O "Caderno Mais" da "Folha de São Paulo" de 28 de setembro de 2008 traz a matéria do sociológo alemão Robert Kurz sobre a crise econômica americana. Reflitamos!
Dinheiro queimado
Colapso aponta para o fim dos EUA como potência mundial e o enfraquecimento do dólar como moeda de troca - e isso pode ser ruim .
Crise -qual crise? Eis o que tonitruavam até pouco tempo atrás ideólogos liberais, de direita e também de esquerda, que acreditam na vida eterna do capitalismo. Saiu cada vez mais do foco da atenção o fato de essa espécie de sociedade não apenas ter uma história, mas ser mesmo a história de uma dinâmica cega.
Justamente nas duas últimas décadas, as pessoas queriam perceber apenas os "eventos" transitórios nas formas sociais a-históricas de uma ontologia capitalista. Isso vale para indivíduos comuns e para os pobres, assim como para as elites.
À semelhança do personagem Dorian Gray no romance homônimo do irlandês Oscar Wilde, parecia que no lugar do capitalismo só envelhecia a imagem do mundo social por ele criado, assumindo os traços da miséria, enquanto a lógica do dinheiro brilhava em falso frescor juvenil.
Agora, a "Segunda-Feira Negra" da maior quebra financeira da história [a do Lehman Brothers, 15/9] desvela num único golpe o verdadeiro rosto do Dorian Gray capitalista.
Ocorre que ninguém quer reconhecer essa natureza do novo surto de crise. A confiança atávica no capitalismo conduz apenas à busca de culpados.
"Práticas nada sérias" de especuladores e uma "política econômica anglo-saxã" são responsabilizadas pelo desastre. Tal explicação míope com ecos anti-semitas já foi mobilizada recorrentemente no passado.
Há mais de 20 anos uma onda de crises financeiras acompanha a globalização. Todas as medidas aparentemente bem-sucedidas para evitar uma "fusão nuclear" do sistema financeiro internacional só lograram reformular o problema, em vez de solucioná-lo.
Humanos obsoletos
Sua evolução atual implode todas as concepções até agora propostas. Não afetou apenas o setor dos créditos hipotecários nos EUA, mas provocou também uma reação em cadeia, cujo fim ainda é distante.
É impossível que as causas sejam a falha individual e as deficiências morais dos atores. Elas só podem residir no núcleo do sistema, referido à economia real.
O capitalismo é apenas a acumulação autotélica de dinheiro, cuja "substância" consiste no uso crescentemente ampliado da mão-de-obra humana. Ao mesmo tempo, porém, a concorrência conduz a um aumento da produtividade, que torna a mão-de-obra obsoleta, em escala também crescente.
Apesar de todas as crises, tal autocontradição parecia dissolver-se sempre em uma regeneração da absorção maciça da mão-de-obra por novas indústrias. O "milagre econômico" depois de 1945 transformou em credo essa capacidade do capitalismo, mas, desde os anos 1980, a "Terceira Revolução Industrial", microeletrônica, ensejou uma nova qualidade da racionalização, que desvaloriza a mão-de-obra humana em medida antes desconhecida.
Sem o surgimento de novas indústrias dotadas da potência de crescimento auto-sustentado, a "substância" real da valorização do capital se derrete.
O neoliberalismo foi tão-somente a tentativa de gerir com meios repressivos a crise social daí decorrente, por um lado, e de produzir um crescimento "sem substância" do "capital fictício" mediante o inchaço irrefreado do crédito, do endividamento e das bolhas financeiras nos mercados de ações e de imóveis, por outro lado.
Mas essa abertura mundial das comportas monetárias e, sobretudo, a avalanche de dólares produzida pelo Banco Central dos EUA já foram o pecado original do assim chamado monetarismo, que postulara como cerne da doutrina neoliberal a redução forçada da quantidade de dinheiro.
Na verdade, o jorro de dinheiro, criado pelo Estado a partir do nada, subsidiou uma inflação de ativos patrimoniais fictícios. O paradoxal "socialismo do dinheiro sem substância" experimenta agora seu "Waterloo", como antes já ocorreu com o capitalismo de Estado do Leste Europeu e a versão keynesiana do crescimento fomentado pelo Estado no Ocidente.
A estatização de fato do sistema bancário dos EUA e o plano do secretário do Tesouro dos EUA para conter a crise com recursos estatais só podem ser avaliados como atos de desespero. Da noite para o dia revelou-se o caráter de capitalismo estatal da suposta liberdade dos mercados.
Estágio final
Comentaristas irônicos já falam em "República Popular de Wall Street". Mas isso não resolve nada.
De certa forma, estamos diante do último estágio do capitalismo de Estado, que na melhor das hipóteses pode postergar o colapso dos balanços com mais emissões inflacionárias de moeda.
À diferença de épocas anteriores, inexiste espaço para novos programas conjunturais, que precisariam alimentar-se na mesma fonte.
Com isso também chegou o fim dos EUA enquanto potência mundial. Não é mais possível financiar guerras intervencionistas com recursos próprios. O dólar se torna obsoleto enquanto moeda mundial.
Ocorre que não podemos vislumbrar no horizonte nenhum substituto para os papéis da última potência mundial e do dólar. O ressentimento contra a "dominação anglo-saxã" não é uma crítica do capitalismo e não tem credibilidade, pois os fluxos unilaterais de exportações aos EUA sustentaram a conjuntura do déficit global.
Na Ásia, na Europa e alhures, as capacidades industriais não viveram de ganhos e salários reais, mas, direta ou indiretamente, do endividamento externo dos EUA.
Déficit global
No fundo, a economia neoliberal das bolhas financeiras foi uma espécie de "keynesianismo mundial", que agora se extingue como a anterior variante nacional do keynesianismo.
Todas as "novas potências" supostamente emergentes estão inseridas de modo economicamente dependente na circulação global do déficit.
Sua dinâmica muito admirada foi uma mera aparência, sem desenvolvimento interno próprio. Por isso não haverá em nenhum lugar o retorno a um capitalismo "sério" com empregos "reais".
Em vez disso, devemos esperar o efeito dominó de uma repercussão da crise financeira na conjuntura mundial, ao qual nenhuma região poderá subtrair-se.
O capitalismo de Estado e o capitalismo concorrencial "livre" evidenciam ser dois lados da mesma moeda. Abala-se não um "modelo" passível de ser substituído por outro, mas o modo vigente da produção e da vida enquanto fundamento comum do mercado mundial.
ROBERT KURZ é sociólogo alemão, autor de "O Colapso da Modernização" (Paz e Terra). Tradução de Peter Naumann.
Dinheiro queimado
Colapso aponta para o fim dos EUA como potência mundial e o enfraquecimento do dólar como moeda de troca - e isso pode ser ruim .
Crise -qual crise? Eis o que tonitruavam até pouco tempo atrás ideólogos liberais, de direita e também de esquerda, que acreditam na vida eterna do capitalismo. Saiu cada vez mais do foco da atenção o fato de essa espécie de sociedade não apenas ter uma história, mas ser mesmo a história de uma dinâmica cega.
Justamente nas duas últimas décadas, as pessoas queriam perceber apenas os "eventos" transitórios nas formas sociais a-históricas de uma ontologia capitalista. Isso vale para indivíduos comuns e para os pobres, assim como para as elites.
À semelhança do personagem Dorian Gray no romance homônimo do irlandês Oscar Wilde, parecia que no lugar do capitalismo só envelhecia a imagem do mundo social por ele criado, assumindo os traços da miséria, enquanto a lógica do dinheiro brilhava em falso frescor juvenil.
Agora, a "Segunda-Feira Negra" da maior quebra financeira da história [a do Lehman Brothers, 15/9] desvela num único golpe o verdadeiro rosto do Dorian Gray capitalista.
Ocorre que ninguém quer reconhecer essa natureza do novo surto de crise. A confiança atávica no capitalismo conduz apenas à busca de culpados.
"Práticas nada sérias" de especuladores e uma "política econômica anglo-saxã" são responsabilizadas pelo desastre. Tal explicação míope com ecos anti-semitas já foi mobilizada recorrentemente no passado.
Há mais de 20 anos uma onda de crises financeiras acompanha a globalização. Todas as medidas aparentemente bem-sucedidas para evitar uma "fusão nuclear" do sistema financeiro internacional só lograram reformular o problema, em vez de solucioná-lo.
Humanos obsoletos
Sua evolução atual implode todas as concepções até agora propostas. Não afetou apenas o setor dos créditos hipotecários nos EUA, mas provocou também uma reação em cadeia, cujo fim ainda é distante.
É impossível que as causas sejam a falha individual e as deficiências morais dos atores. Elas só podem residir no núcleo do sistema, referido à economia real.
O capitalismo é apenas a acumulação autotélica de dinheiro, cuja "substância" consiste no uso crescentemente ampliado da mão-de-obra humana. Ao mesmo tempo, porém, a concorrência conduz a um aumento da produtividade, que torna a mão-de-obra obsoleta, em escala também crescente.
Apesar de todas as crises, tal autocontradição parecia dissolver-se sempre em uma regeneração da absorção maciça da mão-de-obra por novas indústrias. O "milagre econômico" depois de 1945 transformou em credo essa capacidade do capitalismo, mas, desde os anos 1980, a "Terceira Revolução Industrial", microeletrônica, ensejou uma nova qualidade da racionalização, que desvaloriza a mão-de-obra humana em medida antes desconhecida.
Sem o surgimento de novas indústrias dotadas da potência de crescimento auto-sustentado, a "substância" real da valorização do capital se derrete.
O neoliberalismo foi tão-somente a tentativa de gerir com meios repressivos a crise social daí decorrente, por um lado, e de produzir um crescimento "sem substância" do "capital fictício" mediante o inchaço irrefreado do crédito, do endividamento e das bolhas financeiras nos mercados de ações e de imóveis, por outro lado.
Mas essa abertura mundial das comportas monetárias e, sobretudo, a avalanche de dólares produzida pelo Banco Central dos EUA já foram o pecado original do assim chamado monetarismo, que postulara como cerne da doutrina neoliberal a redução forçada da quantidade de dinheiro.
Na verdade, o jorro de dinheiro, criado pelo Estado a partir do nada, subsidiou uma inflação de ativos patrimoniais fictícios. O paradoxal "socialismo do dinheiro sem substância" experimenta agora seu "Waterloo", como antes já ocorreu com o capitalismo de Estado do Leste Europeu e a versão keynesiana do crescimento fomentado pelo Estado no Ocidente.
A estatização de fato do sistema bancário dos EUA e o plano do secretário do Tesouro dos EUA para conter a crise com recursos estatais só podem ser avaliados como atos de desespero. Da noite para o dia revelou-se o caráter de capitalismo estatal da suposta liberdade dos mercados.
Estágio final
Comentaristas irônicos já falam em "República Popular de Wall Street". Mas isso não resolve nada.
De certa forma, estamos diante do último estágio do capitalismo de Estado, que na melhor das hipóteses pode postergar o colapso dos balanços com mais emissões inflacionárias de moeda.
À diferença de épocas anteriores, inexiste espaço para novos programas conjunturais, que precisariam alimentar-se na mesma fonte.
Com isso também chegou o fim dos EUA enquanto potência mundial. Não é mais possível financiar guerras intervencionistas com recursos próprios. O dólar se torna obsoleto enquanto moeda mundial.
Ocorre que não podemos vislumbrar no horizonte nenhum substituto para os papéis da última potência mundial e do dólar. O ressentimento contra a "dominação anglo-saxã" não é uma crítica do capitalismo e não tem credibilidade, pois os fluxos unilaterais de exportações aos EUA sustentaram a conjuntura do déficit global.
Na Ásia, na Europa e alhures, as capacidades industriais não viveram de ganhos e salários reais, mas, direta ou indiretamente, do endividamento externo dos EUA.
Déficit global
No fundo, a economia neoliberal das bolhas financeiras foi uma espécie de "keynesianismo mundial", que agora se extingue como a anterior variante nacional do keynesianismo.
Todas as "novas potências" supostamente emergentes estão inseridas de modo economicamente dependente na circulação global do déficit.
Sua dinâmica muito admirada foi uma mera aparência, sem desenvolvimento interno próprio. Por isso não haverá em nenhum lugar o retorno a um capitalismo "sério" com empregos "reais".
Em vez disso, devemos esperar o efeito dominó de uma repercussão da crise financeira na conjuntura mundial, ao qual nenhuma região poderá subtrair-se.
O capitalismo de Estado e o capitalismo concorrencial "livre" evidenciam ser dois lados da mesma moeda. Abala-se não um "modelo" passível de ser substituído por outro, mas o modo vigente da produção e da vida enquanto fundamento comum do mercado mundial.
ROBERT KURZ é sociólogo alemão, autor de "O Colapso da Modernização" (Paz e Terra). Tradução de Peter Naumann.
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