Pesquisador do mundo do trabalho e de práticas sindicais, o professor titular de sociologia do trabalho na Unicamp, Ricardo Antunes, compara o telemarketing aos bancários dos anos 60 e 70, ou seja, cargos ocupados em sua maior parte por estudantes universitários, que têm a perspectiva de sair do setor. A ação sindical, neste ambiente, "é difícil", mas, segundo Antunes, deve aproveitar as "condições adversas da função, isto é, a penúria, a exploração, a intensidade e pressão", que "empurram o trabalhador para outro emprego ou para se organizar".
Para Antunes, os sindicatos devem compreender melhor a "nova morfologia do trabalho", que, diferentemente de categorias tradicionais, como metalúrgicos e bancários, trata de terceirizados, jovens e mulheres.
A seguir, os principais trechos da entrevista:
Valor: Qual é a relevância do setor de telemarketing?
Ricardo Antunes: O telemarketing hoje tem mais ou menos a mesma característica que os bancários tinham na década de 1960 e início dos anos 70. Era o primeiro emprego, ocupado em sua maior parte por estudantes que, tão logo formados, saíam dos bancos para trabalhar em economia, advocacia, jornalismo. Claro que as diferenças no mercado de trabalho dos anos 60 para hoje, começo de 2010, é brutal. O país é muito diferente. O telemarketing é o reflexo da classe trabalhadora "invisível" em tempos de retração e desemprego, como tivemos nos anos 90, que vai ocupar postos de trabalho onde existe demanda. Há uma profunda mudança de perfil no mundo do trabalho, que poucos perceberam ou estão percebendo. São Bernardo do Campo chegou a ter 240 mil operários na cadeia automotiva, entre os anos 70 e 80. Hoje, não chega a 90 mil. Os bancários chegaram a bater na casa dos 850 mil, mas hoje não alcançam 400 mil. Ao contrário disso tudo, os call centers cresceram e já empregam mais que estes dois setores tradicionais. Nos anos 90, com a privatização da Telebrás, temos a explosão desse processo.
Valor: Mas já não havia grande contingente de trabalhadores em empresas de telefonia antes do telemarketing e call center?
Antunes: Sim, mas os operadores de telemarketing não têm nada a ver com o antigo trabalhador de telefonia, que era um sujeito especializado, sindicalizado e, por ser funcionário de empresas públicas, tinha certa estabilidade de emprego, o que permitia um nível de desenvolvimento e aprimoramento individual e coletivo que o telemarketing não permite. O telemarketing é o oposto de tudo isso. O trabalhador não é especializado e normalmente divide seu tempo com universidade ou mesmo com outro emprego. Trabalham seis horas ao dia num ritmo extenuante, onde a voz é o instrumento de trabalho. Com esse ritmo e um supervisor intervindo a todo momento, é a categoria que mais remete ao passado, sendo herdeira do taylorismo e do fordismo.
Valor: Qual é o perfil deste trabalhador?
Antunes: É uma categoria intensamente explorada, fortemente individualizada, muito jovem, e que está num emprego temporário, onde entrou com um sonho que logo é transformado. Existe uma espécie de mito, entre os jovens que trabalham como operadores, de que o trabalho, normalmente o primeiro emprego, é um sonho que permitirá dar o ponto de partida. Seis meses depois, o sonho é sair da empresa. E o jovem só não sai porque não tem condições de encontrar outro trabalho, muitas vezes porque não é especializado. É um trabalho extremamente individualizado, em que os funcionários ficam separados por baias, o diálogo é restrito, há pouco tempo livre e, quando há, o espaço de socialização é pequeno. Trata-se de um setor novo, sem tradição sindical. E há, por parte das empresas, uma campanha muito intensa, explícita ou não, de manter-se distante dos sindicatos.
Valor: Ainda é possível construir sindicatos fortes hoje?
Antunes: De modo geral, a atuação sindical está muito fragilizada. Da década de 1990 para cá, houve um processo muito forte de descaracterização dos sindicatos como órgãos de representação coletiva. Vários sindicatos tradicionais foram desmontados no mundo inteiro, devido a este movimento coordenado de individualização das relações. Além disso, há a tragédia do sindicalismo pelego, aquele atrelado ao Estado, que tem efeito devastador sobre os sindicatos mais sérios. Podemos ilustrar esse fenômeno do telemarketing por meio de outra categoria "nova": os motoboys. Trata-se de uma área dos serviços que também se expandiu muito nas últimas duas décadas, que igualmente sofre preconceito social e com uma jornada de trabalho acachapante. Os problemas dos motoboys acabam sendo, principalmente nas grandes cidades, mais visíveis que os de telemarketing, porque as motos estão nas ruas. Mas as dificuldades são as mesmas, quer dizer, descobrir como agir em áreas novas e individualistas.
Valor: Como fica a atuação sindical neste ambiente?
Antunes: É difícil sindicalizar trabalhadores nessas circunstâncias, mas não impossível. É possível, por exemplo, constituir núcleos mais conscientes no local de trabalho. Muitos operadores de telemarketing são estudantes universitários, têm certa propensão ao pensamento crítico. A individualização e a necessidade de ter emprego empurram o trabalhador para um universo ideológico mais próximo da empresa, que aproveita, é claro. As condições adversas de trabalho - a penúria, a exploração, a intensidade e pressão- empurram, num prazo mais longo, o trabalhador para outro emprego ou para se organizar. É aí que deve entrar o sindicato. Nenhuma categoria nasceu com organização sindical forte, isto é algo que é moldado a partir de ações cotidianas dos trabalhadores.
Valor: O sr. vê isto ocorrendo?
Antunes: Não, mas este é um processo lento, molecular. Isto ocorrerá com um sindicalismo mais ousado, mais claramente representativo da base dos trabalhadores, algo que também é muito difícil, porque hoje o ambiente é brutalmente desfavorável aos trabalhadores sindicalizados, se compararmos com o que existia nos anos 80. Há muita informalidade, muito trabalho terceirizado. É um terreno onde os sindicatos, todos eles, não têm conseguido fazer avanços. Os sindicatos não têm conseguido representar esta nova morfologia do trabalho, que tem classe trabalhadora mais heterogênea, com maior participação da mulher - e o sindicato brasileiro é herdeiro de tradição machista. Há muita dificuldade em representar corretamente os terceirizados, os jovens, mulheres. Uma mudança neste equilíbrio de forças deve ocorrer agora, nesta década de 2010. (JV)
quarta-feira, 6 de janeiro de 2010
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