Folha deSão Paulo, domingo, 28 de fevereiro de 2010
O país imaginário
LANÇADA NOS EUA, "UMA NOVA HISTÓRIA LITERÁRIA DA AMÉRICA" MAPEIA A FORMAÇÃO DA CULTURA NORTE-AMERICANA, DA COLÔNIA AOS DIAS ATUAIS
LEO ROBSON
Os EUA são, ao mesmo tempo, aquela coisa rara, um clichê complexo e uma coisa muito familiar, um conjunto de contradições: "uma nação sob Deus, indivisível", mas com uma dúzia de variedades de cristianismo, um produto do puritanismo e do iluminismo, uma colônia que virou superpotência igualmente definida por atos de violência e crença na liberdade, isolacionismo e intervencionismo, conformismo e autoconfiança.
Mas a maioria das pessoas não tem dificuldade para entender a ideia de uma América essencial -e até estável- e possui o que o crítico Greil Marcus, em "A New Literary History of America" [Uma Nova História Literária da América, Harvard University Press, 1.128 págs., US$ 49,95, R$ 91, editado com Werner Sollors], chamou de "senso do que é ser americano; o que significa, qual é o seu valor, qual seria o prêmio da vida no EUA".
A interação entre a heterogeneidade da América e sua aspiração à coerência é captada no texto da Declaração de Independência ("um povo"), no sistema de governo (uma República Federativa) e em seu nome adotivo (Estados Unidos).
Mas, se a América é um paradoxo, mais que uma hipocrisia, se possui unidade apesar de suas divisões, isso se deve a um processo claro, algo não exatamente incluído nos termos "sistema político", "democracia" ou "cadinho cultural".
O olhar estrangeiro
Esse processo distinto, essa coisa, e seus produtos na vida pública foram consistentemente notados por estrangeiros: Crèvecoeur, na década de 1780, Tocqueville, elogiando a participação civil nos anos 1830, James Bryce [historiador britânico], chocado pelo "poder solvente" dos EUA na década de 1880, Gunnar Myrdal [economista sueco] identificando "ideais gerais" entre o "credo americano" nos anos 1940.
E a admiração não parou. O crítico de arte Robert Hughes, que se mudou para Nova York em 1970, mas mantém a cidadania australiana, falou sobre "o tradicional gênio americano para o consenso, para seguir adiante fazendo compromissos práticos para suprir as verdadeiras necessidades sociais".
Uma antiga e incipiente fé nessa unidade e essência foi registrada no livre uso de "americano" como substantivo e adjetivo e, depois, em duas invenções quiméricas: o grande romance americano (1868 -uma empreitada pós-Guerra Civil) e o sonho americano (1931 -um oásis na Depressão).
Quando Crèvecoeur descreveu o norte-americano como receptor de um novo modo de vida, um novo governo e uma nova classe, ele estabeleceu os termos em que os EUA, suas tradições e sua cultura seriam discutidos.
D.H. Lawrence [escritor britânico, 1885-1930], em seu confuso "Estudos de Literatura Americana Clássica", elogiou obras como "O Último dos Moicanos" [de Fenimore Cooper] e "Moby Dick" [de Herman Melville] por produzirem uma nova voz, uma nova experiência e um novo sentimento. A tarefa definitiva da literatura americana foi engarrafar ou incorporar essa essência dos EUA.
Em "O Grande Gatsby", de Scott Fitzgerald [1896-1940], um romance que faz as duas coisas, Nick Carraway descreve Jay Gatsby "equilibrando-se sobre o painel de seu carro com a habilidade de movimento que é tão tipicamente americana", e este generaliza que "os americanos, enquanto dispostos, e até ávidos por serem servos, sempre foram obstinados por serem camponeses".
Fitzgerald não foi o único nessa missão. Como diz o britânico Martin Amis, "todo romancista americano ambicioso tenta genuinamente escrever um romance chamado EUA". A literatura americana, como a América, há muito se dedica a perseguir um destino independente do domínio ou da tutelagem britânicos.
Em 1837, Ralph Waldo Emerson fez sua palestra sobre "O Acadêmico Americano" na Universidade Harvard -uma declaração de independência literária logo cumprida por uma atarefada meia década (1850-55) em que Whitman, Melville, Hawthorne, Thoreau e o próprio Emerson produziram livros importantes. Emerson abriu caminho para uma literatura americana realmente americana.
No século 20, houve uma disparada, com dois períodos constantes de atividade heroica, primeiro nas décadas de 1920 e 30 (Eliot, Hemingway, Dos Passos, Fitzgerald, Faulkner) e, depois, no final dos anos 40 e 50, quando um leque improvável de autores talentosos realizou coisas milagrosas em poesia, teatro e, particularmente, no romance. Em 1946, o editor Max Perkins fez uma previsão acurada sobre o futuro da ficção americana: "Não sei se a forma do romance vai mudar muito, mas o espírito e a expressão, sim".
Essa mudança é muitas vezes creditada à frase inicial de "As Aventuras de Augie March", de [Saul] Bellow: "Sou um americano", e a frase continua reverberando por mais 40 palavras. E, se esse romance ávido e desimpedido constituiu um verdadeiro afastamento ou avanço, a juventude da ficção americana após a Segunda Guerra certamente pode ser atribuída a romancistas como Bellow, escrevendo sobre a vida judia em Chicago e Nova York, e John Updike [1932-2009], dando um reflexo proustiano à pobre Pensilvânia.
Também é o caso de Ralph Ellison e Gore Vidal, que forneceram os primeiros retratos das experiências negra e homossexual, respectivamente. As mudanças de forma vieram ligeiramente depois, com Gaddis, Pynchon, Barthelme e outros.
Confuso e magnífico
"Uma Nova História Literária da América" faz poucas referências a Updike e nenhuma a Max Perkins, além de exibir vários erros e ênfases indevidas. Não há um esforço sistemático para tratar dos momentos em que a literatura se precipitou na vida americana.
Não há nada sobre a visita de Charles Dickens, em 1842, nada sobre a confusão causada entre escritores e acadêmicos negros pelo romance de William Styron "As Confissões de Nat Turner" ou na comunidade judia pelos contos de Philip Roth "Goodbye, Columbus". Mas, mesmo assim, o livro é magnífico, uma prova da descrição feita por Robert Hughes dos EUA como "uma obra coletiva da imaginação cuja feitura nunca termina".
O livro viaja de Colombo e Vespúcio ao Katrina e a Obama; discute o dramaturgo Eugene O'Neill por meio do naufrágio do Titanic, o terremoto de San Francisco, em 1906, por meio de Jack London, a Grande Depressão via "The American Jitters" [Os Sobressaltos Americanos], de Edmund Wilson. Enquanto tentativas anteriores tenderam a hesitar sobre a palavra "literatura", Marcus e Sollors, cuja introdução parece uma resenha em êxtase, provavelmente vão longe demais na direção oposta.
Seu "literário" denota "não apenas o que é escrito, mas o que é falado, o que é expresso, o que é inventado de qualquer forma". O livro retorna à ideia da América, no cinema e na música, na literatura ou no jornalismo. Um problema endêmico nessa abordagem é que, de maneira crucial, a história literária é internacional.
Como colocou Borges: "Poe produziu Baudelaire, que produziu os simbolistas...". Mas um escritor é moldado tanto pela leitura quanto pela experiência.
Como estudante de 20 anos em 1935, Bellow aproveitava os longos trajetos de trem do oeste de Chicago até a Universidade Northwestern para mergulhar na tradução de Tolstói por N.H. Dole, em 12 volumes. Em sua imponente autobiografia "Timebends" [Dobras do Tempo], Miller lembra que, em um momento semelhante, estava lendo Tolstói e Dostoiévski, "os dois maiores autores que conheço", e "começando a amar" as tragédias gregas "assim como um homem no fundo de um poço ama uma escada".
Da diligência de Bellow e do amor de Miller surgiram "Agarre a Vida" e "A Morte de um Caixeiro-Viajante" [respectivamente], embora, é claro, a história tenha feito sua parte. "Uma Nova História Literária da América" erra pelo lado das lutas e do contexto, mas isso não a prejudica demais. Mas, em um livro que não traz quase nada sobre Updike, teria sido recompensador receber com mais força a impressão de que a América foi, como disse Updike, uma das "alunas estrelas" da língua inglesa. Pois, em grande parte da melhor prosa americana -em Emerson, Melville, Bellow, Updike-, encontramos a sensação de gratidão pela vida e pela linguagem, expressa em construções difíceis ou exóticas e sintaxe forçada, flexível.
Profecias
A identidade do livro como uma obra de história com sabor literário é confirmada no capítulo final, uma série de obras de arte inspiradas na eleição de Barack Obama, em 2008, cujo tema é a vida pública americana, mais que a literatura americana. As profecias para esta última são incertas: "O romance conservador pode ser uma invenção do futuro"; "talvez os autores asiático-americanos tenham descoberto um novo destino"; "resta ver se os acontecimentos de Salem fornecerão mais uma vez um modelo para novos romances e peças de autores americanos".
Houve certas evidências nos últimos anos de que o épico americano, a obra que se propõe definir ou canalizar os EUA, ainda é um grande prêmio, embora basicamente em filmes -("Gangues de Nova York", "Os Infiltrados", "Sangue Negro")- e na televisão -("Os Sopranos", "A Escuta").
Os escritores americanos que atualmente inspiram mais entusiasmo como escritores -John Ashbery, Philip Roth, Bob Dylan- nasceram na época de Hemingway, isto é, ainda não há uma figura mais jovem dominante de modo similar. Mas a literatura norte-americana resiste em ser descentrada. Ela precisa de artistas de força centrípeta, consumidora -assim como a América, se for continuar sua jornada de perpétua autorrevelação, para continuar definindo e descobrindo a si mesma.
A íntegra deste texto saiu na "New Statesman".
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.
domingo, 28 de fevereiro de 2010
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