sábado, 3 de abril de 2010

O Princípio da Responsabilidade e a sociedade de risco

Uma heurística do medo
03 de abril de 2010
Oswaldo Giacoia Junior - O Estado de S.Paulo
A multiplicação de desastres naturais vitimando populações inteiras é inquietante: tsunamis, terremotos, secas e inundações devastadoras, destruição da camada de ozônio, degelamento das calotas polares, aumento dos oceanos, aquecimento do planeta, envenenamento de mananciais, desmatamentos, ocupação irresponsável do solo, impermeabilização abusiva nas grandes cidades.


Alguns desses fenômenos não estão causalmente vinculados à conduta humana. Outros, porém, são uma consequência direta de nossas maneiras de sentir, pensar e agir. É aqui que avulta o exemplo de Hans Jonas.

Em 1979 ele publicou O Princípio Responsabilidade. A obra mostra que as éticas tradicionais ? antropocêntricas e baseadas numa concepção instrumental da tecnologia ? não estavam à altura das consequências danosas do progresso tecnológico sobre as condições de vida humana na Terra e o futuro das novas gerações. Jonas propõe uma ética para a civilização tecnológica, capaz de reconhecer para a natureza um direito próprio.

O filósofo detectou a propensão de nossa civilização para degenerar de maneira desmesurada, em virtude de forças econômicas e de outra índole que aceleram o curso do desenvolvimento tecnológico, subtraindo o processo de nosso controle.

Tudo se passa como se a aquisição de novas competências tecnológicas gerasse uma compulsão a seu aproveitamento industrial, de modo que a sobrevivência de nossas sociedades depende da atualização do potencial tecnológico, sendo as tecnociências suas principais forças produtivas.

Funcionando de modo autônomo, essa dinâmica tende a se reproduzir coercitivamente e se impor como único meio de resolução dos problemas sociais surgidos na esteira do desenvolvimento. O paradoxo consiste em que o progresso converte o sonho de felicidade em pesadelo apocalíptico ? profecia macabra que tem hoje a figura da catástrofe ecológica.

O relacionamento entre o lado econômico e a vertente biológica do programa tecnológico de dominação da natureza mostra bem isso. Do lado econômico, temos um aumento per capita de bens de consumo, com significativa redução no dispêndio de força. Daí resulta mais bem-estar, elevação automática de consumo, incremento do metabolismo entre o corpo social e o meio ambiente ? o que ameaça com esgotamento de recursos naturais finitos. Se ligamos a isso o sucesso biológico do desenvolvimento técnico, temos um aumento da população em toda área sob o efeito da tecnologia, com alongamento da curva de longevidade de boa parte da população mundial, o que exige o incremento compulsório da produtividade do sistema para atender às demandas crescentes de consumo.

O que fica estruturalmente comprometida é a capacidade de fixar limites éticos e jurídicos, do interior do próprio processo, ao seu desenvolvimento. Aqui a auto-contradição consiste em que a vontade de poder perde o domínio sobre a dinâmica de crescimento e esbarra na incapacidade de proteger a natureza e o homem dos elementos destrutivos de sua própria obra. Dessa impotência advém a necessidade de uma "crescentemente impiedosa pilhagem do planeta, até que este pronuncie sua palavra de força e se furte à exigência excessiva" (O Princípio Responsabilidade, página 252). Nesse drama somos, ao mesmo tempo, o paciente e o médico à sua cabeceira.

As teses de Hans Jonas têm raízes na história da Filosofia e no diálogo com as ciências, em particular com a biologia molecular. Assim, não é razoável esperar dos cidadãos comuns que tenhamos respostas às questões por ele formuladas.

Mas se não podemos responder, podemos corresponder a elas e à atitude existencial que as anima por meio de nosso próprio ethos, na medida de nossas limitações. Por exemplo, tendo clareza sobre o significado de seu posicionamento no espaço público, assumindo o encargo de revolver nossas feridas narcísicas. Podemos ouvir seu chamado à responsabilidade sobre as consequências ambientais de nossos comportamentos habituais.

Evitar a ocupação predatória do solo, a contaminação dos rios; exigir a realização de obras que evitem transtornos ambientais, elegendo para isso políticos honestos; atentar para o abuso de recursos hídricos ? isso podemos fazer.

O envenenamento e o consumo irresponsável de água talvez sejam nossa mais funesta leviandade atual, ao lado da falta de juízo no planejamento familiar. À escassez ou à poluição hídrica está ligada a mortalidade infantil, e o retorno de doenças consideradas erradicadas do planeta, dois terços de cujos habitantes já vive em condições de desertificação.

Jonas percebeu o simples: para que um "basta" derradeiro não seja imposto pela catástrofe, é preciso uma nova conscientização, que não advém do saber oficial nem da conduta privada, mas de um novo sentimento coletivo de responsabilidade e de temor.

Tornar-se inventivo no medo, não só reagir com a esperteza de poupar a "galinha dos ovos de ouro", mas ensaiar novos estilos de vida, comprometidos com o futuro das próximas gerações.

Se isso parece superior às nossas forças, também é verdade que, em nossa esfera, muito nos é permitido fazer: cultivar um sentimento comum de cuidado para com o pool de recursos que milênios de evolução nos legaram. Evitar a tentação dos sensacionalismos sem apoio científico (como a recente culpabilização da pecuária pela poluição do ar), ou a sedução do simplismo politicamente correto (proliferação indiscriminada de ONGs) ? "soluções mágicas" que podem desandar em práticas deletérias, que já não nos é mais moralmente lícito tolerar.


FILÓSOFO

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