quarta-feira, 25 de novembro de 2009

História da morte violenta no Brasil

Folha de São Paulo, quarta-feira, 25 de novembro de 2009




Criança convivendo com a morte é tradição, diz historiadora


A historiadora Mary del Priore afirma que a convivência das crianças com a morte está longe de ser uma novidade no país. "É uma tradição, principalmente entre os mais pobres", diz a autora do livro "A História das Crianças no Brasil".
O que choca é justamente a permanência de uma violência arcaica num país que aspira à civilidade, diz ela. (MCC)



FOLHA - Em "A História das Crianças...", você narra a violência que as crianças sofriam a partir do século 16. Ver o corpo de um cadáver hoje é uma violência para o jovem?
MARY DEL PRIORE - Eu não diria que houve uma ruptura histórica. Esse convívio com a morte é uma permanência, algo que está enraizado na nossa cultura. Numa sociedade patriarcal e escravista, onde o mais forte sempre violenta o mais fraco de alguma maneira, a morte só foi higienizada muito recentemente. Esse convívio com a morte, longe de ser uma novidade, é uma tradição, principalmente entre os mais pobres. São mortes que têm a ver com violência ou saúde.

FOLHA - Qual fator pesa mais: a violência ou a saúde?
DEL PRIORE - Não dá para separar as duas. Às vezes é o doente que mata, se você pensar em alcoolismo, em dependência de drogas. Essas coisas são muito interligadas, porque aquele que comete a violência é muitas vezes um doente. Dos anos 60 e 70 para cá, com o crescimento das grandes cidades, você teve a consolidação do que os historiadores chamam de "a morte burguesa", que exige o cemitério, uma cidade dos mortos separada da cidade dos vivos. Foi essa morte burguesa que evitou que se vissem os corpos.

FOLHA - Essa tentativa de isolamento é um fenômeno recente...
DEL PRIORE - E muito ligado a um tipo de vida burguês que só se consolida no Brasil nas primeiras décadas do século 20, com o bota-abaixo das grandes capitais, como Rio, Salvador e Recife. São essas transformações urbanas que vão criar uma mentalidade nova em relação à morte, de afastamento, de invisibilidade. Acabou aquela intimidade que se tinha com o corpo do morto, que se vê no interior do Brasil até hoje. O morto fica estendido na mesa da sala, que é a única da casa, e as crianças brincam em volta. Essa intimidade com a morte não saiu da nossa cultura, sobretudo nas camadas subalternas.

FOLHA - Você não acha que a situação atual é diferente, já que a urbanização criou a expectativa de uma cidade sem cadáveres nas ruas?
DEL PRIORE - O que nos choca é que hoje essa morte se dá mais por morte matada do que por morte morrida. O que causa o choque é a violência, essa inflação fenomenal de favelização em todo o Brasil. É o fato de que as cidades favelizadas são palco do domínio de gangues, de traficantes, onde a lei do revólver e do inimigo continua vigindo como vigia no século 19 nos grandes potentatos do Vale do Paraíba e no interior do Nordeste, que matavam seus desafetos. É como se essa lei da eliminação do outro continuasse.
Só que isso não combina mais com o processo civilizatório em que embarcamos. É como se essa civilidade fosse incompatível com essa violência, que é uma violência arcaica, que tem mais de 500 anos.

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