue dominando a vida política. O presidente tem poderes muito limitados. Tudo isso está misturado: a mão secreta do Exército, as gangues e "maras" ligados ao narcotráfico. Tudo isso é fator desestabilizador ante um poder civil débil.
sábado, 24 de outubro de 2009
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