domingo, 28 de fevereiro de 2010

Enciclopédia e a Wikipedia

Folha de São Paulo 28 de fevereiro de 2010

A bisavó da Wikipédia
Obra coletiva, "Enciclopédia" de Diderot e D'Alembert inovou nas remissões, para driblar a censura, e condenou o colonialismo, diz Roger Chartier

PIERRE LE HIR

Na entrevista abaixo, publicada originalmente no jornal "Le Monde", o historiador da cultura Roger Chartier fala sobre a importância da "Enciclopédia" iluminista.
Dirigida por Denis Diderot (1713-84) e Jean d'Alembert (1717-83), ela reuniu cerca de 72 mil artigos de mais de 140 autores, tornando-se um marco não apenas pelo ideal de catalogar "as ciências, as artes e os ofícios", mas por sua forma colaborativa e sua influência na cultura revolucionária.
Professor no Collège de France e diretor de estudos na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (Paris), Chartier discute o caráter subversivo da "Enciclopédia", disponível on-line (em francês) no site da Universidade de Chicago (http://encyclopedie.uchicago.edu).




PERGUNTA - O sr. leu toda a "Enciclopédia"?
ROGER CHARTIER - Quem a leu na íntegra? Talvez duas pessoas: Diderot e o editor Le Breton, que estava na origem do projeto. A pergunta é interessante porque remete à própria estrutura da obra, ou seja, ao sistema pelo qual um artigo remetia a outro, utilizado por Diderot para as ideias mais audazes. Como o artigo "antropofagia" remetendo a "eucaristia". Quando estamos na presença dos 17 volumes de textos, completados por 11 volumes de ilustrações, cuja publicação foi feita gradativamente entre 1751 e 1772, a utilização das remissões se torna problemática.
Paradoxalmente, é a versão eletrônica da primeira edição da "Enciclopédia", colocada on-line pela Universidade de Chicago, que torna eficaz hoje um artifício concebido por Diderot como um dos mais filosóficos -ou seja, subversivos- possíveis.

PERGUNTA - De que maneira é subversivo esse sistema de remissões?
CHARTIER - A "Enciclopédia" foi publicada numa época de censura, de que foi vítima duas vezes. Em 1752, após a publicação dos dois primeiros volumes, por decisão do Conselho de Estado, que enxergou nela uma semente de erros, de irreligião e de corrupção dos costumes. Depois, em 1759, atendendo a pedido do Parlamento, que conduz à perseguição aos livros ditos "filosóficos" e os queima.
Em ambas as vezes, foi Malesherbes, diretor da Biblioteca [cargo responsável por zelar pela censura], que salvou o empreendimento. Dentro desse contexto, em que o privilégio da publicação enfrentava a ameaça constante de ser revogado, o jogo das remissões permitia contornar a censura.
Muitos artigos cujos títulos poderiam levar a imaginar que estivessem entre os mais causticantes, como o artigo "censura", seguem, na realidade, um tom muito moderado, de viés puramente histórico. Já outros, de aparência mais anódina, abrigam as intenções mais filosóficas e as críticas mais ásperas às autoridades.

PERGUNTA - A "Enciclopédia" de Diderot e D'Alembert não foi a primeira. Por que ela é tão singular?
CHARTIER - Inicialmente, seria uma simples tradução da "Cyclopaedia", de Ephraim Chambers, publicada na Inglaterra em 1728 [na qual já se encontrava a remissão a eucaristia no artigo sobre os antropófagos]. Pouco depois, porém, o projeto mudou radicalmente.
A "Enciclopédia" francesa tornou-se uma produção coletiva, de um grupo de pessoas de letras cuja ambição era dar voz à filosofia das luzes e cobrir todos os campos do saber. Apesar de a obra seguir uma ordem alfabética, o "Discurso Preliminar" de D'Alembert organizou esses conhecimentos de maneira sistemática em torno das três grandes faculdades do espírito humano: memória, razão e imaginação.
Assim, ocorrem aproximações inesperadas, por exemplo entre "religião" e "superstição", "teologia" e "adivinhação", como fazendo parte da mesma família temática. Essa abordagem também rompe com uma ordenação hierárquica em que a teologia vinha sempre em primeiro lugar.

PERGUNTA - Em que medida esse manifesto das luzes solapou os valores do Antigo Regime [que cairia em 1789, com a Revolução Francesa]?
CHARTIER - Além do artigo dedicado à "tolerância", muitos outros giram em torno da ideia de tolerância: não se deve perseguir os indivíduos em razão de suas crenças. Assim, condenou-se a repressão exercida contra os protestantes. Trata-se de uma ideia muito forte, em uma França na qual existiam uma só religião -o catolicismo- e uma só autoridade -a faculdade de teologia. Outro questionamento dos conceitos dominantes na época: a crítica à violência e à submissão impostas aos povos da África ou da América. Com relação ao campo político, a obra é mais prudente. Mas lemos nela que "o fim da soberania é a felicidade do povo", o que não é exatamente a linguagem do absolutismo.

PERGUNTA - Podemos enxergar nela os primórdios de 1789?
CHARTIER - Ela tornou possível uma ruptura -ou melhor, a tornou imaginável. Não há nada de revolucionário ou mesmo de pré-revolucionário na "Enciclopédia", que se mantém muito distante da virulência dos libelos, panfletos e outras sátiras sediciosas que aparecem na mesma época.
Mas ela ajudou a instilar, difundir, disseminar uma maneira de pensar que se distancia das autoridades -da autoridade política e, mais ainda, da religiosa. Foi preciso uma adesão ao processo revolucionário ou, ao menos, uma aceitação. Os leitores da "Enciclopédia" certamente não eram o povo: como mostrou o historiador americano Robert Darnton, eles pertenciam à aristocracia esclarecida, às profissões liberais, ao mundo dos negociantes -em suma, aos meios mais tradicionais do Antigo Regime.
Nesses círculos, a "Enciclopédia", juntamente com outros escritos, impôs ideias e representações coletivas que não provocaram 1789, mas, sim, o permitiram.

PERGUNTA - O sonho enciclopédico não teria se desfeito depois, com a fragmentação dos conhecimentos?
CHARTIER - A virada aconteceu no final do século 18, com a "Enciclopédia Metódica", do livreiro e editor Panckoucke, que refundou a "Enciclopédia" de Diderot e D'Alembert, adotando uma organização por campos do saber. A partir desse momento, perdeu-se a vivacidade de provocação da obra inicial: ela se ateve, em parte, a sua organização "racional", que atrapalhava as classificações antigas.
Isso acabou com o esforço magnífico de Diderot e D'Alembert para produzir um livro de livros, uma soma dos conhecimentos na qual o homem honesto pudesse circular sem enclausuramentos. A fragmentação dos conhecimentos é sem dúvida o preço a pagar por seu aprofundamento. A erudição sai ganhando, mas conduz à antinomia das culturas -de um lado, a científica; de outro, a literária-, presente em todos os debates atuais sobre os programas escolares.

PERGUNTA - A Wikipédia não seria fruto do projeto de Diderot e D'Alembert?
CHARTIER - Em certo sentido, sim, na medida em que se baseia nas contribuições múltiplas de uma espécie de associação de intelectuais invisíveis. Mas Diderot com certeza não teria aceito a simples justaposição de artigos, sem árvore de conhecimentos nem ordem arrazoada, que caracteriza a Wikipédia. É um empreendimento democrático, aberto e ao mesmo tempo extremamente vulnerável, muito exposto a erros e falsificações. Assim, fica visível a tensão entre o desejo de constituição de um saber coletivo e a profissionalização dos conhecimentos.

PERGUNTA - Olhando à distância, a "Enciclopédia" mudou o mundo?
CHARTIER - Pode um livro mudar a face do mundo? Os autores gostariam de pensar que sim. Eu prefiro dizer que um livro pode -em um lugar e um tempo dados e, depois, por sua trajetória por outros lugares e outros tempos- mudar as representações e a relação com os dogmas, com as autoridades. A "Enciclopédia" exerceu esse papel, além das fronteiras do reino da França. Mas o que faz com que um livro possa ter um impacto são as apropriações, múltiplas e às vezes contraditórias, de que é objeto. A "Enciclopédia" talvez tenha sido um dos germes da ruptura revolucionária, mas, ao mesmo tempo, foi rejeitada pelos revolucionários mais radicais.

Tradução de Clara Allain.

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