segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Morin e Bauman

Zygmunt Bauman olham para o futuro


Rumo ao abismo! Ensaio sobre o destino da humanidade, de Edgar Morin. Tradução Edgar de assis Carvalho, Mariza Perassi Bosco. Bertrand Brasil, 192 pgs. R$ 29.



44 cartas do mundo líquido moderno, Zygmunt Bauman. Tradução Vera Pereira. Zahar, 228 pgs. R$ 36.



Por Clarisse Fukelman*



Cartomantes à parte, o futuro é imprevisível e em muitos sentidos ameaçador. Quando se constata que memória e passado perdem espaço para o mito do presente e o descartável; que, sob o nome “rede social”, cultiva-se o contato – mas à distância; que a capacidade inventiva do progresso científico tem a contrapartida da manipulação e destruição, com armas de morte em massa; e que o mercado farmacêutico não promove remédios para curar, mas doenças para medicamentos: face a essa realidade perversa é premente identificar os eixos do desequilíbrio. Há quem veja com bons olhos a comunicação planetária – afinal, a informação circula e quem não se anima ao saber que a biblioteca britânica disponibilizará on line 250 mil livros ou que a internet facilita movimentos populares e organizações como a Anistia Internacional? Por outro lado, qual o impacto real na formação de novos leitores (e não só comunicadores telegráficos) e o que dizer do controle embutido nas tecnologias e da subserviência da vida conectada, que afeta inclusive trabalhadores?



Os temas são objeto de reflexão dos antenados Edgar Morin e Zygmun Bauman, cada um com seus postulados e recortes analíticos. Sociólogos transdisciplinares, demonstram capacidade, sensibilidade e disposição para compreender as novas subjetividades. Embora longe de um passadismo reativo a novos modos de (con)viver, evitam a euforia histérica com o consumo e as “máquinas inteligentes” que têm ensejado em alguns êxtase similar ao culto do belo pelo belo.



Rumo ao abismo?, de Morin, reúne textos sobre Iluminismo, globalização, conflito árabe-israelense etc. publicados na imprensa e em revistas culturais de 2002/07. Com sistema de pensamento construído ao longo de décadas, sonda o futuro: os antagonismos da modernidade atingiram seu apogeu, mas não perde a esperança. Afirma, com dados históricos, que o provável não é o inevitável e que a porta para o improvável está aberta. A sociedade civil planetária não emergiu e a globalização tecno-econômica, embora criando antídotos para a barbárie que ela mesma engendra, se faz acompanhar de crimes. A soberania das nações e a governança imperial norte-americana frustram a criação da sociedade-mundo cidadã. Ele admite muita coisa boa em nosso tempo: obras fortes, criativas; ondas transculturais e sentimentos comunitários transnacionais (cultura adolescente, ação feminista). Mas a mundialização do mercado econômico, sem regulação externa nem auto-regulação, cria ilhas de riqueza e zonas crescentes de pobreza.



O cenário pede não um programa, mas princípios: uma política de civilização que resgate o que foi desprezado pela bandeira de progresso e desenvolvimento (coisas não mensuráveis como vida, dor, alegria, amor) e que engaje uma educação humanista. A criatividade, inibida pela especialização, não pode ficar restrita ao artista e inventor. A educação, como para Paulo Freire, deve ter base ética, com o conhecimento do mundo no centro do aprendizado. Diz Morin: que se restaure a racionalidade – em diálogo com o real desconhecido - e se combata a racionalização.



Bauman, professor emérito na Universidade de Leeds, Inglaterra, é mais conhecido por associar o termo líquido à modernidade e depois ao amor, medo, tempo. Compara a fragilidade atual dos laços sociais a partículas que nunca mantêm a forma. O controle social, antes sólido, localizado, se valendo de instituições como prisões e escolas e sob a tutela do Estado, agora se dá pelo consumo fluido, que submete de forma virtual e anônima. O capital dá as fichas.



As 44 cartas do mundo líquido moderno foram escritas para a revista La Repubblica delle donne entre 2008/9. O título homenageia o poeta polonês Adam Mickiewicz, criador do personagem 44, símbolo de liberdade. Entenda-se também, na referência à carta, um alerta quanto à destruição das solidariedades tradicionais. À moda de Roland Barthes no seu Mitologias, ele analisa a sociedade através de filmes, anúncios e recorre a estatísticas. Numa crônica, Machado de Assis aposta nos algarismos pois dizem as coisas por seu nome, às vezes “nome feio, mas não havendo outro, não o escolhem.” Bauman usa os números como provocação: menos de 20% das crianças londrinas brinca ao ar livre e 26% são obcecadas com o peso corporal; o adolescente mediano gasta ao ano quase 3 mil reais com celulares, MP3 e downloads. Tudo para ser aceito pela galera. Ou: o vício de estudantes por Facebook, consultado logo ao acordar, indica um “modo consumidor” de estabelecer relações.



O círculo é grande. Todas as gerações são vítimas da perda da privacidade e do segredo. Retomando Simmel, um dos fundadores da sociologia, e afinado com o psicanalista Jurandir Freire, Bauman defende que o sigilo (não eterno, como andam querendo homens da vida pública) é uma relação social, que tem sido corroída pela engrenagem da economia global, sem raízes culturais, orientada pelo consumismo (não o consumo). Dinamita-se o sentimento de integração com “mais fortes laços inter-humanos”. Há uma bomba-relógio em rede: ecológica, demográfica, material, existencial e econômica (em desigualdade, Nova Iorque fica em nono lugar no mundo), levando à falta de expectativa de vida para despossuídos, refugo humano. A liberdade restringe-se a poder comprar. O desejo de consumo ronda dramaticamente o não consumidor.



Bauman acerta em quase tudo; às vezes, sente-se falta de maior distinção nos conceitos cultura de massa e popular. E Morin merecia tradução mais cuidadosa. Mas o mais relevante é a forma holística com que ambos pensam a modernidade. Seria limitador enquadrá-los numa das categorias usadas para particularizar o impacto social da globalização. Com conotação de excesso (pós, super ou hiper) ou deslocamento (reflexiva, tardia ou avançada ), há os que apontam a ruptura com a modernidade, pois instaurou-se uma vivência pautada pelo passageiro, e há os que defendem o oposto, já que a modernidade é mesmo uma permanente mudança. Morin e Bauman, com aspectos biográficos semelhantes (experiência do antissemitismo, militância, mudança de país) são humanistas que excedem esse tipo de classificação. Octogenários preocupados com o futuro, apostam na esperança. Através da solidariedade e da revolução pelo conhecimento. Pensamentos em nada twitáveis.



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