sexta-feira, 16 de maio de 2008

Texto: A Ordem Mundial em Estado de Exceção

Venho neste blog postar um texto enviado pelo Prof. Ribas, cujo título é "A Ordem Mundial em Estado de Exceção", de autoria de Giorgio Agamben. Esse artigo nos faz refletir sobre o pensamento de que o Regime de Exceção no mundo ocidental haveria terminado com o fim da 2ª Guerra Mundial. Até que ponto práticas comuns de um Estado de Exceção não estariam se transformando em ações normais tanto nos Estados Unidos quanto em países da Europa? O texto abaixo serve como ponto de partida para nos questionarmos acerca disso.

A Ordem Mundial em Estado de Exceção *

Giorgio Agamben

No ano de 1941, Walter Benjamin, discorrendo sobre o sentido da História, defendia, em uma de suas teses, que “o Regime de Exceção, em que vivemos, tornou-se regra”. Visto por um ângulo prático, esse diagnóstico certamente é verdadeiro. Porque, não só não foi abolido o regime de exceção, instituído/decretado por Hitler em 28 de fevereiro de 1933, na Alemanha, como também, na época de crise de guerra, quase todos os Estados europeus lançaram mão do regime de exceção, entregando o poder militar em mãos de civis, limitando consideravelmente a liberdade do povo. A constatação de Benjamin tem um significado muito mais abrangente, caracterizado-se como uma profecia, que nos atinge. Pode-se afirmar que a criação proposital do Regime de Exceção (se bem que nem sempre é declarado como tal), entrementes tornou-se uma prática banal dos Estados atuais, mesmo daqueles que se declaram como democráticos. Na política atual, o modelo predominante da forma de governar é do Regime de Exceção, apesar do inevitável desenvolver daquilo que, eficazmente, denomina-se de “revolta mundial das massas.” Essa passagem das medidas provisórias e de exceção para uma técnica normal de governar, está transformando radicalmente, e debaixo dos nossos olhos, o sentido e o caráter do Estado democrático. É só observar a política atual dos Estados Unidos. Ela é uma prova concreta da transgressão dos direitos nacionais e internacionais. Para entender bem o efeito desse fenômeno, é bom não esquecer que a transgressão dos direitos segue o modelo que rege toda a política dos Estados Unidos, após o 11 de setembro de 2001. No entender dos americanos, o Regime de Exceção reside na discussão dialética entre os atos do Presidente e os do Congresso, em caso de necessidade ou de guerra. O Presidente Bush, que venceu as eleições numa legitimidade suspeita, e que, após o 11 de setembro, apregoou constantemente que é o “Comandante em Chefe das Forças Armadas”, de repente apareceu como autoridade máxima do Estado de Exceção. E, como tal, no dia 13 de novembro de 2001, decretou uma “ordem militar” de “detenção sem limites” dos cidadãos não americanos, suspeitos de terrorismo, autorizando seu julgamento por comissões militares (por favor, não confundir com “tribunal militar”, como está previsto nas cortes marciais). A novidade desse “arranjo militar” consiste no fato dele suspender radicalmente o estado de direito do indivíduo, tanto no âmbito dos direitos internacionais, como no das leis americanas, criando uma situação indefinida e sem classificação jurídica. Os talibãs presos no Afeganistão, ou qualquer cidadão suspeito de atividades antiamericanas, não são classificados como presos de guerra, nem de alguém que tenha transgredido a lei americana.

A Prisão de Guantánamo

Nem presos, nem condenados, simplesmente são “detidos”, sujeitos ao efetivo domínio, a uma custódia, não só em questão de tempo, mas também pelo seu caráter indefinido, já que foge ao controle judicial e da lei. A única comparação possível fazer é a da situação dos judeus nos acampamentos nacional/socialistas, nos quais perdiam sua identidade jurídica, mas podiam ficar com a de judeus. Na prisão de Guantánamo, a simples vida humana alcança o mais alto grau de incerteza e o Regime de Exceção alcança o grau absoluto. Os Estados Unidos não só usam o Estado de Exceção como instrumento da política interna, mas também, e antes de mais nada, para legitimar sua política internacional. Em vista disso, é possível afirmar que os Estados Unidos impõem a todo planeta o Estado de Exceção, que seria a resposta necessária dada para uma denominada guerra mundial das massas, travada entre as autoridades e o terrorismo.

Hannah Arendt e Carl Schmitt

O conceito de luta civil no mundo encontra-se em dois livros publicados no mesmo ano (1961): no livro Da Revolução, de Hannah Arendt, e no Theorie des Partisanen, de Carl Schmitt. Pela drástica redução da política mundial ao oposto Estado/Terrorismo, torna-se real e efetivo o que antes apenas parecia ser um conceito paradoxal de limites. Mediante o entrelaçamento estratégico dos dois paradigmas, do Estado de Exceção e da guerra civil, define-se a nova ordem mundial dos americanos, na qual fica difícil diferenciar guerra de paz, ou guerra internacional de guerra civil. É esse modelo que deve ser absolutamente rejeitado. Pois, nessa perspectiva, o Estado e o Terrorismo se transformam num único sistema, com duas faces, onde um elemento não só serve para justificar as atitudes do outro, como até fica difícil distinguir um do outro. Tudo isso é tão inquietante porque a história do século XX nos prova que não há democracia que resista a um prolongado período de exceção, nem a um permanente estado de guerra. Sob o prisma dos direitos públicos, não é possível compreender a ascensão de Hitler ao poder, sem conhecer a história do uso e abuso do Art. 48 da Constituição de Weimar, na qual, em caso de ameaça à ordem e à segurança pública, era dado poder ao Presidente do império (Kaiser) de invalidar a constituição e tomar as medidas necessárias. Notoriamente, a Alemanha deixou de ser uma república parlamentar de fato, nos três anos que se antecederam à tomada do poder por Hitler, enquanto Hindenburg exercia uma ditadura presidencial. Considerações semelhantes podem-se fazer em relação ao Estado de Israel, onde a queda dos direitos políticos e públicos é notória, em face dos Estados de Exceção, que os governantes, como parece, insistem em manter a qualquer preço. O que aconteceria se o maior poder militar do mundo embarcasse numa estratégia desse gênero, como de fato já acontece, e se transformasse num Estado antidemocrático aberto, no qual os direitos seriam suspensos e uma guerra de prevenção fosse travada continuamente, com a desculpa da defesa da segurança nacional e internacional e que não poderia ser julgado por ninguém? Que o Estado de Exceção, de fato, deixou de ser usado na legítima defesa em situação de perigo e necessidade e hoje funciona como uma prática de governo ao lado de outras, é provado pelo fato de os Estados Unidos dele lançarem mão, quando, na verdade, os motivos que regem sua política são bem outros.

Enfraquecimento da Europa

Um dos inconfessados motivos – nem por isso secundário – de declarar guerra ao Iraque é o objetivo de enfraquecer a Europa. Como o poder econômico da Europa está ameaçando a soberania dos Estados Unidos, eles querem provar que a Europa não tem expressão política.

Nos meses que antecederam à guerra, a diplomacia americana tentou aberta e sistematicamente destruir a União Européia e, infelizmente, conseguiu.

Estado de Exceção: um Paradigma

A transformação do Estado de Exceção em ação normal de um país, aliás, não é particularidade dos Estados Unidos. Na Itália, desde o final dos anos setenta, foram decretadas leis de exceção, em forma de portarias do governo, que instituíram restrições decisivas aos direitos de liberdade dos cidadãos. Esses decretos, que naquela época eram destinados ao estado de necessidade, por causa do terrorismo, valem até hoje. Assim, se alguém hospeda um amigo ou parente em sua casa sem avisar a polícia, é ameaçado com prisão. Na França, decretos expedidos por iniciativa do Ministério do Interior, são uma violação à cultura européia dos direitos e lembram, no que diz respeito à prisão e à condenação de menores de idade, às barbaridades semelhantes, praticadas nos Estados Unidos.

Também as classes dominantes da Europa parece que não têm nenhum outro paradigma político na cabeça a não ser o Estado de necessidade e de segurança. Em todos os níveis parece que pouco se importam em evitar o Estado de necessidade; pelo contrário, parece que o provocam, para então usá-lo em proveito próprio. Assim, um policial declarava, ingenuamente, após os acontecimentos de Gênova: “O governo não quer ordem e, sim, governar a desordem”. Essas ações do governo correm o perigo de despolitizar o povo, como, aliás, há tempo, já acontece nos Estados Unidos. Distanciar-se da política americana, para a Europa só pode ter um significado: desistir desse modelo e abrir novamente o caminho para o pensar e agir politicamente.

* Publicado em Frankfurter Allgemeine Zeitung, em 19 de abril de 2003 (traduzido pelos membros CEPAT- Curitiba). Publicado em português em IHU-Online, ano 3, no. 57, 28 de abril de 2003.


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