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São Paulo, segunda-feira, 30 de agosto de 2010
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70% das faculdades públicas já adotam cotas ou bônus
Em 77% dos casos, decisão de adotar política partiu da própria instituição
Levantamento feito por pesquisadores do Rio mostra que estudantes de escolas públicas são os mais beneficiados
ANTÔNIO GOIS
DO RIO
Mesmo sem lei federal que as obrigue a isso, sete em cada dez universidades públicas no Brasil já adotam algum critério de ação afirmativa, seja ele cota ou bônus no vestibular para alunos de escolas públicas, negros, indígenas e outros grupos.
O levantamento foi feito pelo Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa, do Instituto de Estudos Sociais e Políticos, ligado à Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro).
De 98 universidades federais e estaduais, 70 adotam ação afirmativa (71%). Em 77% dos casos, a decisão de adotar cotas ou bônus surgiu da própria universidade.
Em apenas 16 instituições, a ação foi motivada por uma lei estadual. Não há lei federal -um projeto tramita no Congresso- que obrigue estabelecimentos da União a adotar cotas ou bônus.
O trabalho mostra também que são alunos de escolas públicas os mais beneficiados e que as cotas são mais utilizadas do que os bônus.
No caso das universidades que trabalham com cotas raciais, o critério utilizado para definir quem é negro ou indígena é quase sempre (85% dos casos) a autodeclaração.
Nos demais, há exigência de fotografias ou comissões de verificação, métodos polêmicos por barrar candidatos que se consideram negros.
Para João Feres Júnior, um dos pesquisadores, em quase todas as 40 universidades que beneficiam negros, há preocupação de evitar que as vagas sejam ocupadas pelos de maior renda -o candidato deve comprovar carência ou estudo em escola pública.
DEBATE
Para ele, o crescimento de instituições que, sem a obrigação legal, adotam ações afirmativas reflete o amadurecimento do debate sobre a desigualdade racial no país.
Ele diz que, quando coordenou o Diretório Central de Estudantes da Unicamp, em 1986, o tema não era discutido nem nas ciências sociais. "Não passava pelas nossas mentes discutir a pauta."
Mesmo quem se beneficiou do avanço nas políticas de ação afirmativa aponta a falta de debate. É o caso de Wellington Oliveira dos Santos, 25, que se formou em psicologia em 2009 na Universidade Federal do PR, onde ingressou na cota para negros.
Santos reclama que, na época de sua graduação, não houve debates em seu curso sobre os motivos que estão levando as universidade públicas à adoção das cotas.
Colaborou DIMITRI DO VALLE, de Curitiba
terça-feira, 31 de agosto de 2010
segunda-feira, 30 de agosto de 2010
Politica Externa no Gov. Dilma
Se eleita, Dilma deve manter diretrizes da política externa
Patriota, mais discreto que Amorim, é cotado para assumir Itamaraty
Marco Aurélio Garcia diz que orientação não mudaria, mas analistas apostam em mais peso da agenda econômica
CLAUDIA ANTUNES
DO RIO Folha de São Paulo 30 de agosto de 2010
Um eventual governo Dilma Rousseff deverá manter as linhas gerais da política externa atual, mas haverá um freio ao menos temporário em iniciativas ambiciosas como as capitaneadas pelo presidente Lula e o chanceler Celso Amorim.
Sem o rol de afinidades internacionais que Lula acumulou, Dilma tenderia, de acordo com analistas, a ter atuação mais contida.
"É uma mudança inevitável, que tem a ver com o fato de a política externa hoje ser muito dependente da figura do presidente", diz Sandra Rios, do Cindes (Centro de Estudos de Integração e Desenvolvimento).
Existe também a avaliação de que a ex-ministra da Casa Civil, pelas áreas em que atuou e pelo perfil dos ex-auxiliares em quem confia -como Luciano Coutinho, do BNDES, e Alessandro Teixeira, da Apex (agência de promoção de exportações)- poderá privilegiar o eixo econômico da inserção do Brasil.
Nesse caso, ficaria em segundo plano o viés mais político, de questionamento aberto da distribuição do poder nas instituições globais -caso da mediação sobre o projeto nuclear do Irã.
Dois fatores pesarão nessa definição: a manutenção do cenário interno positivo, base para qualquer passo externo menos convencional, e o perfil do novo ministro das Relações Exteriores.
Outra escolha chave será a chefia da assessoria internacional do Planalto, hoje ocupada por Marco Aurélio Garcia. Quadro do PT, ele teve mais protagonismo que seus antecessores, quase todos diplomatas de carreira.
Garcia, um dos responsáveis pelo programa de governo da candidata, diz que não conversou com ela sobre ficar no cargo. Afirma que Dilma "não é uma tecnocrata", ao discordar que possa se revelar pouco ativista. E aponta as circunstâncias imprevistas como determinantes da ênfase da diplomacia.
Lembra que Lula, logo depois de assumir em 2003, já articulava com França e Alemanha movimento contra a invasão do Iraque, que ocorreria em seguida.
No Itamaraty, o secretário-geral Antonio Patriota é considerado candidato natural a substituir Amorim, embora se cogite um "mandato-tampão" do atual chanceler.
Amorim diz que já cumpriu seu papel: "Agora, ninguém pode ser tão arrogante que diga: "Não, não quero dar colaboração". Se me pedirem um conselho, eu posso".
Outros embaixadores em alta são Carlos Alfredo Teixeira (ex-assessor de Dilma na Casa Civil), Roberto Jaguaribe (Londres), Clodoaldo Hugueney (Pequim), Luiz Alberto Figueiredo, negociador do clima, e Antônio Simões, subsecretário-geral para a América do Sul.
Patriota, 56, não é dado a frases bombásticas. É descrito como consolidador, não inovador. Tem menos experiência que Amorim, 68, que já havia sido chanceler de Itamar Franco, embaixador na ONU e chefe da delegação em Genebra, sede da Organização Mundial do Comércio.
O secretário-geral fez carreira nos mesmos órgãos multilaterais, mas sua primeira titularidade foi em Washington (2007-2009).
Ricardo Sennes, da consultoria Prospectiva, avalia que ele é menos "antidesenvolvidos, entre aspas", que o chefe: "Já abriu conversas com o Canadá e os EUA".
Em artigo na revista "Política Externa", Patriota reafirma três eixos da diplomacia -América do Sul e demais parceiros "tradicionais", como Europa e EUA; cooperação Sul-Sul, e democratização da governança global.
Mas se refere à atuação em "questões de paz e segurança" (Irã). Isso, diz, cria chance de diálogo para a "construção de consensos -ou, mais realisticamente, de maiorias- que legitimam um processo coletivo".
Patriota, mais discreto que Amorim, é cotado para assumir Itamaraty
Marco Aurélio Garcia diz que orientação não mudaria, mas analistas apostam em mais peso da agenda econômica
CLAUDIA ANTUNES
DO RIO Folha de São Paulo 30 de agosto de 2010
Um eventual governo Dilma Rousseff deverá manter as linhas gerais da política externa atual, mas haverá um freio ao menos temporário em iniciativas ambiciosas como as capitaneadas pelo presidente Lula e o chanceler Celso Amorim.
Sem o rol de afinidades internacionais que Lula acumulou, Dilma tenderia, de acordo com analistas, a ter atuação mais contida.
"É uma mudança inevitável, que tem a ver com o fato de a política externa hoje ser muito dependente da figura do presidente", diz Sandra Rios, do Cindes (Centro de Estudos de Integração e Desenvolvimento).
Existe também a avaliação de que a ex-ministra da Casa Civil, pelas áreas em que atuou e pelo perfil dos ex-auxiliares em quem confia -como Luciano Coutinho, do BNDES, e Alessandro Teixeira, da Apex (agência de promoção de exportações)- poderá privilegiar o eixo econômico da inserção do Brasil.
Nesse caso, ficaria em segundo plano o viés mais político, de questionamento aberto da distribuição do poder nas instituições globais -caso da mediação sobre o projeto nuclear do Irã.
Dois fatores pesarão nessa definição: a manutenção do cenário interno positivo, base para qualquer passo externo menos convencional, e o perfil do novo ministro das Relações Exteriores.
Outra escolha chave será a chefia da assessoria internacional do Planalto, hoje ocupada por Marco Aurélio Garcia. Quadro do PT, ele teve mais protagonismo que seus antecessores, quase todos diplomatas de carreira.
Garcia, um dos responsáveis pelo programa de governo da candidata, diz que não conversou com ela sobre ficar no cargo. Afirma que Dilma "não é uma tecnocrata", ao discordar que possa se revelar pouco ativista. E aponta as circunstâncias imprevistas como determinantes da ênfase da diplomacia.
Lembra que Lula, logo depois de assumir em 2003, já articulava com França e Alemanha movimento contra a invasão do Iraque, que ocorreria em seguida.
No Itamaraty, o secretário-geral Antonio Patriota é considerado candidato natural a substituir Amorim, embora se cogite um "mandato-tampão" do atual chanceler.
Amorim diz que já cumpriu seu papel: "Agora, ninguém pode ser tão arrogante que diga: "Não, não quero dar colaboração". Se me pedirem um conselho, eu posso".
Outros embaixadores em alta são Carlos Alfredo Teixeira (ex-assessor de Dilma na Casa Civil), Roberto Jaguaribe (Londres), Clodoaldo Hugueney (Pequim), Luiz Alberto Figueiredo, negociador do clima, e Antônio Simões, subsecretário-geral para a América do Sul.
Patriota, 56, não é dado a frases bombásticas. É descrito como consolidador, não inovador. Tem menos experiência que Amorim, 68, que já havia sido chanceler de Itamar Franco, embaixador na ONU e chefe da delegação em Genebra, sede da Organização Mundial do Comércio.
O secretário-geral fez carreira nos mesmos órgãos multilaterais, mas sua primeira titularidade foi em Washington (2007-2009).
Ricardo Sennes, da consultoria Prospectiva, avalia que ele é menos "antidesenvolvidos, entre aspas", que o chefe: "Já abriu conversas com o Canadá e os EUA".
Em artigo na revista "Política Externa", Patriota reafirma três eixos da diplomacia -América do Sul e demais parceiros "tradicionais", como Europa e EUA; cooperação Sul-Sul, e democratização da governança global.
Mas se refere à atuação em "questões de paz e segurança" (Irã). Isso, diz, cria chance de diálogo para a "construção de consensos -ou, mais realisticamente, de maiorias- que legitimam um processo coletivo".
domingo, 29 de agosto de 2010
II Forum de Grupos de Pesquisa em Direito Constitucional e Teoria do Direito do Estado do Rio de Janeiro
http://pesquisaconstitucional.wordpress.com/about
Este é o endereço para o acesso as fotos do II Forum de Grupos de
pesquisa em Direito Constitucional e Teoria do Direito do Estado do Rio
de Janeiro. Faltam incluir nas fotos os grupos de pesquisa da Unifoa e da
Uerj. Segue o documento conclusivo em anexo. E abaixo o documento conclusivo
DECLARAÇÃO FINAL DO II FÓRUM DOS GRUPOS DE PESQUISA DE DIREITO CONSTITUCIONAL E TEORIA DO DIREITO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
A realização do II Fórum, em 28 de agosto de 2010, realizado no “Campus Menezes Cortes” da Unesa na cidade do Rio de Janeiro, tendo como participantes grupos de pesquisa do Ibmec-rj, Puc-rio, Unifoa, Uerj, Uff, Ufrj, Ufsc e Unesa, considerando o fortalecimento da investigação científica nos cursos de Direito como fator imprescindível para sua qualidade acadêmica e profissional, mesmo diante das exigências utilitaristas impostas na atual conjuntura da Educação Superior no Brasil, propiciou:
1 ESTABELECER COMO DIAGNÓSTICO DOS GRUPOS DE PESQUISA PARTICIPANTES:
1.1 Reconhecimento de três formatos de grupos de pesquisa, identificados com os seguintes critérios de formação/reflexão: temático, fragmentado em distintas linhas de pesquisa e os voltados à análise de decisões judiciais;
1.2 As pesquisas se desenvolvem a partir de abordagens de natureza teórica, documental, qualitativa e quantitativa de dados, e ainda de observação participante;
1.3 Os grupos estão voltados a um corte cronológico mais recente, abdicando do aprendizado histórico;
1.4 Percebe-se a tensão entre o direito material e o formal, ainda que nas distintas variáveis temáticas de cada qual deles;
1.5 Identificação de um maior engajamento dos alunos da pós-graduação, dentro de uma perspectiva mais ativa e ampla de investigação, para além do foco específico da dissertação ou tese;
1.6 A necessidade de definir mais adequadamente as metodologias de envolvimento coletivo dos grupos de pesquisa;
1.7 A dificuldade de enfrentar estudo de material bibliográfico recente e a densidade da produção de informações.
2 ELENCAR PROPOSTAS E DESAFIOS
2.1 Estruturar em moldes de redes os grupos de pesquisa participantes;
2.2 Dar grau de permanência aos grupos de pesquisa em formatos de redes na obtenção de financiamentos;
2.3 Fortalecer o blog., de maneira a que ele possa ser o veículo permanente da produção e atividades dos Grupos, com a designação de representantes para alimentação;
2.4 Buscar maior integração com os Grupos Temáticos do CONPEDI, convertendo o Fórum num GT Permanente que se possa fazer presente de forma consistente no CONPEDI;
2.5 Viabilizar uma adequada política de publicações, procurando atender aos critérios Qualis da CAPES, com a necessidade de compatibilizar uma visibilidade institucional;
2.6 Organizar o III Fórum no 1º semestre de 2011 em um modelo privilegiando sessões temáticas.
Rio de Janeiro, 28 de agosto de 2010.
Grupo de Pesquisa “Risco e Direito” Puc-rio
Grupo de Pesquisa “Ativsimo Judicial” Ibmecrj
Grupo de Pesquisa “Justiça, Democracia e Constituição” Ufsc
Grupo de Pesquisa “Observatório de Justiça Brasileiro (OJB)” Ufrj
Grupo de Pesquisa “Núcleo de Estudos da História do Direito” Ibmecrj
Grupo de Pesquisa “Teoria do Estado e Globalização (GPTEG)”Ufrj
Grupo de Pesquisa “Relações Internacionais, Direito e Informação (GRIDI)”Uff
Grupo de Pesquisa “Novas Perspectivas em Jurisdição Constitucional – Diálogos Institucionais e Sociais Unesa
Grupo de Pesquisa “Efetivação dos Direitos Humanos” – Uerj
Grupo de Pesquisa “Direito Ambiental e Desenvolvimento Social” Unifoa
Este é o endereço para o acesso as fotos do II Forum de Grupos de
pesquisa em Direito Constitucional e Teoria do Direito do Estado do Rio
de Janeiro. Faltam incluir nas fotos os grupos de pesquisa da Unifoa e da
Uerj. Segue o documento conclusivo em anexo. E abaixo o documento conclusivo
DECLARAÇÃO FINAL DO II FÓRUM DOS GRUPOS DE PESQUISA DE DIREITO CONSTITUCIONAL E TEORIA DO DIREITO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
A realização do II Fórum, em 28 de agosto de 2010, realizado no “Campus Menezes Cortes” da Unesa na cidade do Rio de Janeiro, tendo como participantes grupos de pesquisa do Ibmec-rj, Puc-rio, Unifoa, Uerj, Uff, Ufrj, Ufsc e Unesa, considerando o fortalecimento da investigação científica nos cursos de Direito como fator imprescindível para sua qualidade acadêmica e profissional, mesmo diante das exigências utilitaristas impostas na atual conjuntura da Educação Superior no Brasil, propiciou:
1 ESTABELECER COMO DIAGNÓSTICO DOS GRUPOS DE PESQUISA PARTICIPANTES:
1.1 Reconhecimento de três formatos de grupos de pesquisa, identificados com os seguintes critérios de formação/reflexão: temático, fragmentado em distintas linhas de pesquisa e os voltados à análise de decisões judiciais;
1.2 As pesquisas se desenvolvem a partir de abordagens de natureza teórica, documental, qualitativa e quantitativa de dados, e ainda de observação participante;
1.3 Os grupos estão voltados a um corte cronológico mais recente, abdicando do aprendizado histórico;
1.4 Percebe-se a tensão entre o direito material e o formal, ainda que nas distintas variáveis temáticas de cada qual deles;
1.5 Identificação de um maior engajamento dos alunos da pós-graduação, dentro de uma perspectiva mais ativa e ampla de investigação, para além do foco específico da dissertação ou tese;
1.6 A necessidade de definir mais adequadamente as metodologias de envolvimento coletivo dos grupos de pesquisa;
1.7 A dificuldade de enfrentar estudo de material bibliográfico recente e a densidade da produção de informações.
2 ELENCAR PROPOSTAS E DESAFIOS
2.1 Estruturar em moldes de redes os grupos de pesquisa participantes;
2.2 Dar grau de permanência aos grupos de pesquisa em formatos de redes na obtenção de financiamentos;
2.3 Fortalecer o blog., de maneira a que ele possa ser o veículo permanente da produção e atividades dos Grupos, com a designação de representantes para alimentação;
2.4 Buscar maior integração com os Grupos Temáticos do CONPEDI, convertendo o Fórum num GT Permanente que se possa fazer presente de forma consistente no CONPEDI;
2.5 Viabilizar uma adequada política de publicações, procurando atender aos critérios Qualis da CAPES, com a necessidade de compatibilizar uma visibilidade institucional;
2.6 Organizar o III Fórum no 1º semestre de 2011 em um modelo privilegiando sessões temáticas.
Rio de Janeiro, 28 de agosto de 2010.
Grupo de Pesquisa “Risco e Direito” Puc-rio
Grupo de Pesquisa “Ativsimo Judicial” Ibmecrj
Grupo de Pesquisa “Justiça, Democracia e Constituição” Ufsc
Grupo de Pesquisa “Observatório de Justiça Brasileiro (OJB)” Ufrj
Grupo de Pesquisa “Núcleo de Estudos da História do Direito” Ibmecrj
Grupo de Pesquisa “Teoria do Estado e Globalização (GPTEG)”Ufrj
Grupo de Pesquisa “Relações Internacionais, Direito e Informação (GRIDI)”Uff
Grupo de Pesquisa “Novas Perspectivas em Jurisdição Constitucional – Diálogos Institucionais e Sociais Unesa
Grupo de Pesquisa “Efetivação dos Direitos Humanos” – Uerj
Grupo de Pesquisa “Direito Ambiental e Desenvolvimento Social” Unifoa
sexta-feira, 27 de agosto de 2010
O papel dos filósofos hoje
O papel dos filósofos hoje
Por Cristina Dantas, para o Valor, de São Paulo
27/08/2010
"Escola de Atenas", afresco de Raffaello de Sanzio, no Vaticano, pintado entre 1509 e 1510: Platão e Aristóteles aparecem no centro, entre filósofos de diversas épocas
Demócrito de Abdera divisou o indivisível: pensou o átomo. Pensou também a ética enquanto andava pelas ruas de Atenas, entre o sorriso e a gargalhada. Diógenes de Sinope, esfarrapado e sujo, empunhava sua lanterna sob o sol do meio-dia em busca de um homem de virtude. Anaxágoras das vestes vermelhas se dizia um deus. Não que na Antiguidade Clássica essas atitudes exóticas fossem comuns, mas, como conta a professora Olgária Matos, "os atenienses conviviam tranquilamente com as extravagâncias de seus filósofos".
São figuras do passado, que, por suas ideias e idiossincrasias, deixaram marcas de presença importante na história da filosofia. E os filósofos de agora? De que se ocupam? O que se espera deles? O mesmo que em qualquer época, de acordo com o filósofo e poeta Antonio Cicero. "A filosofia pretende tratar racionalmente das questões fundamentais que dizem respeito ao ser, ao conhecimento, à ética. Ao fazê-lo, questiona e submete à crítica as respostas tradicionais e convencionais. É assim ainda hoje."
Antonio Cícero: "A filosofia pretende tratar racionalmente das questões fundamentais que dizem respeito ao ser, ao conhecimento, à ética. Ao fazê-lo, questiona respostas tradicionais e convencionais"
Vêm à lembrança os olhos enviesados e o cachimbo pendendo eternamente da boca de Jean-Paul Sartre, ou Michel Foucault - ambos, personagens recentes de uma tradicional linhagem de filósofos que transitaram pela academia e pelas questões públicas com igual desenvoltura. É nossa herança. A universidade pública brasileira nasceu de um modelo francês, que nos legou a figura do intelectual que toma a palavra em público e pensa as questões do nosso tempo, como lembra Olgária. Ela aponta, porém, uma diferença. A tradição francesa teria no espaço público o lugar do "debate sem segundas intenções". Para Olgária, no Brasil, quando o intelectual sai do registro daquilo que a mídia e a opinião pública dele esperam, é desqualificado. Há mais variantes nessa equação, e uma delas está na pauta proposta aos intelectuais, especialmente aos filósofos.
"Há 25 anos vivemos uma democracia e a vivemos como se fosse sinônimo de corrupção", analisa outro respeitado mestre da filosofia política no Brasil, Renato Janine Ribeiro. A queixa é sincera e tem explicação justa. Em primeiro lugar, porque os escândalos que surgem na esfera do poder ocupam espaços demasiados, que deveriam ser dispensados a pesquisas relevantes - a falta de uma ágora adequada e receptiva acaba por confiná-las ao ambiente da academia. Em segundo lugar, porque nem sempre é convidado ao debate aquele que está mais aprofundado no tema proposto. Que fique claro: a discussão deve ser franqueada a todos, mas seriam desejáveis, para Janine Ribeiro, uma sintonia mais fina e um portfólio mais vasto de intelectuais a serem ouvidos. "Em que medida a atuação de alguém da área da filosofia tem a ver com o tema a ser tratado? Às vezes você dá sua opinião de cidadão."
Olgária Matos: "O conhecimento de conceitos, do registro em que a filosofia opera, exige iniciação, mas um outro plano, o da fruição, está disponível a todo o público", como nos cursos livres
Alguns anos atrás, Janine fez um levantamento entre os pesquisadores do CNPq - Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, ligado ao Ministério da Ciência e Tecnologia. A intenção era aferir, entre os bolsistas de primeiro nível, quantas citações haviam tido na grande imprensa, durante cerca de seis meses, os pesquisadores de filosofia, ciências políticas, sociologia e antropologia. E sempre para assuntos não específicos dessas áreas. Ao final, uma constatação surpreendente: os bolsistas de filosofia exibiam o mesmo número de citações das três ciências sociais somadas.
Por que essa abertura tão ampla aos filósofos? "É porque sabemos fazer resenha de livro", ironiza Vladimir Safatle. "Você vira uma espécie de comentador de rodapé da notícia do dia." Para exemplificar a tese, cita a ideia desenvolvida por Foucault: "O filósofo está se transformando em um jornalista transcendental", teria acusado o fundador de conceitos fundamentais da filosofia do século XX. Por trás da ironia, uma explicação plausível: a própria formação do filósofo, que transita por uma vasta gama de campos, da política à estética - e isso, apenas na graduação. Com seu repertório sólido e abrangente, é natural que o filósofo possa escrever, para o grande público, textos, como diz Safatle, "minimamente coerentes".
Janine Ribeiro: "Em que medida a atuação de alguém da área da filosofia tem a ver com o tema a ser tratado? Às vezes você dá sua opinião de cidadão"
Aceitando-se que sejam tantos os assuntos de interesse do filósofo, pode-se incorrer no equívoco de acreditar que a universidade não tem pauta própria. E "a imprensa, como é normal em qualquer sistema organizado da vida social, também tem sua pauta de interesses. A gente acaba se adaptando", diz Safatle, que aos 37 anos exibe no currículo dez livros editados - quatro como autor, seis como organizador.
Seu arsenal de críticas se volta em algumas ocasiões para a própria universidade. É o caso de episódio recente da vida política brasileira. A decisão do Superior Tribunal Federal de não rever a Lei de Anistia, com o fim de julgar agentes do Estado por crimes cometidos no país entre 1961 e 1979, transcorreu sob "uma ausência quase aterradora de debate na universidade", e deixou Safatle inconformado. "Do ponto de vista filosófico, a questão toca vários problemas: a memória social, o peso da história, qual o significado de elaborar o passado, como se relacionar com ele", analisa, listando alguns importantes filósofos que se ocuparam do tema, entre Theodor Adorno, Hannah Arendt e Walter Benjamin.
O episódio tem agravantes. "A universidade foi a que mais sofreu com a ditadura militar. Ela teria um interesse orgânico no assunto", diz Safatle. Com Edson Teles, ele organizou o livro "O que Resta da Ditadura", para trazer à tona o que ficou soterrado nos escombros de uma era vil da historia do país. As críticas, de maneira mais ampla, estendem-se aos colegas de sua geração. É possível que parte deles acredite que um pesquisador rigoroso deva viver integralmente dentro de sua especialidade, resvalando, se tanto, para suas adjacências. Essa prática, que foi importante na formação dos intelectuais brasileiros, pode hoje afastá-los da esfera pública. "Cabe a nós não perder aquilo que outras gerações construíram", alerta Safatle.
É um risco que se corre. E o reverso disso também. Se é grave a classe intelectual silenciar, ainda que eventualmente, ter filósofos frequentando o debate público - ou qualquer debate que se apresente - fez nascer um novo personagem, e justamente em nosso berço universitário, a França. Desde os anos 1970, a imprensa é um palco em que se exibe o grupo batizado de "nouveaux philosophes", tendo à frente Bernard-Henri Lévy, misto de filósofo, jornalista e diretor de teatro. Para Safatle, antiintelectuais que tomam textos sérios por rebuscados, enquanto produzem suas "platitudes".
As notícias não são boas: "Essa é uma tendência do mundo contemporâneo, a desvalorização de todos os valores, em que tudo se equivale", informa Olgária. "Não se tem mais a ordem das urgências. As pessoas não sabem mais diferenciar o que é significativo do que é insignificante."
Enquanto o planeta gira em velocidade de cruzeiro, cada vez mais pessoas procuram o estudo da filosofia, que pede pagamento em moeda rara: tempo. "Há um aspecto da filosofia que exige iniciação, o conhecimento de seus conceitos, do registro em que ela opera. Mas um outro plano, de fruição, está disponível a todo o público", diz Olgária, que vê com muito bons olhos o crescimento dos cursos livres, e nisso não está sozinha.
"Acho bom que seja oferecida a oportunidade de estudar textos clássicos de filosofia e de praticar o pensamento filosófico a pessoas que estudam ou estudaram matérias que nada têm a ver com filosofia", elogia Antonio Cicero.
E o que essas pessoas procuram? "Pensamento livre", diz Janine, deixando claro que, quando dá um desses cursos, costuma tratar de algum assunto específico, como a liberdade vista pelas lentes do cinema, por exemplo.
Mas é pelo primeiro aspecto da filosofia citado por Olgária, o que não prescinde de iniciação, que muitos se sentem atraídos. Às aulas ministradas por Safatle, na Universidade de São Paulo, acorrem alunos de outras disciplinas, gravitando em torno de um objetivo comum: aprender a ler. Pelas características próprias do departamento, eles consideram o estudo da filosofia, de certa forma, mais rigoroso. Enquanto os alunos de outras cadeiras chegam a ter nove ou dez disciplinas por semana, na filosofia eles têm duas ou três, o que permite aulas de quatro horas e tempo para a leitura. Além disso, os professores podem exigir maior rigor de suas alunos.
Há também o fato de que os textos clássicos que nos legaram os maiores pensadores da história estão no outro extremo das "platitudes" dos "nouveaux philosophes". São textos que oferecem resistência. Pedem que se volte a eles mais de uma vez, até que sejam finalmente desvelados. Obras em que "a escrita se transforma em elemento fundamental de definição do objeto. E nem todos os objetos se submetem ao mesmo padrão de clareza - alguns precisam de zonas de sombra, não têm a clareza de uma proposição publicitária", diz Safatle, para quem essa resistência é necessária por mostrar que existem formas de pensamento que não são as do senso comum.
Olgária situa o momento que culminou com essa procura pelo estudo da filosofia por parte de estudantes e profissionais das mais diferentes atividades. Aconteceu no início dos anos 1970, quando a filosofia desapareceu do mapa das escolas do segundo grau. Com ela, foram subtraídas também as disciplinas que davam sentido a esse ensino: o grego, o latim, o francês e as literaturas. "Com o tempo", diz, "as pessoas começaram a sentir que lhes faltavam recursos para pensar determinadas questões."
Pode parecer contraditório, no mundo que não flui, mas escoa, que haja uma corrida a um saber, afinal, sem objeto. Mas, para Olgária, esse conhecimento é procurado justamente por não ter uma finalidade prática. E aí, diz, vale um olhar aos primórdios da humanidade: nenhuma sociedade, nem mesmo no paleolítico, teria permitido que a sobrevivência material suplantasse as necessidades do espírito. "As pessoas que se ressentem dessa carência dos seus tempos de formação vão buscar a filosofia e também a literatura, a música, tudo o que a escola deveria ter dado no passado. E que, por ser privilégio de poucos, retirou-se de todos igualmente."
Vivemos, assim, uma espécie de reinado do pragmatismo. Teríamos abandonado, de acordo com Olgária, tudo o que era antes preconizado pela educação, como "o aprimoramento de si, a sensibilidade, as máximas morais, o tempo longo da formação do pensamento". Ter uma profissão e um bom salário, essas urgências pragmáticas dos nossos dias não estavam excluídas da educação humanista, que previa isso e "previa também a formação de homens melhores, mais felizes". A questão não se restringe ao Brasil. O mundo contemporâneo é marcado por uma formação antiintelectual e os espaços alternativos surgiram para preencher essa lacuna.
O problema se apresenta quando, ao pretender adquirir um saber filosófico, a pessoa acaba levando para casa nada mais do que uma bagatela de saber, menos que um aceno. Ou, na opinião de Safatle, uma "autoajuda de luxo", que ele considera detestável: "É algo do tipo 'Sêneca pode me mostrar o que é uma vida feliz', ou 'como Platão pode me ajudar se eu estiver desempregado'".
Os títulos que se exibem nas prateleiras das livrarias não diferem muito desse dizer imaginado por Safatle, não escondem seu propósito imediatista. "Tudo se passa", diz ele, "como se você pudesse expor todo e qualquer conteúdo no mesmo tipo de discurso, produzindo uma espécie de nivelamento em que o tempo da descoberta desaparece."
Para além do trabalho acadêmico (cada vez mais integral e mais internacionalizado), do debate intelectual e das questões levadas a público, mesmo que às vezes mais miúdas do que gostariam, os filósofos também atuam próximos das outras ciências humanas. Não tanto quanto poderiam, no entanto. Janine levanta a importância de uma pesquisa mais articulada, que não excluiria o trabalho individual. Ele cita o trabalho de repertoriamento das línguas indígenas brasileiras feito pelo CNPq, e conta o caso de um missionário americano que teria vindo para a Amazônia e descobriu uma tribo que não articula os tempos verbais. Para os habitantes dessa tribo, só há o presente. O missionário teve a vida revirada com essa descoberta: comprou uma briga com o filósofo e linguista americano Noam Chomsky, que colocou em dúvida seus métodos de pesquisa, e viu evaporar sua crença em Deus.
Para Janine, a questão extrapola os limites da antropologia e surge como um chamado irresistível à filosofia. A questão que se coloca é o sentido da vida em um caso concreto. A pesquisa deveria ser refeita e levada ao público. "Se um pequeno grupo dessa enorme humanidade pode viver assim, talvez seja uma capacidade que todos tenhamos", imagina, intrigado com essa vida que transcorre no instante. "Mas a pesquisa ainda é muito pulverizada", lamenta.
Janine pode ser considerado um dos intelectuais mais presentes no debate público, daqueles que não se abstêm de colocar o dedo na ferida. Não por acaso, já participou de vários seminários organizados pelo filósofo Adauto Novaes, que há 30 anos reúne intelectuais de vários campos para pensar nossa época. O primeiro deles, no início dos anos 1980, foi "Os Sentidos da Paixão", seguido por "O Olhar, Ética, Ensaios sobre o Medo" e outros, totalizando 30 seminários. Organizados em livros, já ultrapassaram a marca dos 200 mil exemplares vendidos, segundo os cálculos do filósofo.
Enquanto falamos, ele está a uma semana de abrir mais um ciclo de palestras, que acontecem em Brasília, São Paulo e Rio de Janeiro. Explica que "A Invenção das Crenças", ciclo que acontece entre agosto e setembro, é o quarto da série intitulada "Mutações", transformações radicais pelas quais o mundo ocidental passa hoje e que se dão em todas as áreas da atividade humana: nas artes, na política, na ética, a partir de uma revolução tecnocientífica e com uma estarrecedora predominância dos fatos em detrimento das ideias. No programa do próximo seminário, Novaes escreve, a respeito do último ciclo, "A Experiência do Pensamento", prestes a sair em livro: "Porque [a racionalidade técnica] se origina na revolução tecnocientífica e praticamente sem a ação dos pressupostos das ciências humanas, tendemos a dizer que ela é feita no vazio do pensamento".
"Temos que pensar o que está posto hoje para a filosofia", diz Novaes. Por isso, é preciso colocar de outra forma as ideias de tempo e de espaço. E de trabalho. "Pensava-se que a classe operária faria a revolução". Pois as relações de trabalho, diz, já não são as mesmas e o que vivemos hoje não é uma crise, que afinal, sempre acompanhou a modernidade. Já uma mutação acontece a cada 400 ou 500 anos.
Pode-se ter uma noção da época em que vivemos a partir de outra colocação de Novaes no programa do seminário: o Renascimento foi, em suas palavras, "outra prodigiosa mutação". Este ano, uma exposição em São Paulo marca a trajetória dos ciclos criados pelo filósofo, com apresentação do crítico literário Antonio Candido, um dos mais respeitados intelectuais do país.
Enquanto se discutem questões de tamanha magnitude, os mesmos intelectuais que hoje pensam para onde caminha a humanidade certamente continuarão a ser chamados para opinar sobre todo tipo de assunto. E, a despeito das críticas às vezes devastadoras que possam sofrer, continuarão a "colocar o dedo na ferida", como disse Janine. Antonio Cicero fecha a questão: "Longe de aceitar o papel que lhe querem atribuir, o filósofo deve meter-se onde não é chamado".
Por Cristina Dantas, para o Valor, de São Paulo
27/08/2010
"Escola de Atenas", afresco de Raffaello de Sanzio, no Vaticano, pintado entre 1509 e 1510: Platão e Aristóteles aparecem no centro, entre filósofos de diversas épocas
Demócrito de Abdera divisou o indivisível: pensou o átomo. Pensou também a ética enquanto andava pelas ruas de Atenas, entre o sorriso e a gargalhada. Diógenes de Sinope, esfarrapado e sujo, empunhava sua lanterna sob o sol do meio-dia em busca de um homem de virtude. Anaxágoras das vestes vermelhas se dizia um deus. Não que na Antiguidade Clássica essas atitudes exóticas fossem comuns, mas, como conta a professora Olgária Matos, "os atenienses conviviam tranquilamente com as extravagâncias de seus filósofos".
São figuras do passado, que, por suas ideias e idiossincrasias, deixaram marcas de presença importante na história da filosofia. E os filósofos de agora? De que se ocupam? O que se espera deles? O mesmo que em qualquer época, de acordo com o filósofo e poeta Antonio Cicero. "A filosofia pretende tratar racionalmente das questões fundamentais que dizem respeito ao ser, ao conhecimento, à ética. Ao fazê-lo, questiona e submete à crítica as respostas tradicionais e convencionais. É assim ainda hoje."
Antonio Cícero: "A filosofia pretende tratar racionalmente das questões fundamentais que dizem respeito ao ser, ao conhecimento, à ética. Ao fazê-lo, questiona respostas tradicionais e convencionais"
Vêm à lembrança os olhos enviesados e o cachimbo pendendo eternamente da boca de Jean-Paul Sartre, ou Michel Foucault - ambos, personagens recentes de uma tradicional linhagem de filósofos que transitaram pela academia e pelas questões públicas com igual desenvoltura. É nossa herança. A universidade pública brasileira nasceu de um modelo francês, que nos legou a figura do intelectual que toma a palavra em público e pensa as questões do nosso tempo, como lembra Olgária. Ela aponta, porém, uma diferença. A tradição francesa teria no espaço público o lugar do "debate sem segundas intenções". Para Olgária, no Brasil, quando o intelectual sai do registro daquilo que a mídia e a opinião pública dele esperam, é desqualificado. Há mais variantes nessa equação, e uma delas está na pauta proposta aos intelectuais, especialmente aos filósofos.
"Há 25 anos vivemos uma democracia e a vivemos como se fosse sinônimo de corrupção", analisa outro respeitado mestre da filosofia política no Brasil, Renato Janine Ribeiro. A queixa é sincera e tem explicação justa. Em primeiro lugar, porque os escândalos que surgem na esfera do poder ocupam espaços demasiados, que deveriam ser dispensados a pesquisas relevantes - a falta de uma ágora adequada e receptiva acaba por confiná-las ao ambiente da academia. Em segundo lugar, porque nem sempre é convidado ao debate aquele que está mais aprofundado no tema proposto. Que fique claro: a discussão deve ser franqueada a todos, mas seriam desejáveis, para Janine Ribeiro, uma sintonia mais fina e um portfólio mais vasto de intelectuais a serem ouvidos. "Em que medida a atuação de alguém da área da filosofia tem a ver com o tema a ser tratado? Às vezes você dá sua opinião de cidadão."
Olgária Matos: "O conhecimento de conceitos, do registro em que a filosofia opera, exige iniciação, mas um outro plano, o da fruição, está disponível a todo o público", como nos cursos livres
Alguns anos atrás, Janine fez um levantamento entre os pesquisadores do CNPq - Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, ligado ao Ministério da Ciência e Tecnologia. A intenção era aferir, entre os bolsistas de primeiro nível, quantas citações haviam tido na grande imprensa, durante cerca de seis meses, os pesquisadores de filosofia, ciências políticas, sociologia e antropologia. E sempre para assuntos não específicos dessas áreas. Ao final, uma constatação surpreendente: os bolsistas de filosofia exibiam o mesmo número de citações das três ciências sociais somadas.
Por que essa abertura tão ampla aos filósofos? "É porque sabemos fazer resenha de livro", ironiza Vladimir Safatle. "Você vira uma espécie de comentador de rodapé da notícia do dia." Para exemplificar a tese, cita a ideia desenvolvida por Foucault: "O filósofo está se transformando em um jornalista transcendental", teria acusado o fundador de conceitos fundamentais da filosofia do século XX. Por trás da ironia, uma explicação plausível: a própria formação do filósofo, que transita por uma vasta gama de campos, da política à estética - e isso, apenas na graduação. Com seu repertório sólido e abrangente, é natural que o filósofo possa escrever, para o grande público, textos, como diz Safatle, "minimamente coerentes".
Janine Ribeiro: "Em que medida a atuação de alguém da área da filosofia tem a ver com o tema a ser tratado? Às vezes você dá sua opinião de cidadão"
Aceitando-se que sejam tantos os assuntos de interesse do filósofo, pode-se incorrer no equívoco de acreditar que a universidade não tem pauta própria. E "a imprensa, como é normal em qualquer sistema organizado da vida social, também tem sua pauta de interesses. A gente acaba se adaptando", diz Safatle, que aos 37 anos exibe no currículo dez livros editados - quatro como autor, seis como organizador.
Seu arsenal de críticas se volta em algumas ocasiões para a própria universidade. É o caso de episódio recente da vida política brasileira. A decisão do Superior Tribunal Federal de não rever a Lei de Anistia, com o fim de julgar agentes do Estado por crimes cometidos no país entre 1961 e 1979, transcorreu sob "uma ausência quase aterradora de debate na universidade", e deixou Safatle inconformado. "Do ponto de vista filosófico, a questão toca vários problemas: a memória social, o peso da história, qual o significado de elaborar o passado, como se relacionar com ele", analisa, listando alguns importantes filósofos que se ocuparam do tema, entre Theodor Adorno, Hannah Arendt e Walter Benjamin.
O episódio tem agravantes. "A universidade foi a que mais sofreu com a ditadura militar. Ela teria um interesse orgânico no assunto", diz Safatle. Com Edson Teles, ele organizou o livro "O que Resta da Ditadura", para trazer à tona o que ficou soterrado nos escombros de uma era vil da historia do país. As críticas, de maneira mais ampla, estendem-se aos colegas de sua geração. É possível que parte deles acredite que um pesquisador rigoroso deva viver integralmente dentro de sua especialidade, resvalando, se tanto, para suas adjacências. Essa prática, que foi importante na formação dos intelectuais brasileiros, pode hoje afastá-los da esfera pública. "Cabe a nós não perder aquilo que outras gerações construíram", alerta Safatle.
É um risco que se corre. E o reverso disso também. Se é grave a classe intelectual silenciar, ainda que eventualmente, ter filósofos frequentando o debate público - ou qualquer debate que se apresente - fez nascer um novo personagem, e justamente em nosso berço universitário, a França. Desde os anos 1970, a imprensa é um palco em que se exibe o grupo batizado de "nouveaux philosophes", tendo à frente Bernard-Henri Lévy, misto de filósofo, jornalista e diretor de teatro. Para Safatle, antiintelectuais que tomam textos sérios por rebuscados, enquanto produzem suas "platitudes".
As notícias não são boas: "Essa é uma tendência do mundo contemporâneo, a desvalorização de todos os valores, em que tudo se equivale", informa Olgária. "Não se tem mais a ordem das urgências. As pessoas não sabem mais diferenciar o que é significativo do que é insignificante."
Enquanto o planeta gira em velocidade de cruzeiro, cada vez mais pessoas procuram o estudo da filosofia, que pede pagamento em moeda rara: tempo. "Há um aspecto da filosofia que exige iniciação, o conhecimento de seus conceitos, do registro em que ela opera. Mas um outro plano, de fruição, está disponível a todo o público", diz Olgária, que vê com muito bons olhos o crescimento dos cursos livres, e nisso não está sozinha.
"Acho bom que seja oferecida a oportunidade de estudar textos clássicos de filosofia e de praticar o pensamento filosófico a pessoas que estudam ou estudaram matérias que nada têm a ver com filosofia", elogia Antonio Cicero.
E o que essas pessoas procuram? "Pensamento livre", diz Janine, deixando claro que, quando dá um desses cursos, costuma tratar de algum assunto específico, como a liberdade vista pelas lentes do cinema, por exemplo.
Mas é pelo primeiro aspecto da filosofia citado por Olgária, o que não prescinde de iniciação, que muitos se sentem atraídos. Às aulas ministradas por Safatle, na Universidade de São Paulo, acorrem alunos de outras disciplinas, gravitando em torno de um objetivo comum: aprender a ler. Pelas características próprias do departamento, eles consideram o estudo da filosofia, de certa forma, mais rigoroso. Enquanto os alunos de outras cadeiras chegam a ter nove ou dez disciplinas por semana, na filosofia eles têm duas ou três, o que permite aulas de quatro horas e tempo para a leitura. Além disso, os professores podem exigir maior rigor de suas alunos.
Há também o fato de que os textos clássicos que nos legaram os maiores pensadores da história estão no outro extremo das "platitudes" dos "nouveaux philosophes". São textos que oferecem resistência. Pedem que se volte a eles mais de uma vez, até que sejam finalmente desvelados. Obras em que "a escrita se transforma em elemento fundamental de definição do objeto. E nem todos os objetos se submetem ao mesmo padrão de clareza - alguns precisam de zonas de sombra, não têm a clareza de uma proposição publicitária", diz Safatle, para quem essa resistência é necessária por mostrar que existem formas de pensamento que não são as do senso comum.
Olgária situa o momento que culminou com essa procura pelo estudo da filosofia por parte de estudantes e profissionais das mais diferentes atividades. Aconteceu no início dos anos 1970, quando a filosofia desapareceu do mapa das escolas do segundo grau. Com ela, foram subtraídas também as disciplinas que davam sentido a esse ensino: o grego, o latim, o francês e as literaturas. "Com o tempo", diz, "as pessoas começaram a sentir que lhes faltavam recursos para pensar determinadas questões."
Pode parecer contraditório, no mundo que não flui, mas escoa, que haja uma corrida a um saber, afinal, sem objeto. Mas, para Olgária, esse conhecimento é procurado justamente por não ter uma finalidade prática. E aí, diz, vale um olhar aos primórdios da humanidade: nenhuma sociedade, nem mesmo no paleolítico, teria permitido que a sobrevivência material suplantasse as necessidades do espírito. "As pessoas que se ressentem dessa carência dos seus tempos de formação vão buscar a filosofia e também a literatura, a música, tudo o que a escola deveria ter dado no passado. E que, por ser privilégio de poucos, retirou-se de todos igualmente."
Vivemos, assim, uma espécie de reinado do pragmatismo. Teríamos abandonado, de acordo com Olgária, tudo o que era antes preconizado pela educação, como "o aprimoramento de si, a sensibilidade, as máximas morais, o tempo longo da formação do pensamento". Ter uma profissão e um bom salário, essas urgências pragmáticas dos nossos dias não estavam excluídas da educação humanista, que previa isso e "previa também a formação de homens melhores, mais felizes". A questão não se restringe ao Brasil. O mundo contemporâneo é marcado por uma formação antiintelectual e os espaços alternativos surgiram para preencher essa lacuna.
O problema se apresenta quando, ao pretender adquirir um saber filosófico, a pessoa acaba levando para casa nada mais do que uma bagatela de saber, menos que um aceno. Ou, na opinião de Safatle, uma "autoajuda de luxo", que ele considera detestável: "É algo do tipo 'Sêneca pode me mostrar o que é uma vida feliz', ou 'como Platão pode me ajudar se eu estiver desempregado'".
Os títulos que se exibem nas prateleiras das livrarias não diferem muito desse dizer imaginado por Safatle, não escondem seu propósito imediatista. "Tudo se passa", diz ele, "como se você pudesse expor todo e qualquer conteúdo no mesmo tipo de discurso, produzindo uma espécie de nivelamento em que o tempo da descoberta desaparece."
Para além do trabalho acadêmico (cada vez mais integral e mais internacionalizado), do debate intelectual e das questões levadas a público, mesmo que às vezes mais miúdas do que gostariam, os filósofos também atuam próximos das outras ciências humanas. Não tanto quanto poderiam, no entanto. Janine levanta a importância de uma pesquisa mais articulada, que não excluiria o trabalho individual. Ele cita o trabalho de repertoriamento das línguas indígenas brasileiras feito pelo CNPq, e conta o caso de um missionário americano que teria vindo para a Amazônia e descobriu uma tribo que não articula os tempos verbais. Para os habitantes dessa tribo, só há o presente. O missionário teve a vida revirada com essa descoberta: comprou uma briga com o filósofo e linguista americano Noam Chomsky, que colocou em dúvida seus métodos de pesquisa, e viu evaporar sua crença em Deus.
Para Janine, a questão extrapola os limites da antropologia e surge como um chamado irresistível à filosofia. A questão que se coloca é o sentido da vida em um caso concreto. A pesquisa deveria ser refeita e levada ao público. "Se um pequeno grupo dessa enorme humanidade pode viver assim, talvez seja uma capacidade que todos tenhamos", imagina, intrigado com essa vida que transcorre no instante. "Mas a pesquisa ainda é muito pulverizada", lamenta.
Janine pode ser considerado um dos intelectuais mais presentes no debate público, daqueles que não se abstêm de colocar o dedo na ferida. Não por acaso, já participou de vários seminários organizados pelo filósofo Adauto Novaes, que há 30 anos reúne intelectuais de vários campos para pensar nossa época. O primeiro deles, no início dos anos 1980, foi "Os Sentidos da Paixão", seguido por "O Olhar, Ética, Ensaios sobre o Medo" e outros, totalizando 30 seminários. Organizados em livros, já ultrapassaram a marca dos 200 mil exemplares vendidos, segundo os cálculos do filósofo.
Enquanto falamos, ele está a uma semana de abrir mais um ciclo de palestras, que acontecem em Brasília, São Paulo e Rio de Janeiro. Explica que "A Invenção das Crenças", ciclo que acontece entre agosto e setembro, é o quarto da série intitulada "Mutações", transformações radicais pelas quais o mundo ocidental passa hoje e que se dão em todas as áreas da atividade humana: nas artes, na política, na ética, a partir de uma revolução tecnocientífica e com uma estarrecedora predominância dos fatos em detrimento das ideias. No programa do próximo seminário, Novaes escreve, a respeito do último ciclo, "A Experiência do Pensamento", prestes a sair em livro: "Porque [a racionalidade técnica] se origina na revolução tecnocientífica e praticamente sem a ação dos pressupostos das ciências humanas, tendemos a dizer que ela é feita no vazio do pensamento".
"Temos que pensar o que está posto hoje para a filosofia", diz Novaes. Por isso, é preciso colocar de outra forma as ideias de tempo e de espaço. E de trabalho. "Pensava-se que a classe operária faria a revolução". Pois as relações de trabalho, diz, já não são as mesmas e o que vivemos hoje não é uma crise, que afinal, sempre acompanhou a modernidade. Já uma mutação acontece a cada 400 ou 500 anos.
Pode-se ter uma noção da época em que vivemos a partir de outra colocação de Novaes no programa do seminário: o Renascimento foi, em suas palavras, "outra prodigiosa mutação". Este ano, uma exposição em São Paulo marca a trajetória dos ciclos criados pelo filósofo, com apresentação do crítico literário Antonio Candido, um dos mais respeitados intelectuais do país.
Enquanto se discutem questões de tamanha magnitude, os mesmos intelectuais que hoje pensam para onde caminha a humanidade certamente continuarão a ser chamados para opinar sobre todo tipo de assunto. E, a despeito das críticas às vezes devastadoras que possam sofrer, continuarão a "colocar o dedo na ferida", como disse Janine. Antonio Cicero fecha a questão: "Longe de aceitar o papel que lhe querem atribuir, o filósofo deve meter-se onde não é chamado".
segunda-feira, 23 de agosto de 2010
A Raposa Serra do Sol - o desacordo e o processo eleitoral
Roraima: A construção de uma hidrelétrica é a principal bandeira eleitoral dos que querem reocupar a reservaRaposa Serra do Sol enfrenta o teste das urnas
Cristiane Agostine, de Normandia (RR)
23/08/2010
Silvia Costanti/Valor
Paulo Cesar Quartiero (DEM), líder arrozeiro, declarou patrimônio de R$ 7,9 milhões em espécie e R$ 10 em máquinas agrícolas
Em uma pacata rua de Boa Vista os cartazes de propaganda política pendurados na casa de Regina e Ivo Barilli informam: "A luta continua". No quintal da casa, dezenas de funcionários da fábrica de processamento de arroz da família Barilli ouvem atentamente Paulo Cesar Quartiero (DEM) e Izabel Itikawa (PSDB), candidatos ao Legislativo federal e estadual. Os temas são a expulsão dos arrozeiros da reserva indígena Raposa Serra do Sol e a "perseguição" do governo federal contra os produtores rurais. No comício que reúne Barilli, Quartiero e Itikawa, três das seis maiores famílias produtoras de Roraima, as palavras de ordem são resistir, impedir novas demarcações e retornar à reserva da qual foram expulsos em 2009.
A proposta para os não-indígenas voltarem à reserva é a tônica de outro comício na capital, desta vez do governador e candidato à reeleição, José de Anchieta Junior (PSDB). A construção da hidrelétrica do Cotingo, no meio da reserva, é o principal projeto para seu segundo mandato. Contrário à demarcação contínua das terras, Anchieta quer que a obra sirva de exemplo a outros governos. "Construir não vai ser fácil, mas quero abrir um precendente", explica. "Vou buscar o desenvolvimento onde for preciso."
Um ano e cinco meses depois de o Supremo Tribunal Federal (STF) decidir pela demarcação em área contínua da Raposa Serra do Sol e pela retirada dos não-indígenas da reserva, Roraima está novamente dividida entre arrozeiros, índios que comemoram a homologação e aqueles que ainda defendem a volta dos brancos. Todos têm seus representantes na disputa.
Paralelamente, está em julgamento a atuação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva na homologação da reserva. O governo fez da demarcação sua bandeira, desde o primeiro ano da gestão. O resultado final, no ano passado, deve se refletir nas urnas em outubro.
Lula foi a Roraima por duas vezes em seu mandato, mas só após a decisão do Supremo. Acusado de tirar a terra de quem queria produzir, foi repudiado em outdoors na capital e em uma das visitas o esquema de segurança foi reforçado, pois havia ameaça de que manifestantes jogassem ovos e tomates na comitiva.
No Estado em que a candidatura presidencial do PSDB obteve o maior percentual de votos em 2006 (59,7%), produtores rurais querem fazer da disputa eleitoral um protesto contra o governo do PT. Tentam transformar seu descontentamento em votos contrários à Dilma Rousseff. Indígenas, movimentos sociais, igreja, entidades de direitos humanos, no entanto, articulam-se para consagrar nas urnas o governo responsável pela homologação. Segundo Ibope do fim de julho, o candidato do PSDB à Presidência, José Serra, está à frente com 42% das intenções de voto contra 37% de Dilma.
"O governo do Estado sempre esteve do lado da gente, mas o federal não. Sempre fez imposição, veio aqui demarcar, impor", reclama o produtor de arroz Genor Luis Faccio, que teve de deixar a reserva assim como os Itikawa, Barilli e Quartiero. "Quem vier pedir voto para o PT está enrolado", afirma Faccio.
O governo federal e seus candidatos se defendem com o argumento de que foi Lula quem repassou o maior número de terras da União para o Estado, desde a criação de Roraima, em 1988: 6 milhões de hectares. Seria uma forma de compensar o 1,7 milhão de hectares homologados na raposa Serra do Sol.
Os arrozeiros estão articulados em torno da campanha de Quartiero, seu principal líder. O candidato é um dos mais ricos do Estado: declarou patrimônio de R$ 8 milhões, sendo R$ 7,9 milhões em espécie, R$ 100 mil em uma empresa própria e apenas R$ 10 em máquinas agrícolas. "A principal atividade econômica do Estado chama-se eleições", diz Quartiero. Entre suas principais propostas está a exploração de minerais, inclusive em território indígena. "De que adianta o ouro dormindo sob a terra, no meio do mato, se a gente chacoalha a população e não cai nada? Tem que fazer a transferência de recurso", diz, em quase todos os comícios que participa.
Nelson Itikawa, presidente da associação dos arrozeiros de Roraima, sustenta a candidatura de sua esposa, Izabel. O ex-garimpeiro e deputado Marcio Junqueira (DEM), um dos principais críticos no Congresso da homologação, tenta reeleger-se com a bandeira do fim das demarcações e o fortalecimento da agricultura.
Os produtores rurais têm no governador Anchieta um grande aliado. Foi o tucano quem questionou junto ao Supremo a retirada dos arrozeiros da reserva em 2008 e paralisou ação da Polícia Federal até o julgamento do caso pelo STF, em 2009.
A hidrelétrica de Cotingo, principal proposta do governador, aparece também no material de campanha de diversos candidatos ligados ao governo e aos produtores rurais. A justificativa, assim como no caso da disputa pela reserva, é a soberania nacional. Boa parte da energia consumida em Roraima (65% do total) vem da Venezuela e os recentes problemas de desabastecimento no país vizinho afetaram o Estado. A nova hidrelétrica, dizem, supriria a demanda e possibilitaria a exportação do excedente. A obra poderia ser realizada fora das terras indígenas, mas a escolha é estratégica. "A forma como aquelas terras foram demarcadas esterilizou quase dois milhões de hectares", diz. "Há muitos interesses em jogo lá."
A proposta da hidrelétrica gera revolta entre os indígenas. Integrante da direção do Conselho Indígena de Roraima (CIR), Marizete de Souza Macuxi reclama: "Isso vai ser uma nova invasão. Vão se apossar da terra, casar com as índias, voltar a morar na reserva. Fora as comunidades perto do rio que vão ser alagadas".
O entendimento jurídico sobre a construção da hidrelétrica divide Funai, Ibama e Ministério Público Federal: enquanto as duas primeiras dizem que pode haver brecha legal para a construção em terra indígena, o MPF diz que é inconstitucional.
Os indígenas buscam ganhar força e espaço no Legislativo para evitar a criação de leis que permitam obras como a hidrelétrica de Cotingo, a exploração de terras indígenas e da flexibilização das leis ambientais.
As etnias tentam reverter a desvantagem numérica que têm na Câmara e na Assembleia Legislativa. Dos oito deputados federais eleitos em Roraima em 2006, apenas um aderiu à luta indígena. "Por mais que outros candidatos tenham nos apoiado, nesta eleição vamos dar prioridade aos indígenas", afirma Marizete, do Conselho Indígena de Roraima. A entidade foi a principal defensora da demarcação contínua. Entre as principais propostas estão a melhoria da saúde e a educação indígenas e recursos para o desenvolvimento das comunidades. Na disputa nacional, devem apoiar Dilma. "Se mudar o governo ninguém sabe como vai ser", diz.
Os candidatos indígenas tentam vencer duas dificuldades. A primeira é numérica: eles estão em desvantagem, já que dos 395 mil habitantes de Roraima, 53 mil são índios, 13% do total da população, segundo o Conselho Indígena de Roraima. Destes, 19,5 mil vivem na Raposa Serra do Sol. A segunda dificuldade é política. Em Roraima, o PT, principal partido de luta pelos direitos indígenas, enfrenta dificuldades. Na disputa presidencial, Lula só venceu no Estado em 2002. Naquela eleição, os petistas elegeram o governador Flamarion Portela, cassado dois anos depois de eleito. O senador Augusto Botelho também se desfiliou da legenda, descontente pelo fato de não poder se candidatar à reeleição.
Do lado indígena, estão representados tanto os índios que defendiam a demarcação quanto aqueles que estavam do lado dos brancos.
Entre os indígenas que não queriam a expulsão dos brancos da reserva, o presidente da Sociedade de Defesa dos Índios Unidos de Roraima (Sodiur), Silvio da Silva, começa a se articular para disputar a prefeitura de Pacaraima, município em que está parte da terra indígena São Marcos, vizinha à Raposa Serra do Sol. Se não vencer, Silvio pretende candidatar-se a deputado, em 2014.
Das duas organizações indígenas da reserva, o Conselho Indígena de Roraima e a Sodiur, apenas esta declara voto e faz campanha nesta eleição. A sede da entidade, no centro de Boa Vista, está repleta de cartazes de Anchieta Junior. Com o carro lotado de material de campanha do PSDB, o presidente da entidade, Silvio da Silva, parte para as terras da Raposa Serra do Sol, onde ficará distribuindo folhetos e bandeiras.
Cristiane Agostine, de Normandia (RR)
23/08/2010
Silvia Costanti/Valor
Paulo Cesar Quartiero (DEM), líder arrozeiro, declarou patrimônio de R$ 7,9 milhões em espécie e R$ 10 em máquinas agrícolas
Em uma pacata rua de Boa Vista os cartazes de propaganda política pendurados na casa de Regina e Ivo Barilli informam: "A luta continua". No quintal da casa, dezenas de funcionários da fábrica de processamento de arroz da família Barilli ouvem atentamente Paulo Cesar Quartiero (DEM) e Izabel Itikawa (PSDB), candidatos ao Legislativo federal e estadual. Os temas são a expulsão dos arrozeiros da reserva indígena Raposa Serra do Sol e a "perseguição" do governo federal contra os produtores rurais. No comício que reúne Barilli, Quartiero e Itikawa, três das seis maiores famílias produtoras de Roraima, as palavras de ordem são resistir, impedir novas demarcações e retornar à reserva da qual foram expulsos em 2009.
A proposta para os não-indígenas voltarem à reserva é a tônica de outro comício na capital, desta vez do governador e candidato à reeleição, José de Anchieta Junior (PSDB). A construção da hidrelétrica do Cotingo, no meio da reserva, é o principal projeto para seu segundo mandato. Contrário à demarcação contínua das terras, Anchieta quer que a obra sirva de exemplo a outros governos. "Construir não vai ser fácil, mas quero abrir um precendente", explica. "Vou buscar o desenvolvimento onde for preciso."
Um ano e cinco meses depois de o Supremo Tribunal Federal (STF) decidir pela demarcação em área contínua da Raposa Serra do Sol e pela retirada dos não-indígenas da reserva, Roraima está novamente dividida entre arrozeiros, índios que comemoram a homologação e aqueles que ainda defendem a volta dos brancos. Todos têm seus representantes na disputa.
Paralelamente, está em julgamento a atuação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva na homologação da reserva. O governo fez da demarcação sua bandeira, desde o primeiro ano da gestão. O resultado final, no ano passado, deve se refletir nas urnas em outubro.
Lula foi a Roraima por duas vezes em seu mandato, mas só após a decisão do Supremo. Acusado de tirar a terra de quem queria produzir, foi repudiado em outdoors na capital e em uma das visitas o esquema de segurança foi reforçado, pois havia ameaça de que manifestantes jogassem ovos e tomates na comitiva.
No Estado em que a candidatura presidencial do PSDB obteve o maior percentual de votos em 2006 (59,7%), produtores rurais querem fazer da disputa eleitoral um protesto contra o governo do PT. Tentam transformar seu descontentamento em votos contrários à Dilma Rousseff. Indígenas, movimentos sociais, igreja, entidades de direitos humanos, no entanto, articulam-se para consagrar nas urnas o governo responsável pela homologação. Segundo Ibope do fim de julho, o candidato do PSDB à Presidência, José Serra, está à frente com 42% das intenções de voto contra 37% de Dilma.
"O governo do Estado sempre esteve do lado da gente, mas o federal não. Sempre fez imposição, veio aqui demarcar, impor", reclama o produtor de arroz Genor Luis Faccio, que teve de deixar a reserva assim como os Itikawa, Barilli e Quartiero. "Quem vier pedir voto para o PT está enrolado", afirma Faccio.
O governo federal e seus candidatos se defendem com o argumento de que foi Lula quem repassou o maior número de terras da União para o Estado, desde a criação de Roraima, em 1988: 6 milhões de hectares. Seria uma forma de compensar o 1,7 milhão de hectares homologados na raposa Serra do Sol.
Os arrozeiros estão articulados em torno da campanha de Quartiero, seu principal líder. O candidato é um dos mais ricos do Estado: declarou patrimônio de R$ 8 milhões, sendo R$ 7,9 milhões em espécie, R$ 100 mil em uma empresa própria e apenas R$ 10 em máquinas agrícolas. "A principal atividade econômica do Estado chama-se eleições", diz Quartiero. Entre suas principais propostas está a exploração de minerais, inclusive em território indígena. "De que adianta o ouro dormindo sob a terra, no meio do mato, se a gente chacoalha a população e não cai nada? Tem que fazer a transferência de recurso", diz, em quase todos os comícios que participa.
Nelson Itikawa, presidente da associação dos arrozeiros de Roraima, sustenta a candidatura de sua esposa, Izabel. O ex-garimpeiro e deputado Marcio Junqueira (DEM), um dos principais críticos no Congresso da homologação, tenta reeleger-se com a bandeira do fim das demarcações e o fortalecimento da agricultura.
Os produtores rurais têm no governador Anchieta um grande aliado. Foi o tucano quem questionou junto ao Supremo a retirada dos arrozeiros da reserva em 2008 e paralisou ação da Polícia Federal até o julgamento do caso pelo STF, em 2009.
A hidrelétrica de Cotingo, principal proposta do governador, aparece também no material de campanha de diversos candidatos ligados ao governo e aos produtores rurais. A justificativa, assim como no caso da disputa pela reserva, é a soberania nacional. Boa parte da energia consumida em Roraima (65% do total) vem da Venezuela e os recentes problemas de desabastecimento no país vizinho afetaram o Estado. A nova hidrelétrica, dizem, supriria a demanda e possibilitaria a exportação do excedente. A obra poderia ser realizada fora das terras indígenas, mas a escolha é estratégica. "A forma como aquelas terras foram demarcadas esterilizou quase dois milhões de hectares", diz. "Há muitos interesses em jogo lá."
A proposta da hidrelétrica gera revolta entre os indígenas. Integrante da direção do Conselho Indígena de Roraima (CIR), Marizete de Souza Macuxi reclama: "Isso vai ser uma nova invasão. Vão se apossar da terra, casar com as índias, voltar a morar na reserva. Fora as comunidades perto do rio que vão ser alagadas".
O entendimento jurídico sobre a construção da hidrelétrica divide Funai, Ibama e Ministério Público Federal: enquanto as duas primeiras dizem que pode haver brecha legal para a construção em terra indígena, o MPF diz que é inconstitucional.
Os indígenas buscam ganhar força e espaço no Legislativo para evitar a criação de leis que permitam obras como a hidrelétrica de Cotingo, a exploração de terras indígenas e da flexibilização das leis ambientais.
As etnias tentam reverter a desvantagem numérica que têm na Câmara e na Assembleia Legislativa. Dos oito deputados federais eleitos em Roraima em 2006, apenas um aderiu à luta indígena. "Por mais que outros candidatos tenham nos apoiado, nesta eleição vamos dar prioridade aos indígenas", afirma Marizete, do Conselho Indígena de Roraima. A entidade foi a principal defensora da demarcação contínua. Entre as principais propostas estão a melhoria da saúde e a educação indígenas e recursos para o desenvolvimento das comunidades. Na disputa nacional, devem apoiar Dilma. "Se mudar o governo ninguém sabe como vai ser", diz.
Os candidatos indígenas tentam vencer duas dificuldades. A primeira é numérica: eles estão em desvantagem, já que dos 395 mil habitantes de Roraima, 53 mil são índios, 13% do total da população, segundo o Conselho Indígena de Roraima. Destes, 19,5 mil vivem na Raposa Serra do Sol. A segunda dificuldade é política. Em Roraima, o PT, principal partido de luta pelos direitos indígenas, enfrenta dificuldades. Na disputa presidencial, Lula só venceu no Estado em 2002. Naquela eleição, os petistas elegeram o governador Flamarion Portela, cassado dois anos depois de eleito. O senador Augusto Botelho também se desfiliou da legenda, descontente pelo fato de não poder se candidatar à reeleição.
Do lado indígena, estão representados tanto os índios que defendiam a demarcação quanto aqueles que estavam do lado dos brancos.
Entre os indígenas que não queriam a expulsão dos brancos da reserva, o presidente da Sociedade de Defesa dos Índios Unidos de Roraima (Sodiur), Silvio da Silva, começa a se articular para disputar a prefeitura de Pacaraima, município em que está parte da terra indígena São Marcos, vizinha à Raposa Serra do Sol. Se não vencer, Silvio pretende candidatar-se a deputado, em 2014.
Das duas organizações indígenas da reserva, o Conselho Indígena de Roraima e a Sodiur, apenas esta declara voto e faz campanha nesta eleição. A sede da entidade, no centro de Boa Vista, está repleta de cartazes de Anchieta Junior. Com o carro lotado de material de campanha do PSDB, o presidente da entidade, Silvio da Silva, parte para as terras da Raposa Serra do Sol, onde ficará distribuindo folhetos e bandeiras.
sexta-feira, 20 de agosto de 2010
As bases históricas do constitucionalismo latino americano
http://www.elpais.com/especial/los-nombres-de-america/
Jornal El Pais com base em historiadores latino-americanos estruturou essa historiografia dos 200 anos da formação dos estados latino-americanos importante para refletirmos do que se denomina hoje de constitucionalismo latino-americano. O endereço eletrônico foi enviado pelo Prof Marcelo Cattoni da UFMG de direito.
Jornal El Pais com base em historiadores latino-americanos estruturou essa historiografia dos 200 anos da formação dos estados latino-americanos importante para refletirmos do que se denomina hoje de constitucionalismo latino-americano. O endereço eletrônico foi enviado pelo Prof Marcelo Cattoni da UFMG de direito.
quinta-feira, 19 de agosto de 2010
Estado Plurinacional na Bolivia
As cinco leis fundamentais do Estado Plurinacional
Vinicius Mansur
correspondente em
La Paz (Bolívia)
Com a promulgação da Lei Marco de Autonomias e Descentralização
pelo presidente Evo Morales, no dia 19 de julho, foi conformado o corpo legal
básico que permitirá o pleno funcionamento do novo Estado boliviano, conforme a
Nova Constituição Política de Estado (NCPE). O prazo para a aprovação deste
corpo, também composto pelas outras quatro leis orgânicas citadas, já estava
definido nas disposições transitórias da nova Constituição: o Congresso
boliviano tinha o dia 22 de agosto como data limite para entregá-las ao
presidente.
A oposição à Morales classificou de autoritária a rapidez
empreendida ao processo de aprovação, porém, pouco pode fazer diante de uma
bancada governista que corresponde a mais de dois terços do Parlamento. Alguns
pontos das novas leis também foram taxadas de autoritárias pelos oposicionistas,
mas até mesmo a Lei Marco de Autonomias e Descentralização, alvo das maiores
polêmicas, foi considerada um avanço por Ruben Costas, governador de Santa Cruz,
departamento que reúne a mais forte oposição à Morales. “Se recorremos a
história da Bolívia e de Santa Cruz, encontraremos que nunca houve tantos
avanços em autonomia como tivemos nos últimos cinco anos”, declarou.
Autonomias e Descentralização
Denominada de Andrés Ibáñez, em homenagem ao líder da Revolução
Igualitária de 1877, em Santa Cruz, a Lei Marco de Autonomias e Descentralização
define o regime de competência e os mecanismos de coordenação entre os
diferentes níveis de governo, além de criar o Conselho Nacional de Autonomias e
do Serviço Estatal Técnico de Autonomias para acompanhar o processo de
descentralização. A nova lei concede diferentes níveis de autonomias a regiões,
departamentos, municípios e territórios indígenas autônomos, descentralizando
ações em mais de 20 áreas, como saúde, educação, transporte, obras públicas,
meio ambiente, entre outras.
De acordo com o ministro de Autonomias, Carlos Romero, a nova
lei serve para promover o desenvolvimento econômico e produtivo do país: “Uma
vez aprovada a lei de classificação de impostos, vão poder [as unidades
autônomas] exercer sua reforma tributária, o que os vai permitir aumentar seus
recursos, mas também assumir empreendimentos econômicos que os permitam dar
sustentabilidade às autonomias, captando receitas próprias e não sujeitando-se
somente às projeções de renda geradas pela exploração de recursos naturais”. Um
Fundo de Produção e Solidariedade foi criado pela nova lei para complementar a
renda dos departamentos mais pobres.
A desconcentração de poderes prevista pela NCPE e especificada
na nova lei, a princípio, pode não soar muito inovadora para a realidade
brasileira de Estado federal. Porém, significa grandes mudanças na Bolívia, país
com forte herança centralista, no qual seu povo sequer tinha o direito de eleger
os governadores antes da NCPE, sendo estes indicados diretamente pelo
presidente. Tal herança se justifica na histórica dificuldade boliviana de
forjar a unidade e a identidade nacional, fato que sempre travou a
descentralização de poderes em nome do medo da fragmentação do Estado. Ou, ao
contrário, motivou movimentos separatistas que se camuflavam sob a bandeira da
“autonomia”. O exemplo mais recente aconteceu em 2008, quando quatro
departamentos do oriente boliviano (Santa Cruz, Pando, Tarija e Beni),
governados pela oposição à Morales, realizaram, sem reconhecimento dos órgãos do
Estado nacional, os chamados referendos autonômicos, aprovando estatutos que
conferiam aos governos departamentais poderes até então monopolizados pelo
governo central.
Enquadrando a oposição
O estatuto de Santa Cruz, por exemplo, permitia ao departamento
ter seu próprio regime eleitoral, ter o controle de titulação de terras, sobre
os serviços de telecomunicações, sobre recursos naturais, entre outros. Com a
Lei Marco de Autonomias e Descentralização, estes departamentos estão obrigados
a enquadrar seus estatutos às novas disposições legais, o que, de acordo com a
presidenta da Comissão Mista de Autonomias e Descentralização da Assembléia
Legislativa Plurinacional, a masista Betty Tejada, obrigará Santa Cruz a
modificar 40 dos 168 artigos de seu estatuto.
Tejada explicou que todos os departamentos terão até dezembro
para adequar seus estatutos ou para redigir novos. Em 5 de dezembro, o Tribunal
Constitucional será eleito por voto popular, em janeiro de 2011 tomará posse,
tendo até maio para aprovar os estatutos elaborados. Em setembro do mesmo ano,
todos os estatutos deverão ser submetidos à referendos populares.
A adequação dos estatutos deverá ser feita pelas Assembléias
Legislativas Departamentais e aprovada por dois terços dos assembleístas,
condição que não é alcançada pelos opositores à Morales em nenhum departamento,
o que os obrigará a pactuar. Para o senador masista Eduardo Maldonado, “mais do
que debater e aprovar o estatuto, esse processo deve buscar participação dos
municípios, povos indígenas e organizações da sociedade civil para conseguir um
documento altamente representativo e consensuado”. Diante de um cenário
amplamente desfavorável, três dos quatro departamentos que precisam remodelar
seus estatutos já começaram os trâmites. Apenas Santa Cruz está com o processo
parado. Os cruceños questionam, sobretudo, o artigo 145 da Lei Marco, que ordena
a suspensão de autoridades elegidas quando apresentada, contra ela, uma acusação
formal, por algum órgão de Justiça, de supostos atos de delito.
Cidob protesta
A Confederação de Povos Indígenas do Oriente Boliviano (Cidob)
iniciou uma marcha no dia 21 de junho, saindo da capital do departamento de
Beni, Trinidad, enquanto a Lei Marco estava em debate no Congresso. A
organização apresentou um documento com 13 reivindicações, entre elas a
regularização de terras, anulação de concessões florestais e mineiras em suas
áreas e autonomia plena. Antes que a marcha chegasse a La Paz, Cidob e governo
assinaram um acordo que contemplava 11 dos 13 pontos, entre eles, um
financiamento de 1,5 milhões de dólares para a regularização de terras e a
revisão de todas as concessões. O acordo suspendeu a marcha, porém o dirigente
da Cidob, Johnny Rojas, afirmou que “os projetos de desenvolvimento são uma
derrota” e que “vão denunciar ao mundo inteiro que não somos atendidos, apesar
de termos um governo indígena”.
De acordo com o ministro de Autonomias, Romero, o único
problema na negociação foi a “chantagem” imposta pela Cidob que reivindicava um
cargo no órgão público Autoridade de Fiscalização e Controle Social de Florestas
e Terras.
Próximos passos
Segundo o diretor do curso de Sociologia da Universidad Mayor
de San Andrés (UMSA), Eduardo Paz, “as leis aprovadas até aqui tratam de
modificar a superestrutura, de maneira a afiançar o atual governo”. Paz destaca
que, após conquistado o poder Executivo, as novas leis vêm para permitir uma
mudança da classe dirigente em outros níveis de poder, especialmente no
Legislativo. Passada a aprovação das cinco leis, o sociólogo acredita que o
governo impulsionará a Assembléia Legislativa Plurinacional a tratar de temas
mais diretamente ligados à vida do povo, como aposentadoria, saúde, educação e
código de trabalho.
Principais novidades das outras quatro leis
Lei de Regime Eleitoral
Regulamenta referendos e eleições, estabelecendo critérios para
aumentar a presença das mulheres e a diversidade étnica em eleições para o
Legislativo e o Judiciário. Define que os mais altos cargos do Órgão Judicial
serão eleitos por voto popular. Promove a democracia interculural, reconhecendo
como legítimos os mecanismos de democracia direta, participativa, representativa
e também comunitária. O texto convida os bolivianos a “reconhecer e respeitar as
distintas formas de deliberação democrática, diferentes critérios de
representação política e os direitos individuais e coletivos da sociedade
intercultural boliviana”. Reconhece o direito a consulta prévia, livre e
informada aos povos indígenas. De maneira inédita na Bolívia, estabelece o
segundo turno nas eleições para cargos do Executivo. Foi criticada por impor
limites às campanhas e às coberturas jornalísticas nas eleições para o Órgão
Judicial e também por estabelecer somente sete circunscrições especiais
indígenas (equivalentes a sete cadeiras no Congresso), uma vez que dentro destas
sete circunscrições existem mais de 30 povos indígenas.
Lei do Órgão Eleitoral Plurinacional (OEP)
Estabelece que o novo órgão terá um Tribunal Supremo Eleitoral,
com sede em La Paz, Tribunais Departamentais em cada um dos departamentos, além
do Serviço de Registro Cívico. O Tribunal Supremo será dirigido por sete
membros, sendo um escolhido pelo presidente e os outros seis pela Assembléia
Legislativa Plurinacional, com pelo menos dois terços dos votos. Dos sete, pelo
menos três terão que ser mulheres e dois de origem indígena originária
camponesa. Os Tribunais Departamentais serão dirigidos por cinco membros, dos
quais pelo menos duas devem ser mulheres e um de origem indígena originária
camponesa.
Lei do Órgão Judicial
Reconhece a Justiça Indígena Originária Camponesa, que goza de
igual hierarquia à Justiça ordinária, porém não define seus limites
jurisdicionais, que serão estabelecidos pela Lei de Deslinde Jurídico. Define
que os magistrados do Tribunal Superior de Justiça (TSJ) e do Tribunal
Agroambiental, além dos conselheiros do Conselho de Magistratura serão eleitos
por sufrágio universal. A Assembléia Legislativa Plurinacional selecionará uma
lista de candidatos inscritos para ir a votação, garantindo a presença de pelo
menos 50% de mulheres e de uma pessoa de origem indígena originária camponesa.
No caso do TSJ, serão eleitos um magistrado titular e um suplente por
departamento. Caso o mais votado seja homem, sua suplente deverá ser a mulher
mais votada. Caso seja mais votada uma mulher, seu suplente será o homem mais
votado.
Lei do Tribunal Constitucional
Encarregado de elucidar os conflitos entre as novas autonomias
e receber ações de inconstitucionalidade. Serão eleitos, por sufrágio universal,
sete magistrados titulares e sete suplentes, sendo que pelo menos um deverá vir
do sistema indígena originário camponês, por auto-identificação. A Assembléia
Legislativa Plurinacional selecionará previamente 28 dos candidatos inscritos,
tendo que garantir 50% de mulheres na lista.
Vinicius Mansur
correspondente em
La Paz (Bolívia)
Com a promulgação da Lei Marco de Autonomias e Descentralização
pelo presidente Evo Morales, no dia 19 de julho, foi conformado o corpo legal
básico que permitirá o pleno funcionamento do novo Estado boliviano, conforme a
Nova Constituição Política de Estado (NCPE). O prazo para a aprovação deste
corpo, também composto pelas outras quatro leis orgânicas citadas, já estava
definido nas disposições transitórias da nova Constituição: o Congresso
boliviano tinha o dia 22 de agosto como data limite para entregá-las ao
presidente.
A oposição à Morales classificou de autoritária a rapidez
empreendida ao processo de aprovação, porém, pouco pode fazer diante de uma
bancada governista que corresponde a mais de dois terços do Parlamento. Alguns
pontos das novas leis também foram taxadas de autoritárias pelos oposicionistas,
mas até mesmo a Lei Marco de Autonomias e Descentralização, alvo das maiores
polêmicas, foi considerada um avanço por Ruben Costas, governador de Santa Cruz,
departamento que reúne a mais forte oposição à Morales. “Se recorremos a
história da Bolívia e de Santa Cruz, encontraremos que nunca houve tantos
avanços em autonomia como tivemos nos últimos cinco anos”, declarou.
Autonomias e Descentralização
Denominada de Andrés Ibáñez, em homenagem ao líder da Revolução
Igualitária de 1877, em Santa Cruz, a Lei Marco de Autonomias e Descentralização
define o regime de competência e os mecanismos de coordenação entre os
diferentes níveis de governo, além de criar o Conselho Nacional de Autonomias e
do Serviço Estatal Técnico de Autonomias para acompanhar o processo de
descentralização. A nova lei concede diferentes níveis de autonomias a regiões,
departamentos, municípios e territórios indígenas autônomos, descentralizando
ações em mais de 20 áreas, como saúde, educação, transporte, obras públicas,
meio ambiente, entre outras.
De acordo com o ministro de Autonomias, Carlos Romero, a nova
lei serve para promover o desenvolvimento econômico e produtivo do país: “Uma
vez aprovada a lei de classificação de impostos, vão poder [as unidades
autônomas] exercer sua reforma tributária, o que os vai permitir aumentar seus
recursos, mas também assumir empreendimentos econômicos que os permitam dar
sustentabilidade às autonomias, captando receitas próprias e não sujeitando-se
somente às projeções de renda geradas pela exploração de recursos naturais”. Um
Fundo de Produção e Solidariedade foi criado pela nova lei para complementar a
renda dos departamentos mais pobres.
A desconcentração de poderes prevista pela NCPE e especificada
na nova lei, a princípio, pode não soar muito inovadora para a realidade
brasileira de Estado federal. Porém, significa grandes mudanças na Bolívia, país
com forte herança centralista, no qual seu povo sequer tinha o direito de eleger
os governadores antes da NCPE, sendo estes indicados diretamente pelo
presidente. Tal herança se justifica na histórica dificuldade boliviana de
forjar a unidade e a identidade nacional, fato que sempre travou a
descentralização de poderes em nome do medo da fragmentação do Estado. Ou, ao
contrário, motivou movimentos separatistas que se camuflavam sob a bandeira da
“autonomia”. O exemplo mais recente aconteceu em 2008, quando quatro
departamentos do oriente boliviano (Santa Cruz, Pando, Tarija e Beni),
governados pela oposição à Morales, realizaram, sem reconhecimento dos órgãos do
Estado nacional, os chamados referendos autonômicos, aprovando estatutos que
conferiam aos governos departamentais poderes até então monopolizados pelo
governo central.
Enquadrando a oposição
O estatuto de Santa Cruz, por exemplo, permitia ao departamento
ter seu próprio regime eleitoral, ter o controle de titulação de terras, sobre
os serviços de telecomunicações, sobre recursos naturais, entre outros. Com a
Lei Marco de Autonomias e Descentralização, estes departamentos estão obrigados
a enquadrar seus estatutos às novas disposições legais, o que, de acordo com a
presidenta da Comissão Mista de Autonomias e Descentralização da Assembléia
Legislativa Plurinacional, a masista Betty Tejada, obrigará Santa Cruz a
modificar 40 dos 168 artigos de seu estatuto.
Tejada explicou que todos os departamentos terão até dezembro
para adequar seus estatutos ou para redigir novos. Em 5 de dezembro, o Tribunal
Constitucional será eleito por voto popular, em janeiro de 2011 tomará posse,
tendo até maio para aprovar os estatutos elaborados. Em setembro do mesmo ano,
todos os estatutos deverão ser submetidos à referendos populares.
A adequação dos estatutos deverá ser feita pelas Assembléias
Legislativas Departamentais e aprovada por dois terços dos assembleístas,
condição que não é alcançada pelos opositores à Morales em nenhum departamento,
o que os obrigará a pactuar. Para o senador masista Eduardo Maldonado, “mais do
que debater e aprovar o estatuto, esse processo deve buscar participação dos
municípios, povos indígenas e organizações da sociedade civil para conseguir um
documento altamente representativo e consensuado”. Diante de um cenário
amplamente desfavorável, três dos quatro departamentos que precisam remodelar
seus estatutos já começaram os trâmites. Apenas Santa Cruz está com o processo
parado. Os cruceños questionam, sobretudo, o artigo 145 da Lei Marco, que ordena
a suspensão de autoridades elegidas quando apresentada, contra ela, uma acusação
formal, por algum órgão de Justiça, de supostos atos de delito.
Cidob protesta
A Confederação de Povos Indígenas do Oriente Boliviano (Cidob)
iniciou uma marcha no dia 21 de junho, saindo da capital do departamento de
Beni, Trinidad, enquanto a Lei Marco estava em debate no Congresso. A
organização apresentou um documento com 13 reivindicações, entre elas a
regularização de terras, anulação de concessões florestais e mineiras em suas
áreas e autonomia plena. Antes que a marcha chegasse a La Paz, Cidob e governo
assinaram um acordo que contemplava 11 dos 13 pontos, entre eles, um
financiamento de 1,5 milhões de dólares para a regularização de terras e a
revisão de todas as concessões. O acordo suspendeu a marcha, porém o dirigente
da Cidob, Johnny Rojas, afirmou que “os projetos de desenvolvimento são uma
derrota” e que “vão denunciar ao mundo inteiro que não somos atendidos, apesar
de termos um governo indígena”.
De acordo com o ministro de Autonomias, Romero, o único
problema na negociação foi a “chantagem” imposta pela Cidob que reivindicava um
cargo no órgão público Autoridade de Fiscalização e Controle Social de Florestas
e Terras.
Próximos passos
Segundo o diretor do curso de Sociologia da Universidad Mayor
de San Andrés (UMSA), Eduardo Paz, “as leis aprovadas até aqui tratam de
modificar a superestrutura, de maneira a afiançar o atual governo”. Paz destaca
que, após conquistado o poder Executivo, as novas leis vêm para permitir uma
mudança da classe dirigente em outros níveis de poder, especialmente no
Legislativo. Passada a aprovação das cinco leis, o sociólogo acredita que o
governo impulsionará a Assembléia Legislativa Plurinacional a tratar de temas
mais diretamente ligados à vida do povo, como aposentadoria, saúde, educação e
código de trabalho.
Principais novidades das outras quatro leis
Lei de Regime Eleitoral
Regulamenta referendos e eleições, estabelecendo critérios para
aumentar a presença das mulheres e a diversidade étnica em eleições para o
Legislativo e o Judiciário. Define que os mais altos cargos do Órgão Judicial
serão eleitos por voto popular. Promove a democracia interculural, reconhecendo
como legítimos os mecanismos de democracia direta, participativa, representativa
e também comunitária. O texto convida os bolivianos a “reconhecer e respeitar as
distintas formas de deliberação democrática, diferentes critérios de
representação política e os direitos individuais e coletivos da sociedade
intercultural boliviana”. Reconhece o direito a consulta prévia, livre e
informada aos povos indígenas. De maneira inédita na Bolívia, estabelece o
segundo turno nas eleições para cargos do Executivo. Foi criticada por impor
limites às campanhas e às coberturas jornalísticas nas eleições para o Órgão
Judicial e também por estabelecer somente sete circunscrições especiais
indígenas (equivalentes a sete cadeiras no Congresso), uma vez que dentro destas
sete circunscrições existem mais de 30 povos indígenas.
Lei do Órgão Eleitoral Plurinacional (OEP)
Estabelece que o novo órgão terá um Tribunal Supremo Eleitoral,
com sede em La Paz, Tribunais Departamentais em cada um dos departamentos, além
do Serviço de Registro Cívico. O Tribunal Supremo será dirigido por sete
membros, sendo um escolhido pelo presidente e os outros seis pela Assembléia
Legislativa Plurinacional, com pelo menos dois terços dos votos. Dos sete, pelo
menos três terão que ser mulheres e dois de origem indígena originária
camponesa. Os Tribunais Departamentais serão dirigidos por cinco membros, dos
quais pelo menos duas devem ser mulheres e um de origem indígena originária
camponesa.
Lei do Órgão Judicial
Reconhece a Justiça Indígena Originária Camponesa, que goza de
igual hierarquia à Justiça ordinária, porém não define seus limites
jurisdicionais, que serão estabelecidos pela Lei de Deslinde Jurídico. Define
que os magistrados do Tribunal Superior de Justiça (TSJ) e do Tribunal
Agroambiental, além dos conselheiros do Conselho de Magistratura serão eleitos
por sufrágio universal. A Assembléia Legislativa Plurinacional selecionará uma
lista de candidatos inscritos para ir a votação, garantindo a presença de pelo
menos 50% de mulheres e de uma pessoa de origem indígena originária camponesa.
No caso do TSJ, serão eleitos um magistrado titular e um suplente por
departamento. Caso o mais votado seja homem, sua suplente deverá ser a mulher
mais votada. Caso seja mais votada uma mulher, seu suplente será o homem mais
votado.
Lei do Tribunal Constitucional
Encarregado de elucidar os conflitos entre as novas autonomias
e receber ações de inconstitucionalidade. Serão eleitos, por sufrágio universal,
sete magistrados titulares e sete suplentes, sendo que pelo menos um deverá vir
do sistema indígena originário camponês, por auto-identificação. A Assembléia
Legislativa Plurinacional selecionará previamente 28 dos candidatos inscritos,
tendo que garantir 50% de mulheres na lista.
Constitucionalismo latino-americano - decisão sobre as bases americanas na Colômbia
http://www.corteconstitucional.gov.co/comunicados/No.%2040%20Comunicado%2017%20de%20agosto%20de%202010.php
sábado, 14 de agosto de 2010
Vejam o filme Vincere de Belochio
É importante para refletirmos sobre as origens do facismo na Itália e suas alianças. Como se confunde uma ambição individual numa locura coletiva. É uma crítica dura a todas formas de totalitarismo. Quem é do Rio ou de São Paulo não deixe de assistir o filme Vincere Ribas
quinta-feira, 12 de agosto de 2010
A propalada teoria da marginalidade
Folha de São Paulo, quinta-feira, 12 de agosto de 2010
ENTREVISTA JANICE PERLMAN
Morador de favela ainda luta para ser reconhecido
PRECONCEITO DE CLASSE CONTINUA ALTO, DIZ ANTROPÓLOGA AMERICANA
CLAUDIA ANTUNES
DO RIO
Os moradores das favelas do Rio são alvos preferenciais de preconceitos de classe persistentes no Brasil, a despeito da melhoria de suas condições de vida e do seu nível de escolaridade.
A constatação é da antropóloga e cientista política americana Janice Perlman, autora de "Favela: Four Decades of Living on the Edge in Rio de Janeiro" (Favela, quatro décadas vivendo à margem no Rio), lançado neste ano pela editora da Universidade de Cambridge.
O livro é resultado da segunda fase da pesquisa ela que iniciou no final dos anos 60, quando morou em três favelas cariocas. Perlman relata que a aspiração de ser "gente", de ser visto como um "ser humano digno", é comum a seus entrevistados. Ela está de volta ao Rio para iniciar estudo sobre o impacto das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora) e das obras do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) nas favelas.
FOLHA - O acesso dos moradores de favelas a serviços básicos melhorou, assim como seu nível educacional. O que falta?
JANICE PERLMAN - As favelas que eu estudei são consolidadas, e ao longo do tempo as pessoas conseguiram trazer asfalto, luz, água. Isso aconteceu tanto nas beneficiadas pelo programa Favela Bairro quanto nas demais.
Pergunto-me se talvez não houvesse mais resultado se o dinheiro investido tivesse sido usado na criação de empregos para as pessoas.
Há 40 anos, quase todos os meus entrevistados responderam que educação era a coisa mais importante para uma vida bem-sucedida.
Mas seus filhos não conseguiram empregos condizentes com um nível educacional maior. Hoje, a resposta para a mesma pergunta é: "Trabalho decente com remuneração decente".
Isso não é devido à desigualdade, porque os mais ricos têm também mais educação do que tinham antes?
Sim, mas os moradores de favela são mais atingidos. Um estudo de Valéria Pero, do Instituto de Economia da UFRJ, mostrou que a curva de aumento da renda de acordo com a escolaridade para as pessoas fora da favela é padrão, mas na favela sobe muito mais devagar.
A que a sra. atribui isso?
A três coisas. A mais pesada é o estigma de morar na favela, e as pessoas falam disso de várias maneiras. Por exemplo: quando vão a uma entrevista de emprego, vestem-se bem, falam bem, têm o nível educacional exigido. Mas a entrevista acaba quando dão o endereço.
O que causa o estigma?
Ele sempre existiu. Quando escrevi "O Mito da Marginalidade" (1976), o preconceito era igualmente forte. Havia medo de entrar nas favelas, mas dentro eram lugares sossegados.
Depois o medo diminuiu, a comunicação com a redondeza aumentou. Com a chegada do narcotráfico, porém, o morador de favela voltou a ser associado à marginalidade. De certa forma, o mito se tornou realidade, agora não só por preconceito da elite mas porque o morador ficou preso dentro de casa.
Quais são os outros dois fatores que impedem o acesso a melhores empregos?
A qualidade da educação pública acessível ao morador de favela é muito baixa. Os professores bons, que podem escolher, não se arriscam a dar aulas na Nova Brasília [no complexo do Alemão].
Houve também transformações do mercado de trabalho no Rio, com perda de empregos na indústria, nos bancos. Ficou o turismo, prejudicado pela violência.
Além disso, o emprego doméstico era o mais comum para as mulheres das favelas. Mas as jovens não querem mais. Trabalham como caixa de supermercado, às vezes por menos, mas se sentem mais dignas.
O status é maior, não?
Um tema fundamental é a importância de ser gente, a necessidade que todos têm de serem vistos como seres humanos dignos. As pessoas mais conscientes cada vez menos querem ser consideradas parte do mecanismo estrutural que faz com que uma elite possa continuar a viver de modo privilegiado.
Ainda há muito preconceito de classe no Brasil?
Muito, e valorização dos sinais de classe, como a aparência da pessoa. É uma configuração de coisas com as quais é difícil romper.
ENTREVISTA JANICE PERLMAN
Morador de favela ainda luta para ser reconhecido
PRECONCEITO DE CLASSE CONTINUA ALTO, DIZ ANTROPÓLOGA AMERICANA
CLAUDIA ANTUNES
DO RIO
Os moradores das favelas do Rio são alvos preferenciais de preconceitos de classe persistentes no Brasil, a despeito da melhoria de suas condições de vida e do seu nível de escolaridade.
A constatação é da antropóloga e cientista política americana Janice Perlman, autora de "Favela: Four Decades of Living on the Edge in Rio de Janeiro" (Favela, quatro décadas vivendo à margem no Rio), lançado neste ano pela editora da Universidade de Cambridge.
O livro é resultado da segunda fase da pesquisa ela que iniciou no final dos anos 60, quando morou em três favelas cariocas. Perlman relata que a aspiração de ser "gente", de ser visto como um "ser humano digno", é comum a seus entrevistados. Ela está de volta ao Rio para iniciar estudo sobre o impacto das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora) e das obras do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) nas favelas.
FOLHA - O acesso dos moradores de favelas a serviços básicos melhorou, assim como seu nível educacional. O que falta?
JANICE PERLMAN - As favelas que eu estudei são consolidadas, e ao longo do tempo as pessoas conseguiram trazer asfalto, luz, água. Isso aconteceu tanto nas beneficiadas pelo programa Favela Bairro quanto nas demais.
Pergunto-me se talvez não houvesse mais resultado se o dinheiro investido tivesse sido usado na criação de empregos para as pessoas.
Há 40 anos, quase todos os meus entrevistados responderam que educação era a coisa mais importante para uma vida bem-sucedida.
Mas seus filhos não conseguiram empregos condizentes com um nível educacional maior. Hoje, a resposta para a mesma pergunta é: "Trabalho decente com remuneração decente".
Isso não é devido à desigualdade, porque os mais ricos têm também mais educação do que tinham antes?
Sim, mas os moradores de favela são mais atingidos. Um estudo de Valéria Pero, do Instituto de Economia da UFRJ, mostrou que a curva de aumento da renda de acordo com a escolaridade para as pessoas fora da favela é padrão, mas na favela sobe muito mais devagar.
A que a sra. atribui isso?
A três coisas. A mais pesada é o estigma de morar na favela, e as pessoas falam disso de várias maneiras. Por exemplo: quando vão a uma entrevista de emprego, vestem-se bem, falam bem, têm o nível educacional exigido. Mas a entrevista acaba quando dão o endereço.
O que causa o estigma?
Ele sempre existiu. Quando escrevi "O Mito da Marginalidade" (1976), o preconceito era igualmente forte. Havia medo de entrar nas favelas, mas dentro eram lugares sossegados.
Depois o medo diminuiu, a comunicação com a redondeza aumentou. Com a chegada do narcotráfico, porém, o morador de favela voltou a ser associado à marginalidade. De certa forma, o mito se tornou realidade, agora não só por preconceito da elite mas porque o morador ficou preso dentro de casa.
Quais são os outros dois fatores que impedem o acesso a melhores empregos?
A qualidade da educação pública acessível ao morador de favela é muito baixa. Os professores bons, que podem escolher, não se arriscam a dar aulas na Nova Brasília [no complexo do Alemão].
Houve também transformações do mercado de trabalho no Rio, com perda de empregos na indústria, nos bancos. Ficou o turismo, prejudicado pela violência.
Além disso, o emprego doméstico era o mais comum para as mulheres das favelas. Mas as jovens não querem mais. Trabalham como caixa de supermercado, às vezes por menos, mas se sentem mais dignas.
O status é maior, não?
Um tema fundamental é a importância de ser gente, a necessidade que todos têm de serem vistos como seres humanos dignos. As pessoas mais conscientes cada vez menos querem ser consideradas parte do mecanismo estrutural que faz com que uma elite possa continuar a viver de modo privilegiado.
Ainda há muito preconceito de classe no Brasil?
Muito, e valorização dos sinais de classe, como a aparência da pessoa. É uma configuração de coisas com as quais é difícil romper.
segunda-feira, 9 de agosto de 2010
Uma nova era da política do Brasil - segmentos do PT e conservadores comentam
,Folha de São Paulo segunda-feira, 09 de agosto de 2010
Para analistas, país vive "nova era política"
Cientistas políticos afirmam que ciclo começou em 2006 e é marcado pela imposição de uma agenda social
Especialistas apontam Dilma como provável vencedora das eleições e veem campanha de Serra na direção errada
UIRÁ MACHADO
ENVIADO ESPECIAL A RECIFE (PE)
Três cientistas políticos reunidos em um dos debates mais importantes do 7º Encontro da ABCP (Associação Brasileira de Ciência Política), de 4 a 7 de agosto, defenderam a tese de que o Brasil entrou em uma "nova era política", marcada por demandas sociais e mais próxima de países desenvolvidos.
"A hipótese é que o ano de 2006 marca o começo de um novo ciclo no Brasil, em uma situação que lembra os Estados Unidos de 1932. Lá, o ciclo inaugurado por Franklin Roosevelt com o "New Deal" durou até 1968", diz André Singer, professor da USP.
Ex-secretário de Imprensa do governo Lula, Singer explica que durante esse "ciclo longo" pode haver alternância de partidos no poder.
"Determinados grupos sociais votam em bloco em um tipo de candidatura. Mas o que caracteriza o ciclo é a imposição de uma agenda à qual os principais candidatos ficam constrangidos."
Para ele, no Brasil, a agenda imposta pela sociedade é pautada pelo social.
"Isso explicaria por que Dilma Rousseff (PT), José Serra (PSDB) e Marina Silva (PV) têm como metas principais o combate à pobreza e a redução da desigualdade. Podem até divergir quanto aos meios, mas concordam que o tema é central."
Segundo Marcus Figueiredo, cientista político da Uerj, "o eleitorado aparentemente está seguindo a hipótese" levantada por Singer.
"As eleições de Fernando Henrique em 1994 e 1998 foram vitórias do Plano Real. Após a mudança em 2002, Lula iniciou uma nova era. Não se discute mais a estabilidade econômica, que é um ganho político da sociedade. Agora é a ascensão social."
Para Figueiredo, "a população aprendeu que, pela política, são possíveis mudanças sociais. Há um processo de recuperação de uma disputa política que estava ausente, com viés de classe".
O terceiro debatedor, Alberto Carlos Almeida, diretor do instituto Análise, concorda: "Os programas sociais fizeram com que houvesse a adesão dos pobres, ao passo que o mensalão afastou os mais ricos. No meu entender, essa divisão de votos entre PT e PSDB veio para ficar".
Almeida, autor do livro "A Cabeça do Brasileiro", afirma que essa "nova era em termos de disputa eleitoral e base social dos partidos" é muito semelhante à que existe em países desenvolvidos.
ELEIÇÕES 2010
Na avaliação de Almeida, o PSDB não entendeu bem o que está em jogo neste ano e "repete com sucesso uma fórmula de derrota. O PSDB está reproduzindo no Serra a imagem que Geraldo Alckmin teve nas eleições passadas -e que perdeu. Ou seja, a campanha tucana está ajudando o governo a ganhar".
Almeida também afirma não ver "hipóteses realistas" em que Dilma não vence as eleições deste ano -prognóstico, afirma, que já poderia ser feito desde o ano passado, pois depende mais da aprovação de Lula que do desempenho do candidato.
Marcus Figueiredo, autor de "A Decisão do Voto: Democracia e Racionalidade", concorda que Dilma deve ganhar. Mas, lembra ele, "campanha serve para mudar tendências". E acrescenta: "O Brasil nunca teve uma coleção de candidatos tão bons".
Para ele, "Serra teve o azar de estar em duas disputas importantíssimas na posição errada: em 2002, na eleição da mudança, ele era o candidato da situação; e agora que o eleitorado quer continuidade, ele vem pela oposição".
Para analistas, país vive "nova era política"
Cientistas políticos afirmam que ciclo começou em 2006 e é marcado pela imposição de uma agenda social
Especialistas apontam Dilma como provável vencedora das eleições e veem campanha de Serra na direção errada
UIRÁ MACHADO
ENVIADO ESPECIAL A RECIFE (PE)
Três cientistas políticos reunidos em um dos debates mais importantes do 7º Encontro da ABCP (Associação Brasileira de Ciência Política), de 4 a 7 de agosto, defenderam a tese de que o Brasil entrou em uma "nova era política", marcada por demandas sociais e mais próxima de países desenvolvidos.
"A hipótese é que o ano de 2006 marca o começo de um novo ciclo no Brasil, em uma situação que lembra os Estados Unidos de 1932. Lá, o ciclo inaugurado por Franklin Roosevelt com o "New Deal" durou até 1968", diz André Singer, professor da USP.
Ex-secretário de Imprensa do governo Lula, Singer explica que durante esse "ciclo longo" pode haver alternância de partidos no poder.
"Determinados grupos sociais votam em bloco em um tipo de candidatura. Mas o que caracteriza o ciclo é a imposição de uma agenda à qual os principais candidatos ficam constrangidos."
Para ele, no Brasil, a agenda imposta pela sociedade é pautada pelo social.
"Isso explicaria por que Dilma Rousseff (PT), José Serra (PSDB) e Marina Silva (PV) têm como metas principais o combate à pobreza e a redução da desigualdade. Podem até divergir quanto aos meios, mas concordam que o tema é central."
Segundo Marcus Figueiredo, cientista político da Uerj, "o eleitorado aparentemente está seguindo a hipótese" levantada por Singer.
"As eleições de Fernando Henrique em 1994 e 1998 foram vitórias do Plano Real. Após a mudança em 2002, Lula iniciou uma nova era. Não se discute mais a estabilidade econômica, que é um ganho político da sociedade. Agora é a ascensão social."
Para Figueiredo, "a população aprendeu que, pela política, são possíveis mudanças sociais. Há um processo de recuperação de uma disputa política que estava ausente, com viés de classe".
O terceiro debatedor, Alberto Carlos Almeida, diretor do instituto Análise, concorda: "Os programas sociais fizeram com que houvesse a adesão dos pobres, ao passo que o mensalão afastou os mais ricos. No meu entender, essa divisão de votos entre PT e PSDB veio para ficar".
Almeida, autor do livro "A Cabeça do Brasileiro", afirma que essa "nova era em termos de disputa eleitoral e base social dos partidos" é muito semelhante à que existe em países desenvolvidos.
ELEIÇÕES 2010
Na avaliação de Almeida, o PSDB não entendeu bem o que está em jogo neste ano e "repete com sucesso uma fórmula de derrota. O PSDB está reproduzindo no Serra a imagem que Geraldo Alckmin teve nas eleições passadas -e que perdeu. Ou seja, a campanha tucana está ajudando o governo a ganhar".
Almeida também afirma não ver "hipóteses realistas" em que Dilma não vence as eleições deste ano -prognóstico, afirma, que já poderia ser feito desde o ano passado, pois depende mais da aprovação de Lula que do desempenho do candidato.
Marcus Figueiredo, autor de "A Decisão do Voto: Democracia e Racionalidade", concorda que Dilma deve ganhar. Mas, lembra ele, "campanha serve para mudar tendências". E acrescenta: "O Brasil nunca teve uma coleção de candidatos tão bons".
Para ele, "Serra teve o azar de estar em duas disputas importantíssimas na posição errada: em 2002, na eleição da mudança, ele era o candidato da situação; e agora que o eleitorado quer continuidade, ele vem pela oposição".
domingo, 8 de agosto de 2010
Entrevista do cientista político Leonardo Morlino sobre a América Latina
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São Paulo, domingo, 08 de agosto de 2010
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Desigualdade prejudica a democracia, diz estudioso
Situação do Brasil é "intermediária", diz o professor Leonardo Morlino
Para presidente da Ipsa, alternância no poder é importante, mas há países democráticos com governos longos
UIRÁ MACHADO
ENVIADO A RECIFE (PE)
A desigualdade econômica e social no país e na América Latina afeta a qualidade da democracia na região, diz Leonardo Morlino, presidente da Associação Internacional de Ciência Política (Ipsa).
Para ele, ao se aproximar da Venezuela e do Irã, Lula não ajuda em nada a democracia. Manter relações com o Brasil dá a Hugo Chávez e Mahmoud Ahmadinejad, líderes de países não democráticos, um tipo de legitimidade no cenário mundial: "Lula deveria ter mais cuidado".
Professor da Universidade de Florença, Morlino, 63, abriu o 7º Encontro da Associação Brasileira de Ciência Política, realizado de 4 a 7 de agosto em Recife (PE).
Folha - O sr. está elaborando um trabalho no qual sugere oito dimensões para analisar a qualidade das democracias. Como o Brasil se sai diante desses indicadores? Leonardo Morlino - O resultado é muito óbvio, e é o mesmo para outros países da América Latina. Há na região enorme desigualdade econômica e social, e isso afeta a qualidade da democracia. A consequência política é que todo novo governo precisará olhar para essa desigualdade como uma questão central.
Mas o problema é que a desigualdade atinge de forma mais dramática a parcela da sociedade que vota menos.
Os políticos precisam ser eleitos e, para serem eleitos, precisam de votos. Mas, como a abstenção é muito alta nas camadas muito pobres, é natural que as campanhas -e governos- sejam voltadas às classes médias e altas.
O sr. diz que menos igualdade implica menos liberdade. Por esse raciocínio, o Brasil tem uma democracia ruim. Mas outros indicadores, como o pluripartidarismo e as eleições, sugerem uma democracia consolidada.
Você está certo. A análise que proponho objetiva olhar as qualidades ausentes na democracia. Embora exista uma ligação entre valores de conteúdo, como a liberdade e a igualdade, e as questões procedimentais, na verdade esses aspectos estão em tensão. Se há mais liberdade, é mais fácil aumentar a participação, de um ponto de vista procedimental, e isso permite a luta por mais igualdade.
Só que a igualdade está em muitos aspectos ligada à disponibilidade de recursos. É o caso dos direitos sociais, como Previdência, saúde. Essa rede de seguridade social tem um custo. Essa situação complexa, portanto, ao esbarrar na necessidade de recursos, se desenvolve de formas diferentes em cada país.
A democracia no Brasil tem mais ou menos qualidade que a de outros países?
Não se trata de saber como está o Brasil em relação à Alemanha, à França ou à Inglaterra, mas de perguntar o que o Brasil conquistou para sua democracia nos últimos anos. Para mim, tudo somado, houve um progresso imenso. A América Latina vivenciou dois tipos de democracia nos últimos anos.
De um lado, o Chile, uma democracia com estrutura interna, partidos e aspectos econômicos bem resolvidos. De outro, uma democracia como a da Venezuela de Chávez, onde as regras da economia podem ser violadas.
O Brasil, graças a Fernando Henrique, em primeiro lugar, foi capaz de ser uma democracia onde as regras básicas da economia são mantidas, ao mesmo tempo em que se tenta reduzir a desigualdade social. Nesse sentido, o país está numa espécie de situação intermediária.
A oposição brasileira insinuou que uma vitória de Dilma Rousseff seria prejudicial para a democracia, pois limitaria a alternância no poder.
Alternância é uma questão muito importante, mas o fato é que é possível manter governos com dez anos ou mais sem alternância e sem prejuízos democráticos. Aconteceu no Reino Unido, por exemplo. E é preciso ainda se lembrar de aspectos culturais.
Na cultura brasileira, a ideia de alternância não é tão simples, porque ela implica aceitar a competição, o desafio. O brasileiro, porém, é mais voltado para a composição, para evitar o conflito. Dito de outra forma, a alternância exclui, e o brasileiro prefere incluir, acomodar.
Isso pesa contra a democratização no país?
É preciso olhar os aspectos procedimentais. Se há pluripartidarismo de fato, então há a possibilidade de alternância. Esse traço cultural implica apenas que um partido que tenta se reeleger tem uma vantagem grande e só vai perder se houver uma situação de crise muito crítica.
A oposição também critica o governo Lula por se aproximar da Venezuela e do Irã.
É preciso dizer que a Venezuela vive um regime híbrido, e o Irã, totalitário. Costuma-se dizer que a política externa independe dos valores internos. Numa posição clássica, Lula pode fazer acordos com o Diabo, desde que defenda os interesses de seu povo. Mas a política externa contemporânea tem se tornado diferente. Numa situação mais globalizada, se algo acontecer com Irã, isso atinge o Brasil. Então Lula deveria ser mais cauteloso.
Como avalia essas atitude?
Elas não trazem nada de bom para a democracia. Com essas atitudes Lula não persegue os interesses da democracia. É inegável que há um crescimento do Brasil no cenário internacional, e o país tem direito de pleitear um espaço entre as principais nações. O próprio Lula sabe que o Brasil já desempenha papel internacional importante. Com isso, dá, ainda que indiretamente, um tipo de legitimidade para líderes como Chávez ou Ahmadinejad.
São Paulo, domingo, 08 de agosto de 2010
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Desigualdade prejudica a democracia, diz estudioso
Situação do Brasil é "intermediária", diz o professor Leonardo Morlino
Para presidente da Ipsa, alternância no poder é importante, mas há países democráticos com governos longos
UIRÁ MACHADO
ENVIADO A RECIFE (PE)
A desigualdade econômica e social no país e na América Latina afeta a qualidade da democracia na região, diz Leonardo Morlino, presidente da Associação Internacional de Ciência Política (Ipsa).
Para ele, ao se aproximar da Venezuela e do Irã, Lula não ajuda em nada a democracia. Manter relações com o Brasil dá a Hugo Chávez e Mahmoud Ahmadinejad, líderes de países não democráticos, um tipo de legitimidade no cenário mundial: "Lula deveria ter mais cuidado".
Professor da Universidade de Florença, Morlino, 63, abriu o 7º Encontro da Associação Brasileira de Ciência Política, realizado de 4 a 7 de agosto em Recife (PE).
Folha - O sr. está elaborando um trabalho no qual sugere oito dimensões para analisar a qualidade das democracias. Como o Brasil se sai diante desses indicadores? Leonardo Morlino - O resultado é muito óbvio, e é o mesmo para outros países da América Latina. Há na região enorme desigualdade econômica e social, e isso afeta a qualidade da democracia. A consequência política é que todo novo governo precisará olhar para essa desigualdade como uma questão central.
Mas o problema é que a desigualdade atinge de forma mais dramática a parcela da sociedade que vota menos.
Os políticos precisam ser eleitos e, para serem eleitos, precisam de votos. Mas, como a abstenção é muito alta nas camadas muito pobres, é natural que as campanhas -e governos- sejam voltadas às classes médias e altas.
O sr. diz que menos igualdade implica menos liberdade. Por esse raciocínio, o Brasil tem uma democracia ruim. Mas outros indicadores, como o pluripartidarismo e as eleições, sugerem uma democracia consolidada.
Você está certo. A análise que proponho objetiva olhar as qualidades ausentes na democracia. Embora exista uma ligação entre valores de conteúdo, como a liberdade e a igualdade, e as questões procedimentais, na verdade esses aspectos estão em tensão. Se há mais liberdade, é mais fácil aumentar a participação, de um ponto de vista procedimental, e isso permite a luta por mais igualdade.
Só que a igualdade está em muitos aspectos ligada à disponibilidade de recursos. É o caso dos direitos sociais, como Previdência, saúde. Essa rede de seguridade social tem um custo. Essa situação complexa, portanto, ao esbarrar na necessidade de recursos, se desenvolve de formas diferentes em cada país.
A democracia no Brasil tem mais ou menos qualidade que a de outros países?
Não se trata de saber como está o Brasil em relação à Alemanha, à França ou à Inglaterra, mas de perguntar o que o Brasil conquistou para sua democracia nos últimos anos. Para mim, tudo somado, houve um progresso imenso. A América Latina vivenciou dois tipos de democracia nos últimos anos.
De um lado, o Chile, uma democracia com estrutura interna, partidos e aspectos econômicos bem resolvidos. De outro, uma democracia como a da Venezuela de Chávez, onde as regras da economia podem ser violadas.
O Brasil, graças a Fernando Henrique, em primeiro lugar, foi capaz de ser uma democracia onde as regras básicas da economia são mantidas, ao mesmo tempo em que se tenta reduzir a desigualdade social. Nesse sentido, o país está numa espécie de situação intermediária.
A oposição brasileira insinuou que uma vitória de Dilma Rousseff seria prejudicial para a democracia, pois limitaria a alternância no poder.
Alternância é uma questão muito importante, mas o fato é que é possível manter governos com dez anos ou mais sem alternância e sem prejuízos democráticos. Aconteceu no Reino Unido, por exemplo. E é preciso ainda se lembrar de aspectos culturais.
Na cultura brasileira, a ideia de alternância não é tão simples, porque ela implica aceitar a competição, o desafio. O brasileiro, porém, é mais voltado para a composição, para evitar o conflito. Dito de outra forma, a alternância exclui, e o brasileiro prefere incluir, acomodar.
Isso pesa contra a democratização no país?
É preciso olhar os aspectos procedimentais. Se há pluripartidarismo de fato, então há a possibilidade de alternância. Esse traço cultural implica apenas que um partido que tenta se reeleger tem uma vantagem grande e só vai perder se houver uma situação de crise muito crítica.
A oposição também critica o governo Lula por se aproximar da Venezuela e do Irã.
É preciso dizer que a Venezuela vive um regime híbrido, e o Irã, totalitário. Costuma-se dizer que a política externa independe dos valores internos. Numa posição clássica, Lula pode fazer acordos com o Diabo, desde que defenda os interesses de seu povo. Mas a política externa contemporânea tem se tornado diferente. Numa situação mais globalizada, se algo acontecer com Irã, isso atinge o Brasil. Então Lula deveria ser mais cauteloso.
Como avalia essas atitude?
Elas não trazem nada de bom para a democracia. Com essas atitudes Lula não persegue os interesses da democracia. É inegável que há um crescimento do Brasil no cenário internacional, e o país tem direito de pleitear um espaço entre as principais nações. O próprio Lula sabe que o Brasil já desempenha papel internacional importante. Com isso, dá, ainda que indiretamente, um tipo de legitimidade para líderes como Chávez ou Ahmadinejad.
sábado, 7 de agosto de 2010
Maquiavel
O nascimento da ética do político
Há cerca de 5 séculos, O Príncipe marca o imaginário social
07 de agosto de 2010 | 0h 00
Leia a notícia
Comentários EmailImprimirTwitterFacebookDeliciousDiggNewsvineLinkedInLiveRedditTexto - + Renato Janine Ribeiro - O Estado de S.Paulo
Em milênios de filosofia, só dois filósofos quebraram as fronteiras da academia para que seus nomes gerassem adjetivos conhecidos de todos, até de quem não sabe quem eles foram: Platão e Maquiavel. Todos ouvimos falar em amor platônico ou em pessoas maquiavélicas. Não interessa que os especialistas se irritem porque Maquiavel não foi maquiavélico; o fato é que ele, como Platão, deixou uma marca no imaginário social.
O Príncipe, que em breve completará 500 anos, tem características notáveis. Primeira: é livro facílimo de ler. Segunda: apesar disso, não há acordo sobre o que quer dizer. Lemos com facilidade e não temos certeza do que ele pretende. Talvez porque, terceira característica, parece contradizer o resto da vida e obra do autor. Maquiavel foi um dos chefes da República de Florença, passou anos escrevendo uma grande obra republicana - os Discursos - mas somente se tornou um dos maiores pensadores da história devido a um livro curto que redigiu em poucas semanas, banido da cidade, com o fim de agradar aos novos senhores de uma Florença monárquica. Por isso nos perguntamos o que é O Príncipe: é um livro de apologia à monarquia ou uma sátira cáustica? Sustenta que os fins justificam os meios ou mostra a essência da política? Contradiz o político e pensador republicano ou nutre, com ele, uma secreta harmonia?
Vamos às questões principais do Príncipe. Concentro-me em duas. A primeira é a convicção de Maquiavel, segundo a qual metade - por assim dizer - do que nos sucede depende da fortuna. "Fortuna" inclui aqui o infortúnio - a sorte, o acaso, em suma, o que não está em nossas mãos. O máximo que conseguiremos, com muito empenho, será controlar a outra metade. Para isso, teremos de mostrar valor, que ele chama virtù. Usamos a palavra italiana, que significa "virtude", justamente porque é o contrário do que costumamos chamar de virtude. Sua virtù nada tem de moral. Aqui começa o problema. Enquanto estávamos só na estatística, no fifty-fifty fortuna vs. ação planejada e deliberada, tudo bem. Mas quando Maquiavel diz que, para reduzir o quinhão da fortuna, o homem tem de ser um autêntico "vir" (a palavra latina para varão, macho), ele conclui que não poderá seguir a moral cristã.
Passemos à segunda questão. Muitos, diz o autor, trataram de Estados ideais e reis justos, mas tais entes não existem ou não subsistem. Para tratar de "coisas que prestem", falará dos Estados reais e de como funcionam. Seu capítulo 15 é citado como a certidão de nascimento da ciência política: em vez de discutir como as coisas deveriam ser, pensar como realmente são. Não é fortuito que seja Fernando Henrique Cardoso - cientista político, que por coincidência já foi chamado de príncipe da nossa sociologia - quem redija o prefácio, ao qual se segue uma introdução de Antony Grafton, que tem por única falha, a meu ver, ignorar a ótima bibliografia que não foi escrita em inglês: Max Weber, Merleau-Ponty, Claude Lefort e, dos brasileiros, Newton Bignotto. De toda forma, essa tradução fluente há de concorrer com a edição, muito bem cuidada, que temos do Príncipe pela editora Martins Fontes.
Para o leitor, não haveria problema em Maquiavel afirmar que muito de nossa vida escapa a nosso controle, nem que pretenda fazer ciência e não moral. O começo de cada uma de suas duas teses é tranquilo. O que choca são as consequências. Primeira: como controlar o máximo possível de nossa vida política? Será que "os fins justificam os meios"? Consultei o Google: só em português, essa expressão aparece 16.500 vezes junto a seu nome. O curioso é que Maquiavel nunca disse isso.
Daí a segunda consequência: ele teria aconselhado os príncipes a mentir, fazer o mal, faltar à palavra, sistematicamente. Contudo, diz ele, o príncipe deve fazer o bem sempre que possível, e usar do mal só quando necessário. O que dá a Maquiavel a fama de amoral é essa dupla ressalva: não fazer o bem sempre, mas quando possível. Sua análise do poder, que é uma festa para a ciência, é uma preocupação para a moral - a tal ponto que em inglês um dos nomes do diabo, Old Nick, derivaria de seu prenome Nicolau.
Como controlar nosso destino, como reduzir o quinhão da fortuna? Não há questão mais atual. No penúltimo e vital capítulo do livro, o autor explica. Há dois tipos de homem, o cauteloso e o impetuoso. Certas épocas requerem cautela (rispetto), outras, impetuosidade. O ideal seria o homem adaptar-se à conjuntura. Este seria o homem prudente: na época se dizia que "o homem sábio (vir sapiens) dominará os astros", isto é, a fortuna. Isso se lê na medalha de Afonso V de Aragão. O "vir sapiens" é o homem prudente com virtù. Maquiavel exorta o príncipe: deve ser plástico, mutável, bom quando possível, mau se necessário, mas, sobretudo, cauteloso ou açodado conforme a ocasião. Se Cesar Borgia perdeu, foi porque não soube mudar quando os tempos assim o exigiram. O problema é que essa plasticidade do príncipe é quase impossível. Daí, um horizonte trágico: por mais que tentemos governar as circunstâncias, podemos perder.
Maquiavel está na origem da "ética do político", diferente da ética do cidadão privado, que FHC citava tanto na presidência da República e que foi teorizada por Weber. Mas o notável no pensador florentino é que, sabe ele, essa ética não é a dos resultados, a do sucesso. Pode resultar em fracasso - como no caso de Cesar Borgia. Nem por isso a política é menos nobre. Ser político não é só vencer. É saber fazê-lo com virtù - capacidade, ação deliberada e, também, uma certa honra. Talvez O Príncipe seja o mais belo elogio da política.
RENATO JANINE RIBEIRO É PROFESSOR TITULAR DE ÉTICA E FILOSOFIA POLÍTICA DA USP
Há cerca de 5 séculos, O Príncipe marca o imaginário social
07 de agosto de 2010 | 0h 00
Leia a notícia
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Em milênios de filosofia, só dois filósofos quebraram as fronteiras da academia para que seus nomes gerassem adjetivos conhecidos de todos, até de quem não sabe quem eles foram: Platão e Maquiavel. Todos ouvimos falar em amor platônico ou em pessoas maquiavélicas. Não interessa que os especialistas se irritem porque Maquiavel não foi maquiavélico; o fato é que ele, como Platão, deixou uma marca no imaginário social.
O Príncipe, que em breve completará 500 anos, tem características notáveis. Primeira: é livro facílimo de ler. Segunda: apesar disso, não há acordo sobre o que quer dizer. Lemos com facilidade e não temos certeza do que ele pretende. Talvez porque, terceira característica, parece contradizer o resto da vida e obra do autor. Maquiavel foi um dos chefes da República de Florença, passou anos escrevendo uma grande obra republicana - os Discursos - mas somente se tornou um dos maiores pensadores da história devido a um livro curto que redigiu em poucas semanas, banido da cidade, com o fim de agradar aos novos senhores de uma Florença monárquica. Por isso nos perguntamos o que é O Príncipe: é um livro de apologia à monarquia ou uma sátira cáustica? Sustenta que os fins justificam os meios ou mostra a essência da política? Contradiz o político e pensador republicano ou nutre, com ele, uma secreta harmonia?
Vamos às questões principais do Príncipe. Concentro-me em duas. A primeira é a convicção de Maquiavel, segundo a qual metade - por assim dizer - do que nos sucede depende da fortuna. "Fortuna" inclui aqui o infortúnio - a sorte, o acaso, em suma, o que não está em nossas mãos. O máximo que conseguiremos, com muito empenho, será controlar a outra metade. Para isso, teremos de mostrar valor, que ele chama virtù. Usamos a palavra italiana, que significa "virtude", justamente porque é o contrário do que costumamos chamar de virtude. Sua virtù nada tem de moral. Aqui começa o problema. Enquanto estávamos só na estatística, no fifty-fifty fortuna vs. ação planejada e deliberada, tudo bem. Mas quando Maquiavel diz que, para reduzir o quinhão da fortuna, o homem tem de ser um autêntico "vir" (a palavra latina para varão, macho), ele conclui que não poderá seguir a moral cristã.
Passemos à segunda questão. Muitos, diz o autor, trataram de Estados ideais e reis justos, mas tais entes não existem ou não subsistem. Para tratar de "coisas que prestem", falará dos Estados reais e de como funcionam. Seu capítulo 15 é citado como a certidão de nascimento da ciência política: em vez de discutir como as coisas deveriam ser, pensar como realmente são. Não é fortuito que seja Fernando Henrique Cardoso - cientista político, que por coincidência já foi chamado de príncipe da nossa sociologia - quem redija o prefácio, ao qual se segue uma introdução de Antony Grafton, que tem por única falha, a meu ver, ignorar a ótima bibliografia que não foi escrita em inglês: Max Weber, Merleau-Ponty, Claude Lefort e, dos brasileiros, Newton Bignotto. De toda forma, essa tradução fluente há de concorrer com a edição, muito bem cuidada, que temos do Príncipe pela editora Martins Fontes.
Para o leitor, não haveria problema em Maquiavel afirmar que muito de nossa vida escapa a nosso controle, nem que pretenda fazer ciência e não moral. O começo de cada uma de suas duas teses é tranquilo. O que choca são as consequências. Primeira: como controlar o máximo possível de nossa vida política? Será que "os fins justificam os meios"? Consultei o Google: só em português, essa expressão aparece 16.500 vezes junto a seu nome. O curioso é que Maquiavel nunca disse isso.
Daí a segunda consequência: ele teria aconselhado os príncipes a mentir, fazer o mal, faltar à palavra, sistematicamente. Contudo, diz ele, o príncipe deve fazer o bem sempre que possível, e usar do mal só quando necessário. O que dá a Maquiavel a fama de amoral é essa dupla ressalva: não fazer o bem sempre, mas quando possível. Sua análise do poder, que é uma festa para a ciência, é uma preocupação para a moral - a tal ponto que em inglês um dos nomes do diabo, Old Nick, derivaria de seu prenome Nicolau.
Como controlar nosso destino, como reduzir o quinhão da fortuna? Não há questão mais atual. No penúltimo e vital capítulo do livro, o autor explica. Há dois tipos de homem, o cauteloso e o impetuoso. Certas épocas requerem cautela (rispetto), outras, impetuosidade. O ideal seria o homem adaptar-se à conjuntura. Este seria o homem prudente: na época se dizia que "o homem sábio (vir sapiens) dominará os astros", isto é, a fortuna. Isso se lê na medalha de Afonso V de Aragão. O "vir sapiens" é o homem prudente com virtù. Maquiavel exorta o príncipe: deve ser plástico, mutável, bom quando possível, mau se necessário, mas, sobretudo, cauteloso ou açodado conforme a ocasião. Se Cesar Borgia perdeu, foi porque não soube mudar quando os tempos assim o exigiram. O problema é que essa plasticidade do príncipe é quase impossível. Daí, um horizonte trágico: por mais que tentemos governar as circunstâncias, podemos perder.
Maquiavel está na origem da "ética do político", diferente da ética do cidadão privado, que FHC citava tanto na presidência da República e que foi teorizada por Weber. Mas o notável no pensador florentino é que, sabe ele, essa ética não é a dos resultados, a do sucesso. Pode resultar em fracasso - como no caso de Cesar Borgia. Nem por isso a política é menos nobre. Ser político não é só vencer. É saber fazê-lo com virtù - capacidade, ação deliberada e, também, uma certa honra. Talvez O Príncipe seja o mais belo elogio da política.
RENATO JANINE RIBEIRO É PROFESSOR TITULAR DE ÉTICA E FILOSOFIA POLÍTICA DA USP
O que é a democracia
ELPAIS.com > Cultura > Babelia 13 de 25 en Babelia anterior siguiente ANÁLISIS: PENSAMIENTO
La calidad de la vida democrática
ENRIQUE GIL CALVO 07/08/2010
Qué, cómo y por qué aumenta la degradación de la salud del sistema democrático
Desde hace tiempo, los barómetros del CIS demuestran que a los españoles les preocupa casi tanto la calidad democrática de vida como el nivel económico de vida. Si los dos primeros lugares del ranking de problemas percibidos están ocupados por el paro y la crisis, el tercer rango lo ocupa "la clase política". Pero tampoco en esto es España ninguna excepción. En realidad, por todo Occidente predomina la misma visión negativa sobre el estado de salud de nuestras democracias, con pocas variaciones entre un clima nórdico, anglosajón y germánico algo menos pesimista que nuestro sur latino mediterráneo (Francia, España, Italia
Los tres grandes retos del Estado del bienestar
Gösta Esping-Andersen y Bruno Palier
Traducción de Pau Joan Hernández
Ariel. Barcelona, 2010
126 páginas
23 euros
Cultura de la legalidad. Instituciones, procesos y estructuras
Manuel Villoria Mendieta y María Isabel Wences Simón (editores)
Los Libros de la Catarata. Madrid, 2010
264 páginas
17 euros
La legitimidad democrática. Imparcialidad, reflexividad y proximidad
Pierre Rosanvallon
Traducción de Heber Cardoso
Paidós. Barcelona, 2010
317 páginas
28 euros.
Pensar institucionalmente
Hugh Heclo
Traducción de Albino Santos Mosquera
Paidós. Barcelona, 2010
350 páginas 22 euros
Enrique Gil Calvo
Otro gran problema de las democracias actuales es el ascenso de los delitos de cuello blanco, tantas veces facilitados por la tolerancia o el encubrimiento
...), área que se lleva la palma en materia de descrédito y desconfianza sobre la calidad de la democracia.
¿A qué factores cabe atribuir este síndrome de alienación democrática, que se manifiesta por una aguda crisis de desconfianza hacia nuestras respectivas clases políticas? Hace poco comenté aquí el reciente diagnóstico de Manuel Castells (Comunicación y poder, Alianza, Madrid, 2009), que culpa a los medios como desencadenantes de la crisis de la democracia, dado el clima de crispación propiciado por el fuego cruzado de informaciones escandalosas. Una visión que resulta muy común, pues todos hemos incurrido en el error de perspectiva de matar al mensajero, culpando a la clase mediática de los desmanes de la clase política. Pero más allá del crispado debate de la confrontación política, lo cierto es que la realidad de nuestras democracias deja mucho que desear, frustrando amargamente las expectativas que los ciudadanos nos creemos con derecho a abrigar. Pues lo más indignante es que mientras los políticos se pelean ante las cámaras de televisión, los problemas reales de los ciudadanos siguen sin resolverse. ¿Cuáles son los verdaderos males que degradan nuestra calidad de vida pública? ¿Cómo explicar las deficiencias y los fallos de la democracia realmente existente? He aquí algunos libros recientes que exploran sus causas ocultas o últimas, investigadas a diferentes niveles de profundidad.
Una primera visión de tipo infraestructural nos la proporciona Gösta Esping-Andersen, el sociólogo danés hoy afincado en la universidad catalana que, a partir de su célebre libro Los tres mundos del Estado del bienestar (1990), pasa por ser la primera autoridad científica en el análisis del llamado modelo social europeo. Algo que resulta determinante para el problema que nos ocupa, pues la calidad del nivel de vida ejerce un efecto directo sobre el nivel de calidad de la democracia, entendida como régimen garante de los derechos universales. De ahí la importancia del Estado de bienestar, encargado de proteger los derechos sociales de los ciudadanos. Y si estos se encuentran insatisfechos con la democracia es también porque consideran que sus derechos no se están viendo reconocidos como debieran. Pues bien, en esta línea, el último libro de Esping-Anderson (que compila un ciclo de tres conferencias pronunciadas en París, presentadas por el investigador del CNRS Bruno Palier) identifica los tres peores agujeros negros que amenazan el futuro del modelo social europeo: la creciente incapacidad femenina para ejercer el derecho a formar familia, la creciente desigualdad de oportunidades educativas entre los jóvenes y la creciente incapacidad social para garantizar una vejez digna.
Además de la dificultad para ejercer los propios derechos, el otro gran problema de las democracias actuales es el preocupante incremento de las violaciones de la legalidad, y no me refiero tanto a la criminalidad organizada (mafias, terrorismo global, etcétera) como al rampante ascenso de los delitos de cuello blanco, tantas veces facilitados por la tolerancia o el encubrimiento de la clase política: clientelismo, corrupción, fraudes, evasión de impuestos y capitales, economía negra o sumergida, etcétera. Una evidente vulneración de la legalidad que además parece haberse acelerado como efecto extraordinario de la crisis financiera occidental. Y lo peor no es eso, pues aún resulta más preocupante el clima de impunidad, resignación y tolerancia social con que semejante ascenso de la ilegalidad es contemplado por la ciudadanía como si fuera una fatalidad inevitable. Algo muy peligroso, pues a partir de autores como O'Donnell (Disonancias, Paidós, Prometeo, Buenos Aires, 2007) o Morlino (Democracias y democratizaciones, CIS, Madrid, 2009), cabe sostener que la violación del imperio de la ley es quizás el factor más corrosivo de la calidad democrática.
De ahí el interés del libro compilado por Manuel Villoria (uno de nuestros primeros expertos en corrupción política, corresponsable de la sección española de Transparencia Internacional), que enfoca la cuestión no tanto desde el punto de vista de las subculturas delincuentes como al revés: desde la óptica de la ausencia (el déficit o al menos la debilidad) de una tan necesaria como imprescindible cultura de la legalidad. A diferencia de las democracias de religión protestante, donde se tiene a gala el cumplimiento de las leyes, en las democracias católicas, por el contrario, se hace ostentación del incumplimiento normativo, como si cumplir la ley fuera cosa de pardillos incapaces de evitar hacer el primo. Y para construir esa cultura de la legalidad sin la cual no hay calidad democrática posible, el libro compilado por Villoria explora sus diversas dimensiones señaladas por autores como el citado O'Donnell: rendición de cuentas (accountability), transparencia, autoridades reguladoras, códigos de buen gobierno, etcétera.
A partir de aquí accedemos a un nivel superior de abstracción, como es la progresiva pérdida de legitimidad que aqueja a nuestras democracias. De las cinco dimensiones de calidad democrática defini-das por Morlino, libertad, igualdad, legalidad, responsabilidad y legitimidad, esta última es la más difícil de definir y analizar. A ello le dedica un extenso y denso libro Pierre Rosanvallon, catedrático de filosofía política en el Colegio de Francia. Parte de una constatación: las democracias poseen una doble columna vertebral, los cuerpos de representantes políticos, elegidos partidistamente por los ciudadanos, y los cuerpos de administradores públicos, elegidos imparcialmente por tribunales especializados. Pero ambas corporaciones, la de políticos y la de funcionarios, están igualmente deslegitimadas por su pérdida del crédito y la confianza de los ciudadanos. ¿Y cómo pueden recobrar su legitimidad perdida? No como hacen hoy, entregándose al uso y abuso de las técnicas del marketing mediático y empresarial, sino sometiéndose a los tres principios enunciados por el subtítulo del libro.
La imparcialidad procede de aquellas autoridades independientes, en tanto que no electas, cuya función es exigir responsabilidades legales (como en O'Donnell y Morlino: accountability, rendición de cuentas) tanto a políticos como a funcionarios. La reflexividad alude al supremo valor jurisdiccional que deben garantizar tribunales como el Constitucional y otros organismos análogos, encargados de trascender el poder normativo y constituyente, emanado de la voluntad popular, para articularlo de forma racional y coherente. Pero si estos dos primeros principios (imparcialidad y reflexividad) aluden a la dialéctica entre democracia y legalidad, el tercero (proximidad) se refiere a la relación entre los ciudadanos (o la sociedad civil) y los poderes públicos (ejercidos por políticos y funcionarios). Es la parte más interesante del libro, donde Rosanvallon cuestiona la vigente metodología generalista y homogeneizadora para proponer un modelo basado en la personalización, la singularidad localizada y la interacción reticular. Todo ello mediado por los medios informativos, creadores de la realidad percibida, cuya interferencia potencialmente perversa podría ser salvada, según Rosanvallon, por comisiones tripartitas constituidas caso por caso entre políticos, funcionarios (o técnicos) y periodistas.
Finalmente, queda el sustrato más profundo del que surge la degradación democrática, manifestada por la desarticulación de su tejido institucional, erosionado por la rapacidad oportunista del homo economicus. Es la denuncia que formula Hugh Heclo (un pensador estadounidense de tradición metodista cuya obra también se ha centrado en la filosofía política), pues si las instituciones se ven cada vez más deslegitimadas y desautorizadas por la desconfianza ciudadana es porque sus miembros personales actúan con racionalidad individualista en lugar de hacerlo con racionalidad institucional. Una denuncia paralela a la que otros autores formulan contra el declive del capital social y la confianza pública, que redefine la calidad de la vida democrática en términos de un problema de acción colectiva. Pero diagnosticar acertadamente la enfermedad dista mucho de hallarle remedio, y para ello el moralismo de Hugh Heclo no sirve de mucho.
La calidad de la vida democrática
ENRIQUE GIL CALVO 07/08/2010
Qué, cómo y por qué aumenta la degradación de la salud del sistema democrático
Desde hace tiempo, los barómetros del CIS demuestran que a los españoles les preocupa casi tanto la calidad democrática de vida como el nivel económico de vida. Si los dos primeros lugares del ranking de problemas percibidos están ocupados por el paro y la crisis, el tercer rango lo ocupa "la clase política". Pero tampoco en esto es España ninguna excepción. En realidad, por todo Occidente predomina la misma visión negativa sobre el estado de salud de nuestras democracias, con pocas variaciones entre un clima nórdico, anglosajón y germánico algo menos pesimista que nuestro sur latino mediterráneo (Francia, España, Italia
Los tres grandes retos del Estado del bienestar
Gösta Esping-Andersen y Bruno Palier
Traducción de Pau Joan Hernández
Ariel. Barcelona, 2010
126 páginas
23 euros
Cultura de la legalidad. Instituciones, procesos y estructuras
Manuel Villoria Mendieta y María Isabel Wences Simón (editores)
Los Libros de la Catarata. Madrid, 2010
264 páginas
17 euros
La legitimidad democrática. Imparcialidad, reflexividad y proximidad
Pierre Rosanvallon
Traducción de Heber Cardoso
Paidós. Barcelona, 2010
317 páginas
28 euros.
Pensar institucionalmente
Hugh Heclo
Traducción de Albino Santos Mosquera
Paidós. Barcelona, 2010
350 páginas 22 euros
Enrique Gil Calvo
Otro gran problema de las democracias actuales es el ascenso de los delitos de cuello blanco, tantas veces facilitados por la tolerancia o el encubrimiento
...), área que se lleva la palma en materia de descrédito y desconfianza sobre la calidad de la democracia.
¿A qué factores cabe atribuir este síndrome de alienación democrática, que se manifiesta por una aguda crisis de desconfianza hacia nuestras respectivas clases políticas? Hace poco comenté aquí el reciente diagnóstico de Manuel Castells (Comunicación y poder, Alianza, Madrid, 2009), que culpa a los medios como desencadenantes de la crisis de la democracia, dado el clima de crispación propiciado por el fuego cruzado de informaciones escandalosas. Una visión que resulta muy común, pues todos hemos incurrido en el error de perspectiva de matar al mensajero, culpando a la clase mediática de los desmanes de la clase política. Pero más allá del crispado debate de la confrontación política, lo cierto es que la realidad de nuestras democracias deja mucho que desear, frustrando amargamente las expectativas que los ciudadanos nos creemos con derecho a abrigar. Pues lo más indignante es que mientras los políticos se pelean ante las cámaras de televisión, los problemas reales de los ciudadanos siguen sin resolverse. ¿Cuáles son los verdaderos males que degradan nuestra calidad de vida pública? ¿Cómo explicar las deficiencias y los fallos de la democracia realmente existente? He aquí algunos libros recientes que exploran sus causas ocultas o últimas, investigadas a diferentes niveles de profundidad.
Una primera visión de tipo infraestructural nos la proporciona Gösta Esping-Andersen, el sociólogo danés hoy afincado en la universidad catalana que, a partir de su célebre libro Los tres mundos del Estado del bienestar (1990), pasa por ser la primera autoridad científica en el análisis del llamado modelo social europeo. Algo que resulta determinante para el problema que nos ocupa, pues la calidad del nivel de vida ejerce un efecto directo sobre el nivel de calidad de la democracia, entendida como régimen garante de los derechos universales. De ahí la importancia del Estado de bienestar, encargado de proteger los derechos sociales de los ciudadanos. Y si estos se encuentran insatisfechos con la democracia es también porque consideran que sus derechos no se están viendo reconocidos como debieran. Pues bien, en esta línea, el último libro de Esping-Anderson (que compila un ciclo de tres conferencias pronunciadas en París, presentadas por el investigador del CNRS Bruno Palier) identifica los tres peores agujeros negros que amenazan el futuro del modelo social europeo: la creciente incapacidad femenina para ejercer el derecho a formar familia, la creciente desigualdad de oportunidades educativas entre los jóvenes y la creciente incapacidad social para garantizar una vejez digna.
Además de la dificultad para ejercer los propios derechos, el otro gran problema de las democracias actuales es el preocupante incremento de las violaciones de la legalidad, y no me refiero tanto a la criminalidad organizada (mafias, terrorismo global, etcétera) como al rampante ascenso de los delitos de cuello blanco, tantas veces facilitados por la tolerancia o el encubrimiento de la clase política: clientelismo, corrupción, fraudes, evasión de impuestos y capitales, economía negra o sumergida, etcétera. Una evidente vulneración de la legalidad que además parece haberse acelerado como efecto extraordinario de la crisis financiera occidental. Y lo peor no es eso, pues aún resulta más preocupante el clima de impunidad, resignación y tolerancia social con que semejante ascenso de la ilegalidad es contemplado por la ciudadanía como si fuera una fatalidad inevitable. Algo muy peligroso, pues a partir de autores como O'Donnell (Disonancias, Paidós, Prometeo, Buenos Aires, 2007) o Morlino (Democracias y democratizaciones, CIS, Madrid, 2009), cabe sostener que la violación del imperio de la ley es quizás el factor más corrosivo de la calidad democrática.
De ahí el interés del libro compilado por Manuel Villoria (uno de nuestros primeros expertos en corrupción política, corresponsable de la sección española de Transparencia Internacional), que enfoca la cuestión no tanto desde el punto de vista de las subculturas delincuentes como al revés: desde la óptica de la ausencia (el déficit o al menos la debilidad) de una tan necesaria como imprescindible cultura de la legalidad. A diferencia de las democracias de religión protestante, donde se tiene a gala el cumplimiento de las leyes, en las democracias católicas, por el contrario, se hace ostentación del incumplimiento normativo, como si cumplir la ley fuera cosa de pardillos incapaces de evitar hacer el primo. Y para construir esa cultura de la legalidad sin la cual no hay calidad democrática posible, el libro compilado por Villoria explora sus diversas dimensiones señaladas por autores como el citado O'Donnell: rendición de cuentas (accountability), transparencia, autoridades reguladoras, códigos de buen gobierno, etcétera.
A partir de aquí accedemos a un nivel superior de abstracción, como es la progresiva pérdida de legitimidad que aqueja a nuestras democracias. De las cinco dimensiones de calidad democrática defini-das por Morlino, libertad, igualdad, legalidad, responsabilidad y legitimidad, esta última es la más difícil de definir y analizar. A ello le dedica un extenso y denso libro Pierre Rosanvallon, catedrático de filosofía política en el Colegio de Francia. Parte de una constatación: las democracias poseen una doble columna vertebral, los cuerpos de representantes políticos, elegidos partidistamente por los ciudadanos, y los cuerpos de administradores públicos, elegidos imparcialmente por tribunales especializados. Pero ambas corporaciones, la de políticos y la de funcionarios, están igualmente deslegitimadas por su pérdida del crédito y la confianza de los ciudadanos. ¿Y cómo pueden recobrar su legitimidad perdida? No como hacen hoy, entregándose al uso y abuso de las técnicas del marketing mediático y empresarial, sino sometiéndose a los tres principios enunciados por el subtítulo del libro.
La imparcialidad procede de aquellas autoridades independientes, en tanto que no electas, cuya función es exigir responsabilidades legales (como en O'Donnell y Morlino: accountability, rendición de cuentas) tanto a políticos como a funcionarios. La reflexividad alude al supremo valor jurisdiccional que deben garantizar tribunales como el Constitucional y otros organismos análogos, encargados de trascender el poder normativo y constituyente, emanado de la voluntad popular, para articularlo de forma racional y coherente. Pero si estos dos primeros principios (imparcialidad y reflexividad) aluden a la dialéctica entre democracia y legalidad, el tercero (proximidad) se refiere a la relación entre los ciudadanos (o la sociedad civil) y los poderes públicos (ejercidos por políticos y funcionarios). Es la parte más interesante del libro, donde Rosanvallon cuestiona la vigente metodología generalista y homogeneizadora para proponer un modelo basado en la personalización, la singularidad localizada y la interacción reticular. Todo ello mediado por los medios informativos, creadores de la realidad percibida, cuya interferencia potencialmente perversa podría ser salvada, según Rosanvallon, por comisiones tripartitas constituidas caso por caso entre políticos, funcionarios (o técnicos) y periodistas.
Finalmente, queda el sustrato más profundo del que surge la degradación democrática, manifestada por la desarticulación de su tejido institucional, erosionado por la rapacidad oportunista del homo economicus. Es la denuncia que formula Hugh Heclo (un pensador estadounidense de tradición metodista cuya obra también se ha centrado en la filosofía política), pues si las instituciones se ven cada vez más deslegitimadas y desautorizadas por la desconfianza ciudadana es porque sus miembros personales actúan con racionalidad individualista en lugar de hacerlo con racionalidad institucional. Una denuncia paralela a la que otros autores formulan contra el declive del capital social y la confianza pública, que redefine la calidad de la vida democrática en términos de un problema de acción colectiva. Pero diagnosticar acertadamente la enfermedad dista mucho de hallarle remedio, y para ello el moralismo de Hugh Heclo no sirve de mucho.
quarta-feira, 4 de agosto de 2010
Sociologia e a Matemática
Folha de São Paulo, quarta-feira, 04 de agosto de 2010
Sociologia precisa de equações, dizem prêmios Nobel
Matemáticos laureados em economia estão em SP; entre eles, John Nash, que inspirou "Uma Mente Brilhante"
Pesquisadores usam matemática avançada da teoria dos jogos para explicar desde eleições e história até guerras
Luiz Carlos Murauskas/Folhapress
Hoje recuperado da esquizofrenia, John Nash chega à USP
RICARDO MIOTO
DE SÃO PAULO
Temas: eleições, diplomacia, história. Os especialistas: matemáticos -todos ganhadores do Nobel de economia, sendo um deles John Nash, que inspirou o filme "Uma Mente Brilhante".
Nada de estranho, dizem. Eles usam a teoria dos jogos -o estudo matemático sobre como pessoas escolhem estratégias-, e acham que ela será muito útil às ciências sociais neste século.
"O tratamento matemático precisa de pressupostos claros, e isso leva a conclusões por consequência lógica", diz Robert Aumann, da Universidade Hebraica (Israel).
"Com palavras, você se convence de qualquer coisa. A matemática promove uma disciplina de pensamento."
Nash, aos 82, esteve ontem na USP para o encontro que reuniu cientistas que trabalham com teoria dos jogos. Recuperado da esquizofrenia, diz que foi hospitalizado contra a vontade e ataca a eficácia do procedimento.
A área que Nash ajudou a fundar permite comparar, por exemplo, tipos de votação. Se as pessoas votam em apenas um deputado, é mais fácil ser eleito com um discurso específico, focado em um grupo de eleitores (defendendo direitos gays ou maiores salários para policiais).
Se os eleitores fazem uma lista com três nomes, é preciso o triplo de votos para vencer. Discursos de interesse geral (como crescimento econômico ou menos impostos) tendem a ter mais sucesso.
Nesse caso, é fácil prever o resultado da modelagem matemática. Em sistemas sofisticados, os resultados de mudanças nas regras do jogo são mais imprevisíveis. A matemática, aí, faz previsões que a reflexão não atinge.
A ideia não é desprezar as ciências sociais, diz Roger Myerson, da Universidade de Chicago. "Li autores de política. Ele mostram quais questões institucionais importantes estudar." Ele pesquisou a República de Weimar, da Alemanha pré-Segunda Guerra. O sistema político era generoso com quem adotasse estratégias autoritárias.
Nash diz que gostou do filme sobre sua vida, mas que ele não é fidedigno. A cena em que está no bar e as garotas do local o fazem ter um insight é invenção do roteirista. "E ele ganhou um Oscar."
Sociologia precisa de equações, dizem prêmios Nobel
Matemáticos laureados em economia estão em SP; entre eles, John Nash, que inspirou "Uma Mente Brilhante"
Pesquisadores usam matemática avançada da teoria dos jogos para explicar desde eleições e história até guerras
Luiz Carlos Murauskas/Folhapress
Hoje recuperado da esquizofrenia, John Nash chega à USP
RICARDO MIOTO
DE SÃO PAULO
Temas: eleições, diplomacia, história. Os especialistas: matemáticos -todos ganhadores do Nobel de economia, sendo um deles John Nash, que inspirou o filme "Uma Mente Brilhante".
Nada de estranho, dizem. Eles usam a teoria dos jogos -o estudo matemático sobre como pessoas escolhem estratégias-, e acham que ela será muito útil às ciências sociais neste século.
"O tratamento matemático precisa de pressupostos claros, e isso leva a conclusões por consequência lógica", diz Robert Aumann, da Universidade Hebraica (Israel).
"Com palavras, você se convence de qualquer coisa. A matemática promove uma disciplina de pensamento."
Nash, aos 82, esteve ontem na USP para o encontro que reuniu cientistas que trabalham com teoria dos jogos. Recuperado da esquizofrenia, diz que foi hospitalizado contra a vontade e ataca a eficácia do procedimento.
A área que Nash ajudou a fundar permite comparar, por exemplo, tipos de votação. Se as pessoas votam em apenas um deputado, é mais fácil ser eleito com um discurso específico, focado em um grupo de eleitores (defendendo direitos gays ou maiores salários para policiais).
Se os eleitores fazem uma lista com três nomes, é preciso o triplo de votos para vencer. Discursos de interesse geral (como crescimento econômico ou menos impostos) tendem a ter mais sucesso.
Nesse caso, é fácil prever o resultado da modelagem matemática. Em sistemas sofisticados, os resultados de mudanças nas regras do jogo são mais imprevisíveis. A matemática, aí, faz previsões que a reflexão não atinge.
A ideia não é desprezar as ciências sociais, diz Roger Myerson, da Universidade de Chicago. "Li autores de política. Ele mostram quais questões institucionais importantes estudar." Ele pesquisou a República de Weimar, da Alemanha pré-Segunda Guerra. O sistema político era generoso com quem adotasse estratégias autoritárias.
Nash diz que gostou do filme sobre sua vida, mas que ele não é fidedigno. A cena em que está no bar e as garotas do local o fazem ter um insight é invenção do roteirista. "E ele ganhou um Oscar."
segunda-feira, 2 de agosto de 2010
Brasil e a OMC
Entrevista: Para a professora Vera Thorstensen, país deve firmar tratados com grandes potências para exportar mais"Brasil precisa fazer mais acordos comerciais"
Assis Moreira, de Genebra
02/08/2010Valor
Vera Thorstensen: "Um dos temas atualmente mais relevantes da política comercial do Brasil é definir qual sua estratégia em relação a China"
A dinâmica atual do comércio internacional não está mais na Organização Mundial do Comércio (OMC) e sim nos acordos regionais. Já há 267 notificados na OMC e 100 estão em negociação, com troca de preferências entre seus membros. O Brasil precisa buscar acordos com as grandes potências e não apenas com países em desenvolvimento. Do contrário, suas exportações serão cada vez mais prejudicadas por regras criadas pelos Estados Unidos, Europa e no futuro pela China em seus entendimentos preferenciais.
Isso é o que defende a professora Vera Thorstensen, que acaba de deixar a assessoria econômica da missão brasileira, em Genebra, para criar um Centro do Comércio Global na Escola de Economia da Fundação Getulio Vargas, em São Paulo. O objetivo é explorar a nova dimensão da regulação do comércio internacional, com a multiplicidade de normas que encarecem os custos para o exportador e podem afetar duramente a competitividade brasileira. Embora a Rodada Doha não prospere, na própria OMC as regras continuam evoluindo através de interpretações de seu Órgão de Apelação.
Doutora pela FGV, Vera Thorstensen, 60 anos, passou 20 na Europa, dos quase 15 em Genebra, depois de "amor à primeira vista" pelos temas de comércio internacional. Publicou o primeiro livro em português sobre OMC e suas regras, em 1999. Montou e teve papel central na formação de 120 jovens advogados que fizeram estágio na missão brasileira em Genebra desde 20023. Deu cursos pelo Brasil inteiro e na Europa (Paris, Lisboa, Barcelona).
Reputada por seu rigor, a professora Vera se tornou uma figura incontornável na delegação brasileira. Por sua sala, ao longo dos anos, passaram autoridades, acadêmicos, técnicos brasileiro, sempre buscando um esclarecimento sobre a OMC e suas regras negociadas na Rodada Uruguai ou em negociação na Rodada Doha.
Na OMC, ela foi presidente do Comitê de Regras de Origem de 2004 a 2010. Um acordo para definir como os países identificam a origem de uma mercadoria para efeito de tarifas continua bloqueado porque os países visivelmente preferem ter margem para burlar as normas.
A seguir, os principais trechos da entrevista que concedeu ao Valor:
Valor: Por que retornar ao Brasil agora? É frustração com a Rodada Doha?
Vera Thorstensen: No início deste ano, tomei a decisão de voltar ao Brasil consciente de que eu tinha uma missão a cumprir: criar um centro de estudos sobre a OMC para focar na regulação do comércio internacional. E explico: existe uma percepção no país de que a OMC morreu porque a Rodada Doha continua no impasse. Essa visão está errada. A OMC não só não morreu, como está muito ativa, principalmente na solução de disputas entre os países, onde foi aberto esta semana o 411. E tudo isso tem impactos imediatos no Brasil.
Valor: Que impactos seriam esses?
Vera: As regras da OMC não se referem apenas a atividades de exportação e importação de bens e serviços. São muito mais amplas, envolvendo medidas relativas ao comércio com propriedade intelectual, concorrência, investimentos, ambiente, clima, saúde, direitos humanos. Esta é a dimensão da regulação do comércio internacional. Atualmente, são duas as fontes dessa regulação. Uma, são as regras já definidas nos acordos na OMC. E mesmo sem a rodada avançar, essas regras na prática estão sendo ampliadas e revistas por decisões do Órgão de Apelação, que é uma espécie de supremo tribunal dos conflitos do comercio internacional. O mecanismo de solução de controvérsias é composto de duas fases: uma através dos painéis e a outra pelo Órgão de Apelação. Ou seja, não basta hoje apenas ler os acordos da OMC. É preciso ir atrás de todos os painéis relacionados aos temas em conflito e ver como o Órgão de Apelação interpretou os termos dos acordos.
Valor: Ou seja, um grupo de juízes está fazendo regras, enquanto os governos brigam?
Vera: Veja, os panelistas e o Órgão de Apelação têm obrigação de solucionar os conflitos comerciais que são a eles apresentados pelos países. E devem fazer isso com base nos acordos existentes que tem 700 páginas e outras 10 mil páginas de listas de compromisso de liberalização dos países. Como a OMC toma decisão por consenso, a linguagem de suas regras é muito pouco clara, é a famosa ambiguidade construtiva para se fechar negociações. Então, um país interpreta uma regra de um jeito e o outro o contrário. E isso é resolvido pelo Órgão de Solução de Controvérsias. Para manter a previsibilidade do sistema, os membros da OMC esperam que a próxima decisão utilize a interpretação anterior. É o peso da jurisprudência que tem papel fundamental. De fato, discute-se no mundo acadêmico a que ponto o ativismo do Órgão de Apelação está assumindo a posição dos negociadores dos países. E com o impasse da Rodada Doha, são esses juízes que estão atualizando na prática as regras da OMC.
Valor: Por exemplo?
Vera: O artigo 20 do Gatt, de 1947, sobre as exceções gerais, isto é, quando um país pode deixar de cumprir as regras da OMC, está sendo usado para dirimir conflitos que envolvem comércio e ambiente. Foi o caso dos pneus entre o Brasil e a União Europeia, do atum entre México e EUA, dos camarões entre EUA e vários países da Ásia, dos arbestos entre Canadá e UE. O Órgão de Apelação pegou uma página de um acordo negociado há 63 anos e através desses conflitos foi criando passo a passo uma regulação para disputas envolvendo ambiente, algo que os países até hoje nunca chegaram a um acordo.
Valor: Qual a segunda fonte hoje de regulação do comércio?
Vera: São os acordos regionais de comércio, negociados entre dois ou grupos não necessariamente próximos, como entre Chile e China. A regra que continua a vigorar em termos de acordos regionais é apenas o artigo 24 do velho Gatt, que tem 63 anos. E hoje está acontecendo uma explosão de acordos regionais incentivada até pelo impasse da Rodada Doha. Estão notificados na OMC 267 acordos regionais e a entidade já tem informação de que outros cem acordos estão em negociação.
Valor: Qual o problema de ter tantos acordos regionais?
Vera: O problema é que esses acordos estão usando as regras que englobam não só temas regulados da OMC, como estão expandindo e incluindo nova regulação como propriedade intelectual (Trips) e investimentos (Trims) no comércio. Além disso, os acordos regionais estão criando regras sobre temas que a OMC nunca conseguiu regular, como padrões trabalhistas, ambiente, investimento e concorrência. Há acordo de comércio regional que exige que os países tenham assinado as sete convenções fundamentais da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Na OMC, os países em desenvolvimento afirmam que esse tema não é comércio e deve ficar na OIT. Só que, por conta da concorrência de países que não tem padrões trabalhistas, esse tema voltou a ter grande interesse. O fato de o país não ter esses padrões causaria uma redução significativa dos custos de exportação, como no caso da China, afetando a competitividade dos países que seguem as convenções da OIT.
Valor: E qual o problema de os acordos regionais criarem regras novas?
Vera: O problema é que a multiplicidade dessas regras pode minar a OMC e a longo prazo até destruí-la. Por quê? A existência de muitas regras sem controle e sem um órgão de supervisão está levando a criação de grandes blocos de regulação. Tem o modelo dos EUA, da UE e no futuro talvez da China. E já está ocasionando conflitos de regras, aumentando o custo de exportação e reduzindo a competitividade dos países que estão fora desses blocos.
Valor: Qual o impacto para o Brasil?
Vera: O Brasil não tem tradição de negociar acordos regionais fora da América do Sul e terá cada vez mais dificuldades para exportar para os grandes blocos que usam as regras que eles próprios criam, como regras sanitárias e fitossanitárias, barreiras técnicas, padrões privados de alimentos e regras de origem preferenciais. São as novas barreiras ao comércio. Dentro desses blocos, a OMC não tem controle.
Valor: Como exportador agrícola, o Brasil ficará mais vulnerável?
Vera: Sem dúvida. Se os EUA e a UE criam regras sobre alimentos, atingindo todos seus acordos preferenciais dentro de seus blocos, isso configura uma segmentação das novas regras de proteção no comércio internacional. Se o Brasil não participa, as exportações brasileiras são prejudicadas. O Brasil tem que enfrentar um grande dilema: fazer acordos regionais ou ficar autônomo. O problema é que, como grande produtor agrícola, é muito difícil fazer acordo preferencial com outros países, porque o setor agrícola é sensível para a grande maioria dos países.
Valor: O país deveria buscar acordos com os grandes parceiros?
Vera: A dinâmica atual do comércio internacional não está mais na OMC e sim nos acordos regionais. Ficar fora dos grandes blocos poderá afetar sem dúvida as atividades internacionais das empresas brasileiras.
Valor: Mas o Brasil negocia com a UE, Índia, África do Sul e outros.
Vera: Se a dinâmica é fazer acordos regionais, o Brasil deveria estar negociando não só no eixo Sul-Sul, mas no eixo Norte-Sul.
Valor: Qual a consequência do conflito entre OMC e acordos regionais?
Vera: Se as regras da OMC não forem atualizadas, crescerá o problema na hierarquia de regras, com impacto no mundo de negócios. Para se ter uma ideia, o comércio internacional envolve US$ 12 trilhões por ano. Com a multiplicação desses conflitos, os países serão obrigados a sentar de novo na mesa não só para concluir a Rodada Doha, como partir para a negociação de regras mais ambiciosas para novos temas do comércio global.
Valor: Quando Doha será concluída?
Vera: Os prazos para as conclusões das rodadas são cada vez mais longos, porque elas são mais complexas. Não me causa nenhuma estranheza que Doha não tenha sido concluída. Mas o custo político de não concluí-la é muito alto, daí porque acredito que ela será bem sucedida. A rodada será concluída quando as lideranças tiverem consciência do perigo que a multiplicação dos acordos regionais representa para o sistema multilateral que levou 60 anos para ser construído. Quando a incompatibilidade das regras regionais começarem a afetar os grandes países, eles voltarão a se sentar na mesa de negociação na OMC.
Valor: A China é um risco ou oportunidade para o Brasil?
Vera: A China pode representar oportunidade pelo tamanho de seu mercado e um risco pela sua competitividade com produtos brasileiros tanto no mercado interno com em terceiros mercados. Um dos temas mais relevantes hoje de política comercial do Brasil é definir qual sua estratégia em relação a China. Os brasileiros devem produzir na China ou o Brasil deve atrair a China a produzir no Brasil? Até agora, o Brasil não tem estratégia clara, apesar do aumento das relações bilaterais. A existência das regras da OMC é fundamental nesse relacionamento. O Brasil deve usar todos os instrumentos que a entidade permite para defender sua indústria e utilizar as mesmas regras para abrir o mercado chinês.
Valor: Qual será o foco do Centro do Comércio Global que a sra. está criando?
Vera O objetivo é analisar o quadro regulatório do comércio internacional explorando sua nova dimensão, pois as regras não envolvem só exportação e importação, mas toda uma gama de temas que vão de concorrência a saúde, investimentos, ambiente, clima, direitos humanos . E isso é essencial para a economia brasileira. Precisamos conhecer bem os detalhes das regras e saber usá-las para defender os interesses do Brasil. A ideia é juntar advogados, economistas e administradores de empresas para estudar e avaliar os impactos dessas regras, tanto da OMC como de acordos regionais, para a economia brasileira, a competitividade e sobrevivência das empresas. O centro pretende acompanhar a regulação especifica dos principais parceiros do Brasil, como União Europeia, Estados Unidos, China, Índia, África do Sul.
Valor: No que o centro inovará?
Vera Minha intenção é criar uma nova geração de especialistas em comércio internacional. Ao invés de só pensar em participar de painéis (disputas) na OMC, que saibam identificar os problemas concretos das empresas, as regras que foram desrespeitadas e levar os casos para os comitês específicos da OMC. É uma área ainda não explorada no Brasil. Poucos percebem que as regras da OMC estão internalizadas nas regras brasileiras e que isso pode ser utilizado nas atividades normais das empresas e entre empresas e governos. Esse trabalho, de dirimir conflitos, é não só de advogados, mas de economistas, porque cada vez mais os conceitos econômicos estão entrando na OMC.
Valor: As escolas de economia e direito estão atualizadas no Brasil?
Vera: Não. É triste constatar que mesmo as melhores escolas de economia e direito dão pouca atenção ao quadro regulatório do comércio internacional. Existe mesmo o absurdo de alguns professores considerarem que as regras da OMC não fazem parte do direito internacional. Na verdade, o que acontece na OMC faz parte de uma nova área do direito e da economia, que é chamada de "international trade law and economics", que já tem até uma associação criada em Genebra. Em seu congresso, em Barcelona, foi triste constar que, entre 350 participantes, só cinco eram brasileiros. São raras as escolas que oferecem cursos sobre OMC e disputas de conflitos. Como se pode criar economistas e advogados sem saber o quadro regulatório do comércio internacional, como esses futuros profissionais vão defender os interesses das empresas?
Assis Moreira, de Genebra
02/08/2010Valor
Vera Thorstensen: "Um dos temas atualmente mais relevantes da política comercial do Brasil é definir qual sua estratégia em relação a China"
A dinâmica atual do comércio internacional não está mais na Organização Mundial do Comércio (OMC) e sim nos acordos regionais. Já há 267 notificados na OMC e 100 estão em negociação, com troca de preferências entre seus membros. O Brasil precisa buscar acordos com as grandes potências e não apenas com países em desenvolvimento. Do contrário, suas exportações serão cada vez mais prejudicadas por regras criadas pelos Estados Unidos, Europa e no futuro pela China em seus entendimentos preferenciais.
Isso é o que defende a professora Vera Thorstensen, que acaba de deixar a assessoria econômica da missão brasileira, em Genebra, para criar um Centro do Comércio Global na Escola de Economia da Fundação Getulio Vargas, em São Paulo. O objetivo é explorar a nova dimensão da regulação do comércio internacional, com a multiplicidade de normas que encarecem os custos para o exportador e podem afetar duramente a competitividade brasileira. Embora a Rodada Doha não prospere, na própria OMC as regras continuam evoluindo através de interpretações de seu Órgão de Apelação.
Doutora pela FGV, Vera Thorstensen, 60 anos, passou 20 na Europa, dos quase 15 em Genebra, depois de "amor à primeira vista" pelos temas de comércio internacional. Publicou o primeiro livro em português sobre OMC e suas regras, em 1999. Montou e teve papel central na formação de 120 jovens advogados que fizeram estágio na missão brasileira em Genebra desde 20023. Deu cursos pelo Brasil inteiro e na Europa (Paris, Lisboa, Barcelona).
Reputada por seu rigor, a professora Vera se tornou uma figura incontornável na delegação brasileira. Por sua sala, ao longo dos anos, passaram autoridades, acadêmicos, técnicos brasileiro, sempre buscando um esclarecimento sobre a OMC e suas regras negociadas na Rodada Uruguai ou em negociação na Rodada Doha.
Na OMC, ela foi presidente do Comitê de Regras de Origem de 2004 a 2010. Um acordo para definir como os países identificam a origem de uma mercadoria para efeito de tarifas continua bloqueado porque os países visivelmente preferem ter margem para burlar as normas.
A seguir, os principais trechos da entrevista que concedeu ao Valor:
Valor: Por que retornar ao Brasil agora? É frustração com a Rodada Doha?
Vera Thorstensen: No início deste ano, tomei a decisão de voltar ao Brasil consciente de que eu tinha uma missão a cumprir: criar um centro de estudos sobre a OMC para focar na regulação do comércio internacional. E explico: existe uma percepção no país de que a OMC morreu porque a Rodada Doha continua no impasse. Essa visão está errada. A OMC não só não morreu, como está muito ativa, principalmente na solução de disputas entre os países, onde foi aberto esta semana o 411. E tudo isso tem impactos imediatos no Brasil.
Valor: Que impactos seriam esses?
Vera: As regras da OMC não se referem apenas a atividades de exportação e importação de bens e serviços. São muito mais amplas, envolvendo medidas relativas ao comércio com propriedade intelectual, concorrência, investimentos, ambiente, clima, saúde, direitos humanos. Esta é a dimensão da regulação do comércio internacional. Atualmente, são duas as fontes dessa regulação. Uma, são as regras já definidas nos acordos na OMC. E mesmo sem a rodada avançar, essas regras na prática estão sendo ampliadas e revistas por decisões do Órgão de Apelação, que é uma espécie de supremo tribunal dos conflitos do comercio internacional. O mecanismo de solução de controvérsias é composto de duas fases: uma através dos painéis e a outra pelo Órgão de Apelação. Ou seja, não basta hoje apenas ler os acordos da OMC. É preciso ir atrás de todos os painéis relacionados aos temas em conflito e ver como o Órgão de Apelação interpretou os termos dos acordos.
Valor: Ou seja, um grupo de juízes está fazendo regras, enquanto os governos brigam?
Vera: Veja, os panelistas e o Órgão de Apelação têm obrigação de solucionar os conflitos comerciais que são a eles apresentados pelos países. E devem fazer isso com base nos acordos existentes que tem 700 páginas e outras 10 mil páginas de listas de compromisso de liberalização dos países. Como a OMC toma decisão por consenso, a linguagem de suas regras é muito pouco clara, é a famosa ambiguidade construtiva para se fechar negociações. Então, um país interpreta uma regra de um jeito e o outro o contrário. E isso é resolvido pelo Órgão de Solução de Controvérsias. Para manter a previsibilidade do sistema, os membros da OMC esperam que a próxima decisão utilize a interpretação anterior. É o peso da jurisprudência que tem papel fundamental. De fato, discute-se no mundo acadêmico a que ponto o ativismo do Órgão de Apelação está assumindo a posição dos negociadores dos países. E com o impasse da Rodada Doha, são esses juízes que estão atualizando na prática as regras da OMC.
Valor: Por exemplo?
Vera: O artigo 20 do Gatt, de 1947, sobre as exceções gerais, isto é, quando um país pode deixar de cumprir as regras da OMC, está sendo usado para dirimir conflitos que envolvem comércio e ambiente. Foi o caso dos pneus entre o Brasil e a União Europeia, do atum entre México e EUA, dos camarões entre EUA e vários países da Ásia, dos arbestos entre Canadá e UE. O Órgão de Apelação pegou uma página de um acordo negociado há 63 anos e através desses conflitos foi criando passo a passo uma regulação para disputas envolvendo ambiente, algo que os países até hoje nunca chegaram a um acordo.
Valor: Qual a segunda fonte hoje de regulação do comércio?
Vera: São os acordos regionais de comércio, negociados entre dois ou grupos não necessariamente próximos, como entre Chile e China. A regra que continua a vigorar em termos de acordos regionais é apenas o artigo 24 do velho Gatt, que tem 63 anos. E hoje está acontecendo uma explosão de acordos regionais incentivada até pelo impasse da Rodada Doha. Estão notificados na OMC 267 acordos regionais e a entidade já tem informação de que outros cem acordos estão em negociação.
Valor: Qual o problema de ter tantos acordos regionais?
Vera: O problema é que esses acordos estão usando as regras que englobam não só temas regulados da OMC, como estão expandindo e incluindo nova regulação como propriedade intelectual (Trips) e investimentos (Trims) no comércio. Além disso, os acordos regionais estão criando regras sobre temas que a OMC nunca conseguiu regular, como padrões trabalhistas, ambiente, investimento e concorrência. Há acordo de comércio regional que exige que os países tenham assinado as sete convenções fundamentais da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Na OMC, os países em desenvolvimento afirmam que esse tema não é comércio e deve ficar na OIT. Só que, por conta da concorrência de países que não tem padrões trabalhistas, esse tema voltou a ter grande interesse. O fato de o país não ter esses padrões causaria uma redução significativa dos custos de exportação, como no caso da China, afetando a competitividade dos países que seguem as convenções da OIT.
Valor: E qual o problema de os acordos regionais criarem regras novas?
Vera: O problema é que a multiplicidade dessas regras pode minar a OMC e a longo prazo até destruí-la. Por quê? A existência de muitas regras sem controle e sem um órgão de supervisão está levando a criação de grandes blocos de regulação. Tem o modelo dos EUA, da UE e no futuro talvez da China. E já está ocasionando conflitos de regras, aumentando o custo de exportação e reduzindo a competitividade dos países que estão fora desses blocos.
Valor: Qual o impacto para o Brasil?
Vera: O Brasil não tem tradição de negociar acordos regionais fora da América do Sul e terá cada vez mais dificuldades para exportar para os grandes blocos que usam as regras que eles próprios criam, como regras sanitárias e fitossanitárias, barreiras técnicas, padrões privados de alimentos e regras de origem preferenciais. São as novas barreiras ao comércio. Dentro desses blocos, a OMC não tem controle.
Valor: Como exportador agrícola, o Brasil ficará mais vulnerável?
Vera: Sem dúvida. Se os EUA e a UE criam regras sobre alimentos, atingindo todos seus acordos preferenciais dentro de seus blocos, isso configura uma segmentação das novas regras de proteção no comércio internacional. Se o Brasil não participa, as exportações brasileiras são prejudicadas. O Brasil tem que enfrentar um grande dilema: fazer acordos regionais ou ficar autônomo. O problema é que, como grande produtor agrícola, é muito difícil fazer acordo preferencial com outros países, porque o setor agrícola é sensível para a grande maioria dos países.
Valor: O país deveria buscar acordos com os grandes parceiros?
Vera: A dinâmica atual do comércio internacional não está mais na OMC e sim nos acordos regionais. Ficar fora dos grandes blocos poderá afetar sem dúvida as atividades internacionais das empresas brasileiras.
Valor: Mas o Brasil negocia com a UE, Índia, África do Sul e outros.
Vera: Se a dinâmica é fazer acordos regionais, o Brasil deveria estar negociando não só no eixo Sul-Sul, mas no eixo Norte-Sul.
Valor: Qual a consequência do conflito entre OMC e acordos regionais?
Vera: Se as regras da OMC não forem atualizadas, crescerá o problema na hierarquia de regras, com impacto no mundo de negócios. Para se ter uma ideia, o comércio internacional envolve US$ 12 trilhões por ano. Com a multiplicação desses conflitos, os países serão obrigados a sentar de novo na mesa não só para concluir a Rodada Doha, como partir para a negociação de regras mais ambiciosas para novos temas do comércio global.
Valor: Quando Doha será concluída?
Vera: Os prazos para as conclusões das rodadas são cada vez mais longos, porque elas são mais complexas. Não me causa nenhuma estranheza que Doha não tenha sido concluída. Mas o custo político de não concluí-la é muito alto, daí porque acredito que ela será bem sucedida. A rodada será concluída quando as lideranças tiverem consciência do perigo que a multiplicação dos acordos regionais representa para o sistema multilateral que levou 60 anos para ser construído. Quando a incompatibilidade das regras regionais começarem a afetar os grandes países, eles voltarão a se sentar na mesa de negociação na OMC.
Valor: A China é um risco ou oportunidade para o Brasil?
Vera: A China pode representar oportunidade pelo tamanho de seu mercado e um risco pela sua competitividade com produtos brasileiros tanto no mercado interno com em terceiros mercados. Um dos temas mais relevantes hoje de política comercial do Brasil é definir qual sua estratégia em relação a China. Os brasileiros devem produzir na China ou o Brasil deve atrair a China a produzir no Brasil? Até agora, o Brasil não tem estratégia clara, apesar do aumento das relações bilaterais. A existência das regras da OMC é fundamental nesse relacionamento. O Brasil deve usar todos os instrumentos que a entidade permite para defender sua indústria e utilizar as mesmas regras para abrir o mercado chinês.
Valor: Qual será o foco do Centro do Comércio Global que a sra. está criando?
Vera O objetivo é analisar o quadro regulatório do comércio internacional explorando sua nova dimensão, pois as regras não envolvem só exportação e importação, mas toda uma gama de temas que vão de concorrência a saúde, investimentos, ambiente, clima, direitos humanos . E isso é essencial para a economia brasileira. Precisamos conhecer bem os detalhes das regras e saber usá-las para defender os interesses do Brasil. A ideia é juntar advogados, economistas e administradores de empresas para estudar e avaliar os impactos dessas regras, tanto da OMC como de acordos regionais, para a economia brasileira, a competitividade e sobrevivência das empresas. O centro pretende acompanhar a regulação especifica dos principais parceiros do Brasil, como União Europeia, Estados Unidos, China, Índia, África do Sul.
Valor: No que o centro inovará?
Vera Minha intenção é criar uma nova geração de especialistas em comércio internacional. Ao invés de só pensar em participar de painéis (disputas) na OMC, que saibam identificar os problemas concretos das empresas, as regras que foram desrespeitadas e levar os casos para os comitês específicos da OMC. É uma área ainda não explorada no Brasil. Poucos percebem que as regras da OMC estão internalizadas nas regras brasileiras e que isso pode ser utilizado nas atividades normais das empresas e entre empresas e governos. Esse trabalho, de dirimir conflitos, é não só de advogados, mas de economistas, porque cada vez mais os conceitos econômicos estão entrando na OMC.
Valor: As escolas de economia e direito estão atualizadas no Brasil?
Vera: Não. É triste constatar que mesmo as melhores escolas de economia e direito dão pouca atenção ao quadro regulatório do comércio internacional. Existe mesmo o absurdo de alguns professores considerarem que as regras da OMC não fazem parte do direito internacional. Na verdade, o que acontece na OMC faz parte de uma nova área do direito e da economia, que é chamada de "international trade law and economics", que já tem até uma associação criada em Genebra. Em seu congresso, em Barcelona, foi triste constar que, entre 350 participantes, só cinco eram brasileiros. São raras as escolas que oferecem cursos sobre OMC e disputas de conflitos. Como se pode criar economistas e advogados sem saber o quadro regulatório do comércio internacional, como esses futuros profissionais vão defender os interesses das empresas?
domingo, 1 de agosto de 2010
A ciência contra o esquecimento
Agora no Estadão
Internacional Rússia tem quase 800 novos incêndiosEleições 2010 Pesquisa Ibope mostra Dilma 5 pontos à frente de SerraEstadão Especial: 1 ano sob censuraCiência Liberado nos EUA o uso de células-tronco em humanosBrasileirão São Paulo volta a vencer: 2 a 1 no Ceará
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A ciência contra o esquecimento
Crimes de guerra pedem técnica na investigação e um protocolo único de atendimento às vítimas
31 de julho de 2010 | 12h 34
Leia a notícia
Comentários EmailImprimirTwitterFacebookDeliciousDiggNewsvineLinkedInLiveRedditTexto - + IVAN MARSIGLIA
A sala do professor Eric Stover na Universidade da Califórnia, Berkeley, vive vazia. Isso se deve ao fato de que esse dedicado pesquisador não é mais um dos "enviados especiais ao arquivo", que o jornalista Ruy Castro gosta de ironizar. Durante boa parte do ano, Stover monta escritório em ambientes sinistros como covas coletivas na ex-Iugoslávia, áreas conflagradas em Ruanda e terrenos minados no Camboja. Com método de cientista e faro de detetive, coordena equipes que investigam crimes de guerra, amparam famílias das vítimas de atrocidades e levam seus algozes a tribunais internacionais como o de Haia. Pouco importa para Stover se tais violações ocorreram em guerras civis, conflitos entre nações ou regimes de exceção. Nem se estão em curso agora mesmo no Afeganistão, como sugerem os documentos que vazaram no WikiLeaks, ou durante a 2ª Guerra Mundial. "Há crimes que não podem ser esquecidos", diz. E, para quem se espanta com a disposição e o bom humor com que esse americano de 58 anos encara o trabalho pesado diariamente, contemporiza: "É um privilégio".
Veja também:
WikiLeaks: "Vazamento em estado bruto"
Quem vê o professor Stover à frente do Human Rights Center, vinculado à faculdade de direito em Berkeley, ou desfilando seus conhecimentos em ciência forense e legislação internacional, não imagina que sua área de formação é literatura inglesa. "Sou daquela geração que cresceu na luta pelos direitos civis nos anos 70", explica, antes de contar que esteve no Brasil em pelo menos duas ocasiões, quando colaborou com a investigação sobre ossadas de militantes de esquerda mortos pela repressão, encontradas no cemitério paulista de Perus, e na identificação dos restos mortais do médico nazista Josef Mengele.
Na entrevista a seguir, concedida por telefone dos EUA, ele diz que a constituição de cortes internacionais para julgamentos de crimes de guerra foi um avanço, mas falta definir um protocolo internacional de atendimento às vítimas e proteção às testemunhas para que provas mais sólidas cheguem aos tribunais. Defende que crimes contra a humanidade não devem ser passíveis de prescrição. Afirma que as políticas da administração Bush na "guerra contra o terror" foram responsáveis por um verdadeiro retrocesso em valores consolidados desde a Convenção de Genebra. E sustenta que, mais importante do que impor penas duras aos que violaram os direitos humanos, é certificar-se de que sejam efetivamente levados aos tribunais.
O sr. é um intelectual que não se limita ao seu gabinete e se dedica a trabalhos de campo, verificando covas coletivas na ex-Iugoslávia ou em Ruanda, por exemplo. De que modo essas experiências afetaram a forma como encara os crimes de guerra?
As pessoas me perguntam o tempo todo como sou capaz de fazer esse trabalho. E respondo que é um privilégio. O convívio com famílias em perigo, organizações de ajuda humanitária e ativistas locais, é muito rico. Em situações como essas, nos damos conta do quão difíceis são os processos que envolvem desaparecimentos. Quando a verdade não aparece, as famílias ficam em uma espécie de limbo, entre a esperança e a negação. Por um lado ainda esperam que seus entes queridos retornem - na Argentina, dizia-se que están en las montañas -, por outro tentam esquecer o que passou. É importante dizer o que houve, resgatar corpos, oferecer funerais dignos para que os processos sejam superados. Não é por acaso que celebramos nascimentos, casamentos, funerais... De certa forma, significa restabelecer a ordem nessas sociedades.
Recentemente a revista alemã Der Spiegel contou a história de um servidor civil aposentado, de 90 anos de idade, condenado por trabalhar em um campo de concentração nazista onde 430 mil judeus foram mortos. Para alguns, não faz sentido punir um criminoso de guerra após tanto tempo. E para o sr.?
É uma questão difícil. Você pode olhar esse drama de forma humanitária pensando que se trata de um senhor de 90 anos, mas também da perspectiva humanitária das 430 mil pessoas que morreram por consequência de seus atos. Podemos e devemos relevar crimes de guerra de tal magnitude? Eu tomei uma decisão política anos atrás: a de ficar ao lado das vítimas e de suas famílias. Em minha opinião trata-se de crimes tão sérios que não importa a idade dos que os perpetraram, nem o tempo que passou.
Essa semana, um ex-membro do Khmer Vermelho no Camboja, Kaing Guek Eav, condenado a 35 anos de prisão por ter torturado e assassinado milhares de pessoas, teve sua pena reduzida em 16 anos. As cortes internacionais deveriam ser mais rigorosas?
Em 1961, Hannah Arendt disse, após ter presenciado um julgamento em Israel sobre os crimes do nazismo: "A lógica da lei jamais fará sentido diante da lógica das atrocidades". Quando olhamos para essas cortes, percebemos que não há engenharia jurídica que transforme sociedades. Uma frase que uso sempre é: Justiça é sempre uma coisa que está por acontecer. Entrevistei 21 civis cambojanos que participaram de julgamentos dos crimes do Khmer Vermelho para saber quais eram seus sentimentos logo após os veredictos da corte. Anos mais tarde, um colega voltou e fez as mesmas perguntas. Percebemos que, num primeiro momento, vários se sentem frustrados com as penas aplicadas depois dos riscos que correram ao denunciá-los. Dois ou três anos mais tarde, porém, expressam uma opinião mais favorável. Podem ainda não achar a sentença adequada, mas terminam por dizer: "Era meu dever moral testemunhar e tirei um fardo das costas".
Ness mesma semana um juiz britânico se recusou a extraditar Ejup Ganic, ex-líder Bósnio acusado de crimes de guerra pelas autoridades da Sérvia, por considerar que se tratava de perseguição política. Em um contexto de guerra, como saber qual dos lados está certo ou errado?
Como se diz, em uma guerra a primeira vítima é a verdade. Por isso, em um julgamento sobre esse tipo de crime é preciso olhar para os indivíduos ou grupos de indivíduos que os cometeram. É errado assumir a postura de que "os sérvios fizeram isso" ou "os militares argentinos tomaram parte naquilo". É preciso centrar foco primeiro nos responsáveis diretos pelos crimes e, então, chegar a seus superiores. Justiça de guerra se faz pondo de lado as razões políticas.
A que tipo de crime o Human Rights Center tem se dedicado nos últimos anos?
O centro existe há 16 anos, acompanhando os principais processos internacionais contra criminosos de guerra e formando estudantes interessados em atuar na área. Neste momento, acabamos de iniciar um projeto de accountability de crimes sexuais, para apurar estupros sistemáticos e abusos contra populações civis. Meu trabalho é organizar grupos que possam levar a cabo investigações consistentes que produzam provas para embasar os julgamentos.
E como isso pode ser feito na prática?
A experiência nos mostrou que, além da existência de cortes com força e vontade política, é preciso um sistema de proteção às testemunhas que funcione e também a garantia no acesso das vítimas aos sistemas de saúde locais. Temos trabalhado com o objetivo de definir um protocolo internacional para o atendimento dessas vítimas, com critérios científicos, para que os dados possam municiar os julgamentos depois. Um dos elementos-chave em um julgamento é que ele seja público, aberto, para que todos possam ver. Então, mesmo que se possa lançar mão de depoimentos anônimos ou de distorção de voz, há um limite. É preciso dar não apenas proteção às testemunhas, mas também um tratamento profissional e respeitoso, com garantia de follow up e acompanhamento quando retornarem da corte a seus países de origem.
Em seu livro My Neighbour, My Enemy: Justice and Community in the Aftermath of Mass Atrocity, o sr. discute as mudanças na forma como a guerra é percebida hoje. Como as políticas decorrentes da ‘guerra ao terror’ afetaram a justiça internacional?
As políticas da administração Bush representaram um verdadeiro retrocesso em relação aos valores da Convenção de Genebra (série de tratados que definem os direitos e os deveres de pessoas, combatentes ou não, em tempo de guerra, celebrados na Suíça de 1864 a 1949). É algo que a administração Obama reconhece, e se propôs a corrigir. Um colega da escola de direito em Berkeley entrevistou 62 ex-prisioneiros de Guantánamo sobre as condições a que foram submetidos. Aguardamos o resultado das eleições que levaram Obama à Casa Branca para evitar que a divulgação fosse considerada política. E nossa posição é de que o país não pode admitir a existência de prisões como a de Guantánamo ou de "áreas escuras" na CIA, autorizadas a torturar e matar. E é frustrante ver que nem Obama nem o Congresso americano atuaram satisfatoriamente nessa área.
Diante da paranoia do 11 de setembro, alguns profissionais da imprensa americana chegaram a corroborar a ideia de que técnicas de afogamento de presos não seriam tortura, mas ‘interrogatório severo’.
Às vezes há muita falta de informação, mesmo entre jornalistas. Quando trabalhei na ex-Iugoslávia oferecemos à imprensa local cursos sobre a Convenção de Genebra. Porque eles nunca falavam em "crimes de guerra", mas em "tragédias". Nos EUA, o medo da ameaça terrorista permitiu esse retrocesso. Mas é papel do jornalista fazer seu trabalho sem medo nem favor a ninguém.
O sr. acha que as evidências de assassinatos de civis no Afeganistão divulgadas pelo WikiLeaks chegarão às cortes internacionais? Há, como chegou a alertar o New York Times, interesses políticos de grupos militares insatisfeitos com Obama?
Se os documentos contêm evidências de crimes praticados pelas Forças Armadas americanas, não interessa se deviam ou não ter sido vazados nem se há interesses políticos por trás do ato - eles precisam ser apurados. Mesmo que um site como o WikiLeaks nunca revelasse esse tipo de história, é dever de qualquer comandante sério fiscalizar e combater esse tipo de prática em tempos de guerra. É por isso que a lei deve ser separada da política. O segredo de Estado não pode ser evocado para impedir o cumprimento da lei.
O que a comunidade internacional pode fazer para evitar os crimes de guerra?
O Brasil, por exemplo, é signatário do sistema criminal internacional. Todos os que participam dele deveriam contribuir não apenas financiando as cortes, como atuando na prática, por meio de suas embaixadas. Governos com representação diplomática em países onde se cometem atrocidades devem oferecer apoio aos perseguidos e denunciar os crimes nos fóruns internacionais. E fazê-lo sem medo ou receio de contrariar interesses comerciais. Independentemente de ideologias ou modos de governo com os quais se identifiquem.
Internacional Rússia tem quase 800 novos incêndiosEleições 2010 Pesquisa Ibope mostra Dilma 5 pontos à frente de SerraEstadão Especial: 1 ano sob censuraCiência Liberado nos EUA o uso de células-tronco em humanosBrasileirão São Paulo volta a vencer: 2 a 1 no Ceará
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A ciência contra o esquecimento
Crimes de guerra pedem técnica na investigação e um protocolo único de atendimento às vítimas
31 de julho de 2010 | 12h 34
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A sala do professor Eric Stover na Universidade da Califórnia, Berkeley, vive vazia. Isso se deve ao fato de que esse dedicado pesquisador não é mais um dos "enviados especiais ao arquivo", que o jornalista Ruy Castro gosta de ironizar. Durante boa parte do ano, Stover monta escritório em ambientes sinistros como covas coletivas na ex-Iugoslávia, áreas conflagradas em Ruanda e terrenos minados no Camboja. Com método de cientista e faro de detetive, coordena equipes que investigam crimes de guerra, amparam famílias das vítimas de atrocidades e levam seus algozes a tribunais internacionais como o de Haia. Pouco importa para Stover se tais violações ocorreram em guerras civis, conflitos entre nações ou regimes de exceção. Nem se estão em curso agora mesmo no Afeganistão, como sugerem os documentos que vazaram no WikiLeaks, ou durante a 2ª Guerra Mundial. "Há crimes que não podem ser esquecidos", diz. E, para quem se espanta com a disposição e o bom humor com que esse americano de 58 anos encara o trabalho pesado diariamente, contemporiza: "É um privilégio".
Veja também:
WikiLeaks: "Vazamento em estado bruto"
Quem vê o professor Stover à frente do Human Rights Center, vinculado à faculdade de direito em Berkeley, ou desfilando seus conhecimentos em ciência forense e legislação internacional, não imagina que sua área de formação é literatura inglesa. "Sou daquela geração que cresceu na luta pelos direitos civis nos anos 70", explica, antes de contar que esteve no Brasil em pelo menos duas ocasiões, quando colaborou com a investigação sobre ossadas de militantes de esquerda mortos pela repressão, encontradas no cemitério paulista de Perus, e na identificação dos restos mortais do médico nazista Josef Mengele.
Na entrevista a seguir, concedida por telefone dos EUA, ele diz que a constituição de cortes internacionais para julgamentos de crimes de guerra foi um avanço, mas falta definir um protocolo internacional de atendimento às vítimas e proteção às testemunhas para que provas mais sólidas cheguem aos tribunais. Defende que crimes contra a humanidade não devem ser passíveis de prescrição. Afirma que as políticas da administração Bush na "guerra contra o terror" foram responsáveis por um verdadeiro retrocesso em valores consolidados desde a Convenção de Genebra. E sustenta que, mais importante do que impor penas duras aos que violaram os direitos humanos, é certificar-se de que sejam efetivamente levados aos tribunais.
O sr. é um intelectual que não se limita ao seu gabinete e se dedica a trabalhos de campo, verificando covas coletivas na ex-Iugoslávia ou em Ruanda, por exemplo. De que modo essas experiências afetaram a forma como encara os crimes de guerra?
As pessoas me perguntam o tempo todo como sou capaz de fazer esse trabalho. E respondo que é um privilégio. O convívio com famílias em perigo, organizações de ajuda humanitária e ativistas locais, é muito rico. Em situações como essas, nos damos conta do quão difíceis são os processos que envolvem desaparecimentos. Quando a verdade não aparece, as famílias ficam em uma espécie de limbo, entre a esperança e a negação. Por um lado ainda esperam que seus entes queridos retornem - na Argentina, dizia-se que están en las montañas -, por outro tentam esquecer o que passou. É importante dizer o que houve, resgatar corpos, oferecer funerais dignos para que os processos sejam superados. Não é por acaso que celebramos nascimentos, casamentos, funerais... De certa forma, significa restabelecer a ordem nessas sociedades.
Recentemente a revista alemã Der Spiegel contou a história de um servidor civil aposentado, de 90 anos de idade, condenado por trabalhar em um campo de concentração nazista onde 430 mil judeus foram mortos. Para alguns, não faz sentido punir um criminoso de guerra após tanto tempo. E para o sr.?
É uma questão difícil. Você pode olhar esse drama de forma humanitária pensando que se trata de um senhor de 90 anos, mas também da perspectiva humanitária das 430 mil pessoas que morreram por consequência de seus atos. Podemos e devemos relevar crimes de guerra de tal magnitude? Eu tomei uma decisão política anos atrás: a de ficar ao lado das vítimas e de suas famílias. Em minha opinião trata-se de crimes tão sérios que não importa a idade dos que os perpetraram, nem o tempo que passou.
Essa semana, um ex-membro do Khmer Vermelho no Camboja, Kaing Guek Eav, condenado a 35 anos de prisão por ter torturado e assassinado milhares de pessoas, teve sua pena reduzida em 16 anos. As cortes internacionais deveriam ser mais rigorosas?
Em 1961, Hannah Arendt disse, após ter presenciado um julgamento em Israel sobre os crimes do nazismo: "A lógica da lei jamais fará sentido diante da lógica das atrocidades". Quando olhamos para essas cortes, percebemos que não há engenharia jurídica que transforme sociedades. Uma frase que uso sempre é: Justiça é sempre uma coisa que está por acontecer. Entrevistei 21 civis cambojanos que participaram de julgamentos dos crimes do Khmer Vermelho para saber quais eram seus sentimentos logo após os veredictos da corte. Anos mais tarde, um colega voltou e fez as mesmas perguntas. Percebemos que, num primeiro momento, vários se sentem frustrados com as penas aplicadas depois dos riscos que correram ao denunciá-los. Dois ou três anos mais tarde, porém, expressam uma opinião mais favorável. Podem ainda não achar a sentença adequada, mas terminam por dizer: "Era meu dever moral testemunhar e tirei um fardo das costas".
Ness mesma semana um juiz britânico se recusou a extraditar Ejup Ganic, ex-líder Bósnio acusado de crimes de guerra pelas autoridades da Sérvia, por considerar que se tratava de perseguição política. Em um contexto de guerra, como saber qual dos lados está certo ou errado?
Como se diz, em uma guerra a primeira vítima é a verdade. Por isso, em um julgamento sobre esse tipo de crime é preciso olhar para os indivíduos ou grupos de indivíduos que os cometeram. É errado assumir a postura de que "os sérvios fizeram isso" ou "os militares argentinos tomaram parte naquilo". É preciso centrar foco primeiro nos responsáveis diretos pelos crimes e, então, chegar a seus superiores. Justiça de guerra se faz pondo de lado as razões políticas.
A que tipo de crime o Human Rights Center tem se dedicado nos últimos anos?
O centro existe há 16 anos, acompanhando os principais processos internacionais contra criminosos de guerra e formando estudantes interessados em atuar na área. Neste momento, acabamos de iniciar um projeto de accountability de crimes sexuais, para apurar estupros sistemáticos e abusos contra populações civis. Meu trabalho é organizar grupos que possam levar a cabo investigações consistentes que produzam provas para embasar os julgamentos.
E como isso pode ser feito na prática?
A experiência nos mostrou que, além da existência de cortes com força e vontade política, é preciso um sistema de proteção às testemunhas que funcione e também a garantia no acesso das vítimas aos sistemas de saúde locais. Temos trabalhado com o objetivo de definir um protocolo internacional para o atendimento dessas vítimas, com critérios científicos, para que os dados possam municiar os julgamentos depois. Um dos elementos-chave em um julgamento é que ele seja público, aberto, para que todos possam ver. Então, mesmo que se possa lançar mão de depoimentos anônimos ou de distorção de voz, há um limite. É preciso dar não apenas proteção às testemunhas, mas também um tratamento profissional e respeitoso, com garantia de follow up e acompanhamento quando retornarem da corte a seus países de origem.
Em seu livro My Neighbour, My Enemy: Justice and Community in the Aftermath of Mass Atrocity, o sr. discute as mudanças na forma como a guerra é percebida hoje. Como as políticas decorrentes da ‘guerra ao terror’ afetaram a justiça internacional?
As políticas da administração Bush representaram um verdadeiro retrocesso em relação aos valores da Convenção de Genebra (série de tratados que definem os direitos e os deveres de pessoas, combatentes ou não, em tempo de guerra, celebrados na Suíça de 1864 a 1949). É algo que a administração Obama reconhece, e se propôs a corrigir. Um colega da escola de direito em Berkeley entrevistou 62 ex-prisioneiros de Guantánamo sobre as condições a que foram submetidos. Aguardamos o resultado das eleições que levaram Obama à Casa Branca para evitar que a divulgação fosse considerada política. E nossa posição é de que o país não pode admitir a existência de prisões como a de Guantánamo ou de "áreas escuras" na CIA, autorizadas a torturar e matar. E é frustrante ver que nem Obama nem o Congresso americano atuaram satisfatoriamente nessa área.
Diante da paranoia do 11 de setembro, alguns profissionais da imprensa americana chegaram a corroborar a ideia de que técnicas de afogamento de presos não seriam tortura, mas ‘interrogatório severo’.
Às vezes há muita falta de informação, mesmo entre jornalistas. Quando trabalhei na ex-Iugoslávia oferecemos à imprensa local cursos sobre a Convenção de Genebra. Porque eles nunca falavam em "crimes de guerra", mas em "tragédias". Nos EUA, o medo da ameaça terrorista permitiu esse retrocesso. Mas é papel do jornalista fazer seu trabalho sem medo nem favor a ninguém.
O sr. acha que as evidências de assassinatos de civis no Afeganistão divulgadas pelo WikiLeaks chegarão às cortes internacionais? Há, como chegou a alertar o New York Times, interesses políticos de grupos militares insatisfeitos com Obama?
Se os documentos contêm evidências de crimes praticados pelas Forças Armadas americanas, não interessa se deviam ou não ter sido vazados nem se há interesses políticos por trás do ato - eles precisam ser apurados. Mesmo que um site como o WikiLeaks nunca revelasse esse tipo de história, é dever de qualquer comandante sério fiscalizar e combater esse tipo de prática em tempos de guerra. É por isso que a lei deve ser separada da política. O segredo de Estado não pode ser evocado para impedir o cumprimento da lei.
O que a comunidade internacional pode fazer para evitar os crimes de guerra?
O Brasil, por exemplo, é signatário do sistema criminal internacional. Todos os que participam dele deveriam contribuir não apenas financiando as cortes, como atuando na prática, por meio de suas embaixadas. Governos com representação diplomática em países onde se cometem atrocidades devem oferecer apoio aos perseguidos e denunciar os crimes nos fóruns internacionais. E fazê-lo sem medo ou receio de contrariar interesses comerciais. Independentemente de ideologias ou modos de governo com os quais se identifiquem.
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