quinta-feira, 28 de agosto de 2008

Raposa/Serra do Sol: voto do relator

Não foi desta vez que o caso da reserva indígena Raposa/Serra do Sol teve a sua deliberação final, em virtude do pedido de vista feito pelo ministro Carlos Menezes Direito. Entretanto, já podemos saber a opinião do ministro Carlos Ayres Britto, relator do processo, sobre a querela. Sua argumentação foi amplamente em favor da causa indígena, defendendo a manutenção da reserva em caráter contínuo. Abaixo, seguem os principais aspectos do voto, que está disponível em sua íntegra aqui.



Notícias STF

Quarta-feira, 27 de Agosto de 2008 Voto do relator: demarcação em ilhas asfixia cultura indígena

O ministro Carlos Ayres Britto considerou constitucional a demarcação da área indígena Raposa Serra do Sol de forma contínua, como determinado pela Portaria 534/05, do Ministério da Justiça, e homologada por decreto do presidente Lula. Para ele, a demarcação em forma de ilhas, ou ”queijo suíço”, como defendido pelo estado de Roraima e por produtores de arroz, seria asfixiar as culturas das comunidades e desrespeitar frontalmente a Constituição Federal.

O ministro disse ainda que, para ele, deve ser revogada imediatamente (após o fim do julgamento) a liminar concedida na Ação Cautelar 2009, em abril deste ano, que suspendeu operação Upakaton, da Polícia Federal, para retirada dos rizicultores da região.

A demarcação da Raposa Serra do Sol é um “ato meramente declaratório de uma situação jurídica preexistente”, disse o ministro. Isso porque, frisou Ayres Britto em seu voto, a Constituição determinou a data de sua promulgação como sendo o marco temporal para definir as posses imemoriais. É como se em outubro de 88, explicou, se tirasse uma radiografia da situação indígena em todo o Brasil.

Assim, como a área da Raposa Serra do Sol é ocupada há mais de 150 anos pelas etnias Ingarikó, Makuxi, Taurepang e Wapichana, elas têm direito à posse da área, conforme determina a Carta Magna em seu artigo 231. Os rizicultores só passaram a tomar posse, de forma ilegítima, a partir do ano de 1992, lembrou Ayres Britto. E segundo provas constantes dos autos, foi por meio de esbulhos que no decorrer dos anos fez suas extensões se multiplicarem.

O ministro fez menção direta à fazenda Guanabara, que teve ocupação autorizada pelo Incra com base em procedimentos ainda não concluídos, e sem consultar a Funai. Por isso, deve ser considerada inválida essa ocupação, mesmo que tenha havido um processo judicial envolvendo a fazenda, com trânsito em julgado no Tribunal Regional Federal da 1ª Região, disse o ministro.

Reconhecimento constitucional

A Constituição Federal não concede aos índios o direito sobre as terras, disse o relator. A Constituição faz mais que isso. Em seu artigo 231, a Lei Republicana “reconheceu” os direitos originários dos aborígenes sobre as terras que ocupam.

Esse reconhecimento, ponderou Ayres Britto, prepondera sobre escrituras públicas ou outros títulos que supostamente garantiriam a posse aos fazendeiros. Para o ministro, esses documentos são nulos.

E é a própria Constituição quem diz como deve ser definida a demarcação, continuou o ministro. Está no mesmo artigo, em seu parágrafo 1º, que a área deve permitir aos índios habitação, bem-estar, atividade produtiva, e reprodução física e cultural das etnias.

Para o ministro, também não se pode falar em subtração do território estadual. Nesse sentido, ele lembrou que, juntos, os estados do Espírito Santo, Alagoas e Rio de Janeiro reúnem uma população de mais de 21 milhões de brasileiros em uma área pouco superior a 121 mil quilômetros quadrados. Essa área é pouco menor do que a área que cabe ao estado de Roraima, descontadas todas as áreas indígenas demarcadas. E isso para uma população de cerca de 400 mil habitantes. “Tudo em Roraima é desmesurado, é gigantesco”, disse Ayres Britto.

Soberania Nacional

Sobre a questão da soberania nacional, Britto lembrou que as comunidades indígenas acabam ocupando mais densamente as faixas de fronteira exatamente porque são empurradas para lá, forçadas, esmagadas pela intolerância dos não-índios. Normalmente, disse Ayres Britto, os entes federados e fazendeiros locais se conjugam para discriminar os indígenas, e acabam empurrando os índios para essas regiões mais inóspitas do país. Mas não existe proibição à atuação da Polícia Federal e do Exército nessa área. O ministro deixou claro, ainda, que as comunidades indígenas acabam ajudando, e muito, na defesa da soberania nacional.

Na verdade, o ministro disse entender que as autoridades devem se conscientizar de seu poder de alertar as comunidades indígenas dos riscos representados por algumas ONGs estrangeiras, e reforçar nos índios o sentimento de brasilidade que nos une.

Os indígenas, como conhecedores da região, sabem opor-se a eventuais tentativas de invasão estrangeira, disse o ministro. O tráfico de drogas, o contrabando de armas não é culpa dos índios. Ninguém proíbe Exército e Polícia Federal de atuarem na área. “Estado e comunidades indígenas fazem a mais patriótica parceria”, arrematou.

Portaria

Ayres Britto defendeu a demarcação contínua, como definida na Portaria 534, do MJ, como única forma de garantir a sobrevivência das etnias indígenas. No caso da Raposa Serra do Sol, o ministro explicou que existem realmente várias etnias, mas que suas áreas são “lindeiras”, ou vizinhas. E que esses grupos estão acostumados a uma convivência pacífica na região, há décadas, além de compartilharem uma mesma língua.

Ao analisar a portaria que definiu a área, o ministro argumentou que não encontrou nenhuma ilegalidade. Tanto o estado de Roraima quanto os demais atores puderam exercer o direito à ampla defesa. Quanto à suposta parcialidade do advogado que assinou parecer favorável à demarcação, Britto salientou que o parecer é uma peça meramente opinativa. Sobre a alegação de que dois motoristas teriam sido citados como técnicos agrícolas e atuado nos estudos para a demarcação, o ministro revelou que o próprio laudo antropológico reparou o erro.

Argumentos

O Brasil se encontra na vanguarda mundial do cuidado jurídico com os indígenas. Nenhum documento estrangeiro supera a Constituição Federal brasileira em modernidade e humanismo, com relação à questão indígena.

Ayres Britto iniciou seu voto na Petição (PET) 3388 lembrando de antecedentes da Corte em questões indígenas. De acordo com o ministro, o tema é motivo de divergência entre antropólogos, militares, políticos, cientistas, e diversas outras áreas do saber. Porém, frisou que é pacífico o entendimento do STF de que a disputa pelas riquezas das terras dos índios é sempre o núcleo fundamental da questão indígena no Brasil.

O ministro, contudo, disse discordar da tese de que exista um antagonismo entre a causa indígena e o desenvolvimento, defendido principalmente por líderes políticos locais e fazendeiros e grupos econômicos com interesses particulares.

O que falta ao Brasil é aprender a tirar proveito da interação entre índios e não-índios, para permitir um desenvolvimento mais equilibrado, sustentável, com vantagens para os dois lados, defendeu o ministro.

O relator disse que é preciso fazer uma leitura sistêmica e global da Lei Republicana, e os nove preceitos que tratam da causa indígena. Mas deve ser dado destaque ao parágrafo 4º do artigo 231, que afirma que “as terras de que trata este artigo [indígenas] são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis”.

Brasileiros

Todos os grupos humanos que existem no país formam uma única realidade cultural brasileira, lembrou o ministro, principalmente os europeus, os afro-descendentes e os índios. Portanto, como brasileiros, não se pode falar em nação ou pátria indígena. Nenhuma comunidade indígena pode ir a cortes internacionais como nação ou povo independente, criticou o ministro, em referência à possibilidade de grupos recorrerem a instâncias internacionais, caso o STF decida de forma contrária a seus interesses. Britto disse estranhar o fato de certas lideranças aderirem à Declaração Internacional dos Direitos dos Povos Indígenas. “Nosso texto constitucional já os protege na medida certa”, afirmou.

Outro ponto que o ministro fez questão de ressaltar é o fato de que as terras indígenas são bens da União, e se constituem em um patrimônio que não é compartilhado com nenhum outro ente jurídico. Mas que, nem por isso, os índios deixam de contar com um vínculo jurídico com os estados, e são beneficiados com saúde, educação, segurança pública, profissionalização. A terra indígena é uma categoria jurídica, mas não um ente federado. Toda a atividade em área indígena deve ser feita em comum acordo com a União.

Fraternal

Em seu texto, a Constituição Federal brasileira permite que se chegue a um novo tipo de igualdade civil e moral, das minorias. Uma nova era, que direciona à inclusão social, para alcançar a integração comunitária de todo o povo brasileiro, índios, brancos e afro-descendentes. “É a fraternidade como princípio político”, pontuou Ayres Britto.


Nenhum comentário: