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A ciência contra o esquecimento
Crimes de guerra pedem técnica na investigação e um protocolo único de atendimento às vítimas
31 de julho de 2010 | 12h 34
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A sala do professor Eric Stover na Universidade da Califórnia, Berkeley, vive vazia. Isso se deve ao fato de que esse dedicado pesquisador não é mais um dos "enviados especiais ao arquivo", que o jornalista Ruy Castro gosta de ironizar. Durante boa parte do ano, Stover monta escritório em ambientes sinistros como covas coletivas na ex-Iugoslávia, áreas conflagradas em Ruanda e terrenos minados no Camboja. Com método de cientista e faro de detetive, coordena equipes que investigam crimes de guerra, amparam famílias das vítimas de atrocidades e levam seus algozes a tribunais internacionais como o de Haia. Pouco importa para Stover se tais violações ocorreram em guerras civis, conflitos entre nações ou regimes de exceção. Nem se estão em curso agora mesmo no Afeganistão, como sugerem os documentos que vazaram no WikiLeaks, ou durante a 2ª Guerra Mundial. "Há crimes que não podem ser esquecidos", diz. E, para quem se espanta com a disposição e o bom humor com que esse americano de 58 anos encara o trabalho pesado diariamente, contemporiza: "É um privilégio".
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Quem vê o professor Stover à frente do Human Rights Center, vinculado à faculdade de direito em Berkeley, ou desfilando seus conhecimentos em ciência forense e legislação internacional, não imagina que sua área de formação é literatura inglesa. "Sou daquela geração que cresceu na luta pelos direitos civis nos anos 70", explica, antes de contar que esteve no Brasil em pelo menos duas ocasiões, quando colaborou com a investigação sobre ossadas de militantes de esquerda mortos pela repressão, encontradas no cemitério paulista de Perus, e na identificação dos restos mortais do médico nazista Josef Mengele.
Na entrevista a seguir, concedida por telefone dos EUA, ele diz que a constituição de cortes internacionais para julgamentos de crimes de guerra foi um avanço, mas falta definir um protocolo internacional de atendimento às vítimas e proteção às testemunhas para que provas mais sólidas cheguem aos tribunais. Defende que crimes contra a humanidade não devem ser passíveis de prescrição. Afirma que as políticas da administração Bush na "guerra contra o terror" foram responsáveis por um verdadeiro retrocesso em valores consolidados desde a Convenção de Genebra. E sustenta que, mais importante do que impor penas duras aos que violaram os direitos humanos, é certificar-se de que sejam efetivamente levados aos tribunais.
O sr. é um intelectual que não se limita ao seu gabinete e se dedica a trabalhos de campo, verificando covas coletivas na ex-Iugoslávia ou em Ruanda, por exemplo. De que modo essas experiências afetaram a forma como encara os crimes de guerra?
As pessoas me perguntam o tempo todo como sou capaz de fazer esse trabalho. E respondo que é um privilégio. O convívio com famílias em perigo, organizações de ajuda humanitária e ativistas locais, é muito rico. Em situações como essas, nos damos conta do quão difíceis são os processos que envolvem desaparecimentos. Quando a verdade não aparece, as famílias ficam em uma espécie de limbo, entre a esperança e a negação. Por um lado ainda esperam que seus entes queridos retornem - na Argentina, dizia-se que están en las montañas -, por outro tentam esquecer o que passou. É importante dizer o que houve, resgatar corpos, oferecer funerais dignos para que os processos sejam superados. Não é por acaso que celebramos nascimentos, casamentos, funerais... De certa forma, significa restabelecer a ordem nessas sociedades.
Recentemente a revista alemã Der Spiegel contou a história de um servidor civil aposentado, de 90 anos de idade, condenado por trabalhar em um campo de concentração nazista onde 430 mil judeus foram mortos. Para alguns, não faz sentido punir um criminoso de guerra após tanto tempo. E para o sr.?
É uma questão difícil. Você pode olhar esse drama de forma humanitária pensando que se trata de um senhor de 90 anos, mas também da perspectiva humanitária das 430 mil pessoas que morreram por consequência de seus atos. Podemos e devemos relevar crimes de guerra de tal magnitude? Eu tomei uma decisão política anos atrás: a de ficar ao lado das vítimas e de suas famílias. Em minha opinião trata-se de crimes tão sérios que não importa a idade dos que os perpetraram, nem o tempo que passou.
Essa semana, um ex-membro do Khmer Vermelho no Camboja, Kaing Guek Eav, condenado a 35 anos de prisão por ter torturado e assassinado milhares de pessoas, teve sua pena reduzida em 16 anos. As cortes internacionais deveriam ser mais rigorosas?
Em 1961, Hannah Arendt disse, após ter presenciado um julgamento em Israel sobre os crimes do nazismo: "A lógica da lei jamais fará sentido diante da lógica das atrocidades". Quando olhamos para essas cortes, percebemos que não há engenharia jurídica que transforme sociedades. Uma frase que uso sempre é: Justiça é sempre uma coisa que está por acontecer. Entrevistei 21 civis cambojanos que participaram de julgamentos dos crimes do Khmer Vermelho para saber quais eram seus sentimentos logo após os veredictos da corte. Anos mais tarde, um colega voltou e fez as mesmas perguntas. Percebemos que, num primeiro momento, vários se sentem frustrados com as penas aplicadas depois dos riscos que correram ao denunciá-los. Dois ou três anos mais tarde, porém, expressam uma opinião mais favorável. Podem ainda não achar a sentença adequada, mas terminam por dizer: "Era meu dever moral testemunhar e tirei um fardo das costas".
Ness mesma semana um juiz britânico se recusou a extraditar Ejup Ganic, ex-líder Bósnio acusado de crimes de guerra pelas autoridades da Sérvia, por considerar que se tratava de perseguição política. Em um contexto de guerra, como saber qual dos lados está certo ou errado?
Como se diz, em uma guerra a primeira vítima é a verdade. Por isso, em um julgamento sobre esse tipo de crime é preciso olhar para os indivíduos ou grupos de indivíduos que os cometeram. É errado assumir a postura de que "os sérvios fizeram isso" ou "os militares argentinos tomaram parte naquilo". É preciso centrar foco primeiro nos responsáveis diretos pelos crimes e, então, chegar a seus superiores. Justiça de guerra se faz pondo de lado as razões políticas.
A que tipo de crime o Human Rights Center tem se dedicado nos últimos anos?
O centro existe há 16 anos, acompanhando os principais processos internacionais contra criminosos de guerra e formando estudantes interessados em atuar na área. Neste momento, acabamos de iniciar um projeto de accountability de crimes sexuais, para apurar estupros sistemáticos e abusos contra populações civis. Meu trabalho é organizar grupos que possam levar a cabo investigações consistentes que produzam provas para embasar os julgamentos.
E como isso pode ser feito na prática?
A experiência nos mostrou que, além da existência de cortes com força e vontade política, é preciso um sistema de proteção às testemunhas que funcione e também a garantia no acesso das vítimas aos sistemas de saúde locais. Temos trabalhado com o objetivo de definir um protocolo internacional para o atendimento dessas vítimas, com critérios científicos, para que os dados possam municiar os julgamentos depois. Um dos elementos-chave em um julgamento é que ele seja público, aberto, para que todos possam ver. Então, mesmo que se possa lançar mão de depoimentos anônimos ou de distorção de voz, há um limite. É preciso dar não apenas proteção às testemunhas, mas também um tratamento profissional e respeitoso, com garantia de follow up e acompanhamento quando retornarem da corte a seus países de origem.
Em seu livro My Neighbour, My Enemy: Justice and Community in the Aftermath of Mass Atrocity, o sr. discute as mudanças na forma como a guerra é percebida hoje. Como as políticas decorrentes da ‘guerra ao terror’ afetaram a justiça internacional?
As políticas da administração Bush representaram um verdadeiro retrocesso em relação aos valores da Convenção de Genebra (série de tratados que definem os direitos e os deveres de pessoas, combatentes ou não, em tempo de guerra, celebrados na Suíça de 1864 a 1949). É algo que a administração Obama reconhece, e se propôs a corrigir. Um colega da escola de direito em Berkeley entrevistou 62 ex-prisioneiros de Guantánamo sobre as condições a que foram submetidos. Aguardamos o resultado das eleições que levaram Obama à Casa Branca para evitar que a divulgação fosse considerada política. E nossa posição é de que o país não pode admitir a existência de prisões como a de Guantánamo ou de "áreas escuras" na CIA, autorizadas a torturar e matar. E é frustrante ver que nem Obama nem o Congresso americano atuaram satisfatoriamente nessa área.
Diante da paranoia do 11 de setembro, alguns profissionais da imprensa americana chegaram a corroborar a ideia de que técnicas de afogamento de presos não seriam tortura, mas ‘interrogatório severo’.
Às vezes há muita falta de informação, mesmo entre jornalistas. Quando trabalhei na ex-Iugoslávia oferecemos à imprensa local cursos sobre a Convenção de Genebra. Porque eles nunca falavam em "crimes de guerra", mas em "tragédias". Nos EUA, o medo da ameaça terrorista permitiu esse retrocesso. Mas é papel do jornalista fazer seu trabalho sem medo nem favor a ninguém.
O sr. acha que as evidências de assassinatos de civis no Afeganistão divulgadas pelo WikiLeaks chegarão às cortes internacionais? Há, como chegou a alertar o New York Times, interesses políticos de grupos militares insatisfeitos com Obama?
Se os documentos contêm evidências de crimes praticados pelas Forças Armadas americanas, não interessa se deviam ou não ter sido vazados nem se há interesses políticos por trás do ato - eles precisam ser apurados. Mesmo que um site como o WikiLeaks nunca revelasse esse tipo de história, é dever de qualquer comandante sério fiscalizar e combater esse tipo de prática em tempos de guerra. É por isso que a lei deve ser separada da política. O segredo de Estado não pode ser evocado para impedir o cumprimento da lei.
O que a comunidade internacional pode fazer para evitar os crimes de guerra?
O Brasil, por exemplo, é signatário do sistema criminal internacional. Todos os que participam dele deveriam contribuir não apenas financiando as cortes, como atuando na prática, por meio de suas embaixadas. Governos com representação diplomática em países onde se cometem atrocidades devem oferecer apoio aos perseguidos e denunciar os crimes nos fóruns internacionais. E fazê-lo sem medo ou receio de contrariar interesses comerciais. Independentemente de ideologias ou modos de governo com os quais se identifiquem.
domingo, 1 de agosto de 2010
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