Valor Economico 29 de outubro de 2009
Corrupção reflete crise de legitimidade do Estado, diz Misse
A modernidade separou a lógica e o cálculo econômico da política, e a compartimentação desse entendimento dificulta aos agentes políticos e econômicos entender a corrupção como uma mercadoria política. Defini-la como uma mera disfunção do sistema capitalista, uma anomalia que simplesmente gera prejuízos econômicos ou só um produto de um desvio moral, despe a corrupção de sua característica de mercadoria política, entendida como a soma de lógicas e cálculos políticos e econômicos - com um valor de troca definido pela lei da oferta e da procura e que incorpora também um cálculo das relações de poder, uma correlação de forças políticas. Essa é a visão do cientista político Michel Misse, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, numa mesa sobre "Democracia e Corrupção, uma Convivência Impossível", realizada ontem, primeiro dia do 33º Encontro Nacional da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs), em Caxambu, e que vai até quinta-feira.
"É preciso deslocar essa visão do campo moral e econômico para uma discussão de poder e mesmo de violência", afirmou Misses. A acumulação primitiva de capital pressupunha a existência de mercadorias políticas, como a escravidão, que era não apenas uma relação econômica, na medida em que tornava a força de trabalho uma mercadoria, mas de poder em relação ao homem que era escravizado. Na modernidade, o capital requereu a participação do Estado na regulação das relações que lhe eram próprias e a corrupção - entendida como mercadoria política - foi criminalizada, mas isso não quer dizer que tenha deixado de existir. "A corrupção é uma relação de troca, ilegal e assimétrica, que pode até ser desejável pelas duas partes - o corrupto e o corruptor - mas ela é compulsória", afirma. É uma relação econômica porque o mercado de corrupção define o seu valor; mas é também um cálculo político, porque o agente público que se apropria do poder em benefício privado tem o monopólio das relações de poder que pode vender ao agente privado - definir uma licitação, por exemplo. O cálculo político e o cálculo econômico estão intimamente relacionados. Está embutido no preço, por exemplo, o risco que o corrupto corre de ser pego pelas leis de um sistema que, em última instância, abre espaço para esse tipo de comportamento transgressor. Este não é, no entanto, um risco econômico, mas político.
"Sempre existiram aqueles que ganharam dinheiro com o uso da ilegalidade, da violência e do crime", diz Misses. A corrupção é um desvio porque foi criminalizada, mas está lá porque tem sua lógica própria e funciona como um sistema paralelo ao legal. A violência é um valor intrínseco nesse mundo paralelo - a corrupção pressupõe a apropriação do que é público e uma relação assimétrica de poder. Para Misses, o seqüestro é um ato de corrupção privada: o criminoso se apropria de um bem de outro, a sua vida, e negocia, com base no poder que tem sobre aquela vida, como os familiares da vítima o preço de sua vida. O seqüestro também é uma mercadoria política.
Se existe capitalismo sem corrupção - ou socialismo, já que pelo socialismo real do século passado transitava o mesmo tipo de mercadoria política -, Misses não arrisca dizer, mas uma corrupção alarmante, segundo ele, reflete uma crise de legitimidade do Estado. "O Estado se enfraqueceu a tal ponto que um funcionário público se apropria dele para vendê-lo ao mercado". De alguma forma o Estado cede a isso, ao terceirizar suas funções. "É um reconhecimento de sua fraqueza".
O antropólogo Luís Roberto Cardoso de Oliveira, da Universidade de Brasília (UnB), entendeu a corrupção como um dado cultural de produção de desigualdades. A incorporação da desigualdade como um dado - tratar desigualmente os desiguais na medida em que eles se desigualam, segundo Rui Barbosa - leva a supor, no corpo social, que existam tolerâncias e intolerâncias a formas muito similares de apropriação privada de espaços públicos. O pesquisador deu, como exemplo, a excessiva tolerância com trocas políticas feitas, por exemplo, no caso das emendas de parlamentares - o governo não define a liberação dessas verbas pautado por critérios de razoabilidade da demanda, mas pelo interesses seus no Congresso. Foram visões éticas diferentes, por exemplo, que definiram uma certa tolerância, no caso do mensalão, com o caixa dois de campanha - o detrator, Roberto Jefferson, e o próprio presidente Luiz Inácio Lula da Silva chegaram a declarar que era impossível fazer campanha nesse sistema político sem utilizar esse recurso; no extremo oposto, no caso do mensalão, que dizia respeito a uma suposta "mesada" ilegal a funcionários o discurso político foi de críticas, sem qualquer tipo de ressalva.
quinta-feira, 29 de outubro de 2009
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