segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Incidente de deslocamento de competência

Folha de São Paulo 14 de dezembro de 2009


Federalização, combate à impunidade e justiça
PAULO VANNUCHI e FLÁVIA PIOVESAN


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A afirmação do Estado de Direito requer respostas eficazes a romper a contínua e destemida ação dos grupos de extermínio
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VÍTIMA DA atuação articulada de grupos de extermínio, o advogado pernambucano Manoel de Mattos foi executado em janeiro, na Paraíba. No próximo dia 21, em Brasília, o Prêmio Direitos Humanos 2009, na categoria Dorothy Stang (que premia defensores de direitos humanos), será concedido a ele, "in memoriam", e recebido por sua mãe, Nair de Mattos.
Marcado para morrer, o defensor era ameaçado por denunciar dezenas de execuções sumárias na região. Seu caso, em 2002, recebeu especial atenção da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da OEA, com a concessão de medidas cautelares para que sua vida fosse resguardada, e as ameaças, devidamente investigadas.
Esse caso revela de forma emblemática o padrão de violência que acomete toda uma região na divisa entre a Paraíba e Pernambuco, onde estão as cidades Pedras de Fogo e Itambé, marcada pela atuação de grupos de extermínio compostos por particulares e agentes estatais (policiais civis e militares e agentes penitenciários) e acobertados pela certeza da impunidade. Segundo o relatório da CPI sobre grupos de extermínio na região Nordeste, em dez anos, mais de 200 execuções sumárias ocorreram na divisa entre aqueles Estados.
Em 22/6, o procurador-geral da República solicitou ao Superior Tribunal de Justiça que fosse transferida a investigação, o processamento e o julgamento do caso Manoel Mattos para as instâncias federais.
O incidente de deslocamento de competência (IDC) fundamenta-se em três argumentos: a existência de grave violação a direitos humanos; o risco de responsabilização internacional decorrente do descumprimento de obrigações jurídicas assumidas em tratados internacionais; e a incapacidade das instâncias locais de oferecer respostas efetivas. Na sessão de 13/8 do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, foi aprovada por unanimidade moção de apoio ao IDC, com destaque à importância da federalização para o combate à impunidade. Também se constituiu comissão especial que esteve na região e cujo trabalho sinaliza que o crime não restará impune.
Por meio da federalização, cria-se um sistema de salutar cooperação institucional para o combate à impunidade. De um lado, encoraja-se a firme atuação do Estado, sob o risco do deslocamento de competências. Por outro, aumenta-se a responsabilidade das instâncias federais para o efetivo combate à impunidade das graves violações aos direitos humanos. O impacto há de ser o fortalecimento das instituições locais e federais.
Permite ainda a federalização ampliar a responsabilidade da União em matéria de direitos humanos no âmbito interno, em consonância com sua crescente responsabilidade internacional. Atualmente, há 98 casos pendentes de apreciação na mencionada comissão interamericana contra o Brasil. Desse universo, apenas dois apontam a responsabilidade direta da União pela violação de direitos humanos. Nos demais casos -98% deles-, a responsabilidade é das unidades da Federação.
Com a federalização, restará aperfeiçoada a sistemática de responsabilidade nacional e internacional diante das graves violações dos direitos humanos, o que aprimorará o grau de respostas institucionais nas diversas instâncias federativas.
Para os Estados cujas instituições responderem de forma eficaz às violações, a federalização não terá nenhuma incidência maior. Para aqueles cujas instituições mostrarem-se falhas, ineficazes ou omissas, estará configurada a hipótese de deslocamento de competência para a esfera federal.
A afirmação do Estado de Direito requer respostas eficazes a romper a contínua e destemida ação dos grupos de extermínio, pautada na promíscua aliança de agentes públicos e privados, que institucionaliza a barbárie, alimentando um círculo vicioso de insegurança, desrespeito e impunidade.
Nesse contexto, cabe ao Superior Tribunal de Justiça o desafio de honrar a federalização como efetivo instrumento para o combate à impunidade e para garantir justiça nas graves violações de direitos humanos.

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