sábado, 3 de julho de 2010

Contradições da política de punições contra crimes de Direitos Humanos na Argentina

Folha de São Paulo, sábado, 03 de julho de 2010




ANÁLISE

Política argentina para julgar crimes ocorridos na ditadura é contraditória
LUIS GARCIA FANLO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Nos últimos 27 anos, os governos democráticos da Argentina vêm implementando políticas contraditórias em relação aos processos judiciais contra os responsáveis tanto ideológicos quanto materiais pelas violações dos direitos humanos cometidas na última ditadura (1976-83).
Os militares foram julgados e condenados; mais tarde, perdoados por "obediência devida" e, finalmente, indultados, o que explica a razão pela qual, depois de tantos anos, os chefes militares continuem a desfilar pelos tribunais argentinos.
Por outro lado, os organismos de direitos humanos sempre se opuseram a um júri unificado, e não lhes faltaram motivos para exigir que os processos se multiplicassem: os militares se negaram a reconhecer a existência de desaparecidos, chegando a justificar suas ações em nome da guerra "à subversão".
O julgamento de cada ato, de modo individual, traz à tona o fato de que houve uma política de Estado repressiva, que o envolvimento permeou todos os níveis da estrutura militar, e que os militares não foram os únicos envolvidos, já que vem à tona o envolvimento de empresários, médicos, juízes, policiais, políticos, sacerdotes e membros da cúpula da Igreja Católica.
Não obstante, o fato de o assunto ter sido encerrado no âmbito judicial teve efeitos graves na sociedade argentina: desmobilização das organizações de direitos humanos, apatia dos cidadãos, insinuações de uso político dos júris pelo governo.
Hoje, inclusive, o próprio governo segue uma política ambivalente, na medida em que leva os júris adiante e, ao mesmo tempo, propõe a "revalorização" das forças.
Assim, assistimos a um paradoxo: todos os dias, em algum tribunal, algum militar é julgado; por outro lado, a classe política, os formadores de opinião e o argentino "da rua" manifestam desprazer em ouvir falar do assunto, que gostariam de ver encerrado de uma vez por todas, pois "é preciso deixar o passado para trás e ocupar-se dos problemas do presente".
A questão é que os "problemas do presente" não podem ser entendidos sem encarar o fato de que a ditadura não foi simplesmente terrorismo de Estado, mas que o terrorismo de Estado foi o apoio de uma reconfiguração radical da estrutura social argentina, que afetou matrizes culturais, esquemas mentais, condições econômicas de sobrevivência, e que inscreveu em nossos corpos o disciplinamento e o controle social necessários para tornar argentinos e argentinas governáveis, naturalizando o apolitismo extremo de hoje.

O professor LUIS GARCIA FANLO é doutor pela Universidade de Buenos Aires e autor do livro "Genealogia da Argentinidade"

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