domingo, 18 de abril de 2010

Constitucionalismo latino-americano

, 18 de abril de 2010 Folha de São Paulo
Crise de futuro reitera heróis do passado, diz historiador venezuelano
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FLÁVIA MARREIRO
em Caracas

O historiador e antropólogo venezuelano Fernando Coronil, professor da Universidade da Cidade de Nova York, é autor "The Magic State: Nature, Money and Modernity in Venezuela" (The University of Chicago Press, 1997), considerado um clássico moderno sobre o Estado venezuelano, a relação com o petróleo e a tradição de presidentes fortes.

Na entrevista abaixo, ele comenta as comemorações do bicentenário de independência da América Hispânica e seu significado para os governos esquerdistas da região, a o momento difícil do chavismo e os rumos --ou a falta deles-- no projeto do "socialismo do século 21".

Coronil prepara um livro sobre o golpe fracassado contra Chávez em 2002.

FOLHA - De todos os governos "refundacionistas" da região, que mencionam como meta a "segunda e definitiva independência", Chávez é quem dedica mais tempo à operação para se vincular à imagem de um Bolívar, líder de uma rebeldia popular, e não o patrício unificador. Bolívar tem essa força no imaginário venezuelano que justifique tanto investimento?

FERNANDO CORONIL -Bolívar tem indiscutivelmente muita força no imaginário venezuelano. Basta revisar a nossa história e observar que Bolívar é o modelo exemplar de líder nacional de todos os nossos presidentes, desde Guzmán Blanco nos século 19 até Chávez. Mas o interessante é como é usado e qual a razão. Sempre nas Américas as elites usaram a independência como um momento fundacional de nação e tipicamente viram seus próprios projetos como "segunda independência".

Agora, há duas coisas novas. Em primeiro lugar, os governos que se apresentam como "esquerdistas" também anunciam uma segunda independência, mas os momentos fundacionais já não são só as guerras de independência: para Evo Morales são 500 anos de luta anticolonianista; para os Kirchner são as lutas do peronismo progressista; para Michelle Bachelet a empreitada allendista. Para Chávez é fundamentalmente a guerra da independência porque isso lhe permite se apresentar como um "segundo Bolívar". Mas até Chávez expandiu a genealogia da Revolução: ontem, falou de 200 anos de luta, mas também de 500 anos, uniu Bolívar com a lutas de Guaicaipuro, o cacique conhecido por sua resistência aos colonizadores espanhóis.

Para o povo, Chávez representa o mestiço, Bolívar, mas também Guaicaipuro. Mas como bem sugere a pergunta, o Bolívar de Chávez não é o Bolívar patrício das elites caraquenhas, mas o Bolívar popular tão brilhantemente analisado por Yolanda Salas.

É o Bolívar redentor do povo comum que encontramos no imaginário popular venezuelano, tanto secular como religioso --como por exemplo, na religião de Maria Lionza, onde Bolívar é, junto com Maria Lionza, o espírito mais elevado [religião sincrética boliviana com característica comuns com as religiões afro-brasileiras].

Em segundo lugar, essa reiteração de heróis do passado ocorre porque há uma crise de futuro. Nenhum sistema oferece um futuro confiável, viável: nem o futuro capitalista, porque o capitalismo não traz bem-estar a toda a humanidade e destrói o planeta, nem o futuro do socialismo, porque todos os socialismos reais ficaram muito distantes da utopia prometida. Então, todos os presidentes esquerdistas, sem modelos de futuro, tem de negociar no presente com o capitalismo, prometendo um futuro vago, e buscar modelos sólidos no passado. A constante repetição e celebração do heroico passado revela a necessidade de ter um fundamento sólido quando o horizonte de futuro parece falso.

FOLHA - O sr. já disse que Chávez "produz" história o tempo todo, que essa "verborragia" é parte importante do governo. Com a crise energética e a inflação, há um risco de que essa "magia das palavras", e especialmente da tão repetida "revolução" se acabe? Como avalia esse momento do chavismo?

CORONIL - Evidentemente, Chávez é um grande encantador. Esse é um momento difícil para o chavismo. Todo o encanto tem de se basear em conquistas, não só em palavras. O desencanto cresce no abismo entre as conquistas e as promessas.

A crise energética, a inflação, a insegurança, a crise produtiva, a corrupção estão minando seu projeto. Contra o desencanto, Chávez propôs intensificar a polarização do país entre revolucionários e "burgueses pitiyanquis". Na minha opinião, a única estratégia que pode ter êxito agora é o encanto da eficiência. As palavras, inclusive as vibrantes deles, não são suficientes para evitar o desencanto. Agora são necessárias obras.

FOLHA - Chávez insiste que é necessário "avançar" e "aprofundar" o socialismo. Disse também, nessa semana, que, se o derrubam, haverá anarquia. Ao mesmo tempo, não há --ou ele não deixa que exista_ nenhuma liderança que se destaque hoje no chavismo além de Chávez. Qual a sua avaliação?

CORONIL - É evidente que Chávez está preocupado --pela vida de seu projeto e por sua própria vida. Para assegura a vida da revolução, propõe aprofundar o socialismo. Para evitar o magnicídio, ameaça a com a radicalização da revolução. Creio que se evita a morte da revolução criando condições que levem a um bem-estar coletivo. E se evita o magnicídio criando as condições para que sua liderança não seja indispensável --não ameaçando a oposição como se fosse um castigo. Se o socialismo é participativo, então o aprofundamento do socialismo deveria significar a participação de todos na política e por tanto, o surgimento de múltiplas lideranças e da diminuição de um clima de polarização.

FOLHA - O que esperar das eleições legislativas de setembro?

CORONIL - Creio que as eleições de setembro vão provocar uma mudança saudável na Assembleia: ela vai representar melhor a situação do país, a existência de um forte setor chavista, mas também uma variada oposição. Embora Chávez não pense assim, é bom para o país e bom para o aprofundamento da democracia, especialmente a socialista.

FOLHA - O senhor fala do "Estado mágico" venezuelano, da tradição personalista dos presidentes do petroestado venezuelano, o que mostra que o modelo de liderança de Chávez não é exatamente novo. Qual o lugar de Chávez na história Venezuelana?

CORONI - Chávez representa a apoteose de toda uma tradição de Estados mágicos. Todos os petroestados anteriores prometeram harmonia e bem-estar. O novo é que Chávez promete Justiça: é um Estado justiceiro. Promete bem-estar para as maiorias excluídas, castigo para os oligarcas exploradores. Creio que Venezuela é um dos poucos países do mundo onde se poderia ter produzido um Estado justiceiro menos polarizado. Mas ainda que tomássemos essa opção como válida, creio que seu lugar na história dependerá de sua capacidade ser efetivamente justiceiro: reduzir as desigualdades e da exclusão social. Já é uma conquista Chávez ter dado às maiorias um sentido de pertencimento ao país e ao sistema político. Mas seu grande desafio é transformar esse sentimento em uma participação real. Ainda tem até 2012 para responder a esse desafio. A história está escapando-lhe das mãos, mas talvez ainda haja tempo de melhorar seu caminho e encontrar seu lugar na história.

Para melhorar seu caminho, porém, penso que não deve encolhê-lo, com está fazendo, mas ampliar-lo. Não deve polarizar ou militarizar, mas integrar. Deve incluir gente competente, capaz paz de ser crítica --e escutá-los. Venezuela tem milhares de engenheiros elétricos muito capacitados. É incrível que estejamos sofrendo uma crise energética. É um momento para mudanças. Se não mudar o passo, não encontrará melhor caminho.

FOLHA - Nesta semana, Chávez fez uma grande manifestação para comemorar a reversão do golpe em 2002. Levou para a avenida Bolívar, no centro de Caracas, 35 mil integrantes da Milícia Nacional Bolivariana. Essa militarização deve ser motivo de preocupação?

CORONIL - Esse ano me pareceu mais importante. Nos primeiros anos após o golpe, eram comemorações mais discretas. Esse ano, Chávez falou na avenida Bolívar, e não me lembro de ele ter feito isso antes. Não tenho certeza do que motivou a manifestação. Mas imagino que tenha a ver com as eleições, com a queda de popularidade de Chávez. Como dizia antes, quando se fala de 200 anos de luta, de 500 anos de luta, é porque não se tem certeza quanto ao futuro. Havia umas 30 mil pessoas que estavam, de alguma maneira, obrigadas a estar lá. Não foi uma manifestação popular maciça, como já houve outras no chavismo. Foi restrita --o tom era o verde-oliva militar, não uma manifestação cívica.

Sempre tive preocupação com a militarização num projeto que se apresenta como aprofundamento da democracia, que deveria abarcar todos os setores e orientações. Quando se fala de militarização, fala-se de uma única voz.

FOLHA - Quando Chávez fala de socialismo, para que está convidando os venezuelanos? O sr. crê que há um plano? Quanto da economia deve estar na mão do Estado, quanto devem ser cooperativas?

CORONIL - Tenho tentado seguir a pista do que seria o "socialismo do século 21", mas não há nada muito claro. A experiência de propriedades sociais, de cooperativas não têm tido muito êxito no país, e ainda são marginais. O que tem ocorrido tem muito mais a ver com o socialismo do século 20. As nacionalizações de empresas e bens privados tem acontecido arbitrariamente, sem um plano maior. Ao que se sabe as fazendas que foram nacionalizadas, as indústrias nacionalizadas no Estado de Guayana não estão rendendo bem. Paradoxalmente, o curioso é que o coração da economia --a indústria petroleira-- tudo acontece sem grande discussão, aí onde precisamente deveria haver. Paradoxalmente, enquanto se nacionaliza empresas menores, o edifício A França, no centro de Caracas, o Estado fecha as negociações petroleiras sem debate. Pode ser que o modelo de empresas mistas de exploração seja a mais justa ou melhor, mas não se discute. É um tema delicado, onde não há consenso. E deveria haver um consenso nacional. Discutir o que convém e o que não convém ao Estado, a questão tecnológica, a questão das empresas estrangeiras como coproprietárias das reservas...

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