É importante que leiamos a opinião da Profª. Deisy Ventura sobre o voto do Ministro Marco Aurélio acerca do pedido de extradição de Manuel Juan Cordero Piacentini, militar uruguaio que esteve envolvido na Operação Condor (artigo retirado do blog do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos). É importante lembrar que a visão do Ministro Marco Aurélio contraria o atual entendimento do Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos, cujo landmark case sobre o assunto, qual seja, a decisão sobre Barrios Altos, fez com que países como o Peru, a Argentina e o Chile revogassem as suas leis de anistia. Para saber mais sobre o voto do Ministro Marco Aurélio, clique aqui.
Infâmia no STF: lobos em pele de “Cordeiro”?
Estou louco, mas por astúcia. As célebres palavras de Hamlet bem definem o voto do Ministro Marco Aurélio no julgamento do pedido de extradição do militar uruguaio Manuel Cordero Piacentini. A cortina de completa confusão jurídica erigida pelo voto serve para esconder uma revoltante mescla entre a indiferença absoluta à jurisprudência internacional, a grave ignorância do direito comum da humanidade e a simples falta de valentia. Para espanto geral, foi acompanhada por Carlos Alberto Menezes Direito, Cármen Lúcia Antunes Rocha e Eros Grau, até que os Ministros Lewandowski e Peluso puseram fim, ao menos temporariamente, ao vexame que nossa Corte Suprema oferece ao mundo.
Pouco discernimento basta para desfazer a barafunda jurídica promovida pelo Ministro. Argentina e Uruguai clamam pela extradição deste torturador contumaz, preso em Santana do Livramento, em fevereiro de 2007. Naqueles países tramitam contra o agente público (foto ao lado) diversas ações penais que almejam sua responsabilização, entre outros crimes, pelo desaparecimento forçado do cidadão argentino Valdemar Soba Fernandes, ocorrido em 1976. Em primeiro lugar, entendamos o que é a extradição: um Estado pede a outro Estado que lhe entregue uma pessoa, a fim de que responda a processo ou cumpra pena em seu território. Unânime na doutrina que não cabe ao Estado demandado explorar o mérito da acusação, reservado exclusivamente ao Estado que pede a extradição. Pois o Ministro Marco Aurélio se pôs a tergiversar sobre a natureza do crime de Cordero. Em macabro entretenimento, pondera que, passado todo este tempo, a vítima deve estar morta, senão já teria aparecido ! Recorre, então, ao direito ordinário, como se lei especial não existisse, para dizer que se trata de homicídio, e ademais prescrito. Mas a boa pergunta não é: há seqüestro ou homicídio? Na verdade, a questão é: há jurista ou títere?
Ora, o desaparecimento forçado é um tipo penal próprio do direito internacional: nem seqüestro, nem homicídio. É imprescritível, por ser crime permanente, até que o corpo seja encontrado e a verdade sobre a morte apurada. O Ministro Marco Aurélio tem o direito de pensar que “feridas poderão vir a ser abertas” e que a anistia no Brasil “deve ser entendida como uma virada de página”, como declarou em seu voto. Mas o que interessa, no julgamento destes pedidos de extradição, a sua lamentável opinião sobre o alcance da Lei de Anistia do Brasil? Ao STF não cabe, nem nos melhores sonhos dos conservadores, tolher a coragem que os países vizinhos ostentam de julgar os seus agentes públicos que cometeram crimes contra a humanidade durante o regime militar.
Ainda que, em delirante imperialismo, o Ministro pretendesse impor sua interpretação da Lei de Anistia aos juízes argentinos e uruguaios, ressoa uma objeção técnica maior: desaparecimento forçado, tortura e execução sumária não são crimes políticos, logo não estão cobertos por lei de anistia alguma. Estamos diante de algo similar ao que, no futebol, na impossibilidade de entender a marcação do juiz, chamamos de “perigo de gol”. O que Marco Aurélio julga não é o lance em si, a extradição, mas o absurdo temor de que ela seja entendida como precedente no Brasil.
Não é por ter vivido anos no Uruguai, que ganhou grande parte do meu coração cosmopolita. Não é pela honra de ter trabalhado, em incontáveis reuniões dos movimentos sociais do Mercosul, com a Lilian Celiberti (uruguaia presa em Porto Alegre e torturada diante do seu marido e dos seus filhos). Tampouco é por ter conhecido os comitês da Frente Ampla, em Montevidéu, quando eu tinha apenas 17 anos, pela mão de minha amiga Cecilia Caballero. É pelo imenso amor que tenho pelo Brasil, terra adorada, que espero, ardente, pela radical mudança dos votos dos demais Ministros, rumo à lucidez; e para que aqui não se termine por parafrasear de outro modo o Bardo: fragilidade, teu nome é Direito. (DV, SP, 14/09/08)
Infâmia no STF: lobos em pele de “Cordeiro”?
Estou louco, mas por astúcia. As célebres palavras de Hamlet bem definem o voto do Ministro Marco Aurélio no julgamento do pedido de extradição do militar uruguaio Manuel Cordero Piacentini. A cortina de completa confusão jurídica erigida pelo voto serve para esconder uma revoltante mescla entre a indiferença absoluta à jurisprudência internacional, a grave ignorância do direito comum da humanidade e a simples falta de valentia. Para espanto geral, foi acompanhada por Carlos Alberto Menezes Direito, Cármen Lúcia Antunes Rocha e Eros Grau, até que os Ministros Lewandowski e Peluso puseram fim, ao menos temporariamente, ao vexame que nossa Corte Suprema oferece ao mundo.
Pouco discernimento basta para desfazer a barafunda jurídica promovida pelo Ministro. Argentina e Uruguai clamam pela extradição deste torturador contumaz, preso em Santana do Livramento, em fevereiro de 2007. Naqueles países tramitam contra o agente público (foto ao lado) diversas ações penais que almejam sua responsabilização, entre outros crimes, pelo desaparecimento forçado do cidadão argentino Valdemar Soba Fernandes, ocorrido em 1976. Em primeiro lugar, entendamos o que é a extradição: um Estado pede a outro Estado que lhe entregue uma pessoa, a fim de que responda a processo ou cumpra pena em seu território. Unânime na doutrina que não cabe ao Estado demandado explorar o mérito da acusação, reservado exclusivamente ao Estado que pede a extradição. Pois o Ministro Marco Aurélio se pôs a tergiversar sobre a natureza do crime de Cordero. Em macabro entretenimento, pondera que, passado todo este tempo, a vítima deve estar morta, senão já teria aparecido ! Recorre, então, ao direito ordinário, como se lei especial não existisse, para dizer que se trata de homicídio, e ademais prescrito. Mas a boa pergunta não é: há seqüestro ou homicídio? Na verdade, a questão é: há jurista ou títere?
Ora, o desaparecimento forçado é um tipo penal próprio do direito internacional: nem seqüestro, nem homicídio. É imprescritível, por ser crime permanente, até que o corpo seja encontrado e a verdade sobre a morte apurada. O Ministro Marco Aurélio tem o direito de pensar que “feridas poderão vir a ser abertas” e que a anistia no Brasil “deve ser entendida como uma virada de página”, como declarou em seu voto. Mas o que interessa, no julgamento destes pedidos de extradição, a sua lamentável opinião sobre o alcance da Lei de Anistia do Brasil? Ao STF não cabe, nem nos melhores sonhos dos conservadores, tolher a coragem que os países vizinhos ostentam de julgar os seus agentes públicos que cometeram crimes contra a humanidade durante o regime militar.
Ainda que, em delirante imperialismo, o Ministro pretendesse impor sua interpretação da Lei de Anistia aos juízes argentinos e uruguaios, ressoa uma objeção técnica maior: desaparecimento forçado, tortura e execução sumária não são crimes políticos, logo não estão cobertos por lei de anistia alguma. Estamos diante de algo similar ao que, no futebol, na impossibilidade de entender a marcação do juiz, chamamos de “perigo de gol”. O que Marco Aurélio julga não é o lance em si, a extradição, mas o absurdo temor de que ela seja entendida como precedente no Brasil.
Não é por ter vivido anos no Uruguai, que ganhou grande parte do meu coração cosmopolita. Não é pela honra de ter trabalhado, em incontáveis reuniões dos movimentos sociais do Mercosul, com a Lilian Celiberti (uruguaia presa em Porto Alegre e torturada diante do seu marido e dos seus filhos). Tampouco é por ter conhecido os comitês da Frente Ampla, em Montevidéu, quando eu tinha apenas 17 anos, pela mão de minha amiga Cecilia Caballero. É pelo imenso amor que tenho pelo Brasil, terra adorada, que espero, ardente, pela radical mudança dos votos dos demais Ministros, rumo à lucidez; e para que aqui não se termine por parafrasear de outro modo o Bardo: fragilidade, teu nome é Direito. (DV, SP, 14/09/08)
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