Valor Econômico de 26 de maio de 2010
Também há uma crise existencial a ser enfrentada
Olga de Mello, para o Valor, do Rio
25/05/2010
"Capitalismo Parasitário"
Zygmunt Bauman. Trad. de Eliana Aguiar. Zahar. 96 págs., R$ 19,00
"Diante da Crise"
Luc Ferry. Tradução de Karina Jannini. Difel. 128 págs., R$ 28,00
A reação a uma crise econômica se faz através da reconstrução de um sistema que já provou ser instável ou deve levar a reflexões sobre novas maneiras de produção e de reestruturação social, passando pelo trabalho e pela educação? Buscar novos rumos para a economia europeia - e para sua cultura - através da análise dos problemas mundiais desencadeados a partir do segundo semestre de 2008 é o que propõem em seus livros o filósofo francês Luc Ferry e o sociólogo polonês Zygmunt Bauman.
AP
Ferry sugere um movimento educativo, que valorize a vida menos materialista
Críticos ferrenhos da cultura do consumo compulsivo, que em muito explica o desastre financeiro americano e, por consequência, a crise global, Ferry e Bauman estão mais preocupados com o vazio existencial das novas gerações do que com a imediata recuperação da economia. A base desse vazio, que privilegiou o consumidor em detrimento do cidadão, é a mesma que permitiu a reinvenção dos piores aspectos do capitalismo, substituindo a exploração dos trabalhadores pelo endividamento dos consumidores. No entanto, se Bauman e Ferry compartilham a virulência no ataque às estratégias das entidades bancárias - aliadas a veículos de comunicação que disseminam a cultura da satisfação imediata pela aquisição de bens que se mostram obsoletos antes de serem plenamente usufruídos -, cada um mantém uma visão particular sobre como enfrentar uma crise que não está circunscrita a aspectos econômicos.
Aos 84 anos, professor emérito das universidades de Leeds e de Varsóvia, Bauman acredita que o capitalismo encontrará novas formas de sobrevivência, alimentando-se, como um parasita, de quem o hospeda ou sustenta. A atual contração do crédito, afirma, "fruto do sucesso extraordinário dos bancos em transformar os correntistas em uma raça de devedores eternos", não significa o fim do sistema, mas "a exaustão de mais um pasto". A saída do sistema está na máquina estatal, com a utilização de recursos públicos, "já que o poder de sedução do mercado está momentaneamente abalado".
A indignação de Bauman é direcionada também aos esforços dos agentes financeiros em convencer jovens a contrair empréstimos antes mesmo de iniciarem suas carreiras profissionais. Ao disseminar a noção de que o consumo é o meio para alcançar a felicidade, o sistema bancário internacional garante que as dívidas se eternizem em amortizações infindáveis.
"Ainda não começamos a pensar seriamente na sustentabilidade dessa sociedade alimentada pelo consumo e pelo crédito. (...) As fontes de lucro do capitalismo se deslocaram da exploração da mão de obra operária para a exploração dos consumidores", alerta Bauman em "Capitalismo Parasitário", no qual aponta a volúpia dos serviços de marketing em conquistar os poupadores que rejeitam o parcelamento de suas compras. Para assegurar a fidelidade dos devedores ao consumo compulsivo existe o crédito, que pode criar dependência maior do que drogas tranquilizantes, afirma o sociólogo.
Mais comedido em seus exemplos, embora também contundente na objeção à cultura do endividamento, Ferry preocupa-se em identificar a crise como econômica, gerada no enfraquecimento das classes médias - uma decorrência da globalização. Um momento-chave para o crescimento do capitalismo passar a depender do endividamento "das famílias mais numerosas e menos ricas". Ex-ministro da Educação da França entre 2002 e 2004, Ferry, de 59 anos, hoje preside o Conselho de Análise da Sociedade, órgão governamental para o qual, no ano passado, ele escreveu o relatório "Diante da Crise - Materiais para uma Política de Civilização". O documento não se limita a discutir as causas do colapso financeiro mundial, mas pretende aproveitar a crise como "uma oportunidade para abrir os olhos", pois, segundo Ferry, "é intrinsecamente insatisfatória uma sociedade que parece atribuir à vida humana, como único horizonte de sentido, o 'cada vez mais' .(...) Cria frustrações irremediáveis".
Otimista, Ferry acredita que a compulsão consumista possa ser abafada com o fortalecimento de valores humanitários. Isso, porque, se não existe mais mobilização em torno da defesa de religiões, nações ou políticas/revoluções, dentro de um contexto europeu, os filhos ou até "pessoas próximas, família ou amigos" ainda são motivo suficiente para levar alguém a correr riscos, a entrar em batalhas. Depois das mudanças céleres experimentadas a partir do século XX, chegamos a uma época de solidariedade afetiva, a era de um novo humanismo, afirma Ferry.
Publicados antes da recente crise da Grécia, os dois livros trazem a advertência dos autores sobre a probabilidade de problemas econômicos estarem à espreita dos jovens que não se prepararam para substituir os atuais adultos. O desinteresse desses jovens em receber tal treinamento viria da superficialidade de um mundo em que sobram informações, mas a formação é escassa. "A arte de viver num mundo hipersaturado de informações ainda não foi compreendida", observa Bauman.
O estranhamento das gerações, para Ferry, pode e precisa ser combatido. Desse afastamento teria surgido a erosão das tradições, "calamitosa em alguns níveis, sobretudo na escola", que é traduzida pelo "aumento da incivilidade". Sem perder o entusiasmo, Ferry aposta em um amplo programa educacional, que divulgue obras filosóficas, literárias e cinematográficas e, assim, desperte a atenção dos estudantes para a ética de uma vida menos materialista.
quarta-feira, 26 de maio de 2010
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