O jornal Valor Econômico publica na sua edição de 18 de julho de 2008 matéria do internaciolista italiano Antonio Cassese, autor de obra de referência sobre o Direito Penal Internacional, na qual o citado jurista discute a atuação e os limites da Promotoria do Tribunal Penal Internacional I. Aponta, assim, as limitações na delimitação do conceito de genocídio e o sentido das provas no Direito Internacional Público.
A Justiça Imperfeita para o Sudão
Antonio Cassese
As pessoas que acompanham os eventos em Darfur de perto sabem muito bem que o presidente do Sudão, Omar Hassan al-Bashir, comanda um grupo de líderes políticos e militares responsável por crimes graves e em larga escala contra cidadãos sudaneses, que as forças militares do país, com a ajuda de grupos paramilitares e milícias, cometem a cada dia na região. Esses cidadãos só são culpados de pertencer às três tribos (Fur, Masalit, e Zaghawa) que geraram os rebeldes que pegaram em armas contra o governo há alguns anos.
Qualquer medida destinada a responsabilizar os líderes do Sudão por seus crimes é, portanto, muito bem-vinda. Todavia, a decisão de Luis Moreno-Ocampo, o promotor do Tribunal Penal Internacional (TPI), de requerer uma ordem de prisão contra al-Bashir é desconcertante, por três motivos.
Primeiro, se Moreno-Ocampo pretendesse mesmo prender al-Bashir, deveria ter despachado uma petição sigilosa e requisitado aos juízes do TPI a emissão de uma ordem de prisão lacrada, que só seria tornada púbica quando al-Bashir viajasse para o exterior. A jurisdição do tribunal sobre os crimes em Darfur foi estabelecida em conformidade com uma decisão vinculante do Conselho de Segurança das Nações Unidas, o que significa que mesmo Estados que não sejam parte do estatuto do TPI devem cumprir as ordens e mandados emitidos pelo tribunal. Quando preferiu fazer uma requisição para uma ordem de prisão pública, Moreno-Ocampo deu a al-Bashir - presumindo que os juízes a concedam - a opção de simplesmente se abster de viajar para fora de seu país, e assim evitar de ser detido.
Segundo: Moreno O-campo decidiu inexplicavelmente indiciar somente o presidente do Sudão, e não incluiu os demais membros da liderança política e militar que, em associação com ele, planejaram, ordenaram e organizaram os crimes em grande escala em Darfur. Se Hitler estivesse vivo em outubro de 1945, os 21 acusados que foram efetivamente julgados em Nuremberg não teriam se safado.
Por último, não é possível entender porque Moreno-Ocampo mirou tão alto e acusou al-Bashir do "crime dos crimes", genocídio, em vez de formular acusações que são mais apropriadas e mais fáceis de levar a juízo, como crimes de guerra (bombardeio de civis) e crimes contra a humanidade (extermínio, transferência forçada de pessoas, assassinatos em massa, estupro etc.). Realmente, o genocídio se tornou uma palavra mágica, e as pessoas pensam que sua mera evocação desencadeia a enérgica indignação da comunidade internacional e forçosamente aciona a intervenção da ONU. Mas não é assim.
Não é possível entender porque o presidente do Sudão não foi acusado de algo mais fácil de ser levado a juízo, como crimes contra a humanidade
Além disso, rígidas condições devem ser satisfeitas para provar genocídio. Em particular, as vítimas devem formar um grupo étnico, religioso, racial ou nacional, e o perpetrador deve nutrir "intenção genocida", ou seja, a determinação de destruir o grupo como tal, em parte ou na sua totalidade. Por exemplo, a pessoa mata 10 curdos não porque eles são antipáticos ou porque o perpetrador alimente forte aversão contra qualquer um deles individualmente, mas tão-somente porque eles são curdos; ao matar essas dez pessoas, ele pretende contribuir para a destruição do grupo como tal.
No caso de Darfur, de acordo com Moreno-Ocampo, cada uma das três tribos constitui um grupo étnico; apesar de falarem a mesma língua da maioria (árabe) e adotarem a mesma religião (islâmica) e sua pele ser da mesma cor, eles constituem grupos étnicos distintos, porque cada tribo também fala um dialeto e vive numa região particular. Segundo esse parâmetro, os habitantes de muitas regiões européias - por exemplo, os sicilianos, que, além da língua oficial, também falam um dialeto e vivem numa região particular - devem ser considerados "grupos étnicos" distintos.
Ademais, Moreno-Ocampo inferiu a intenção genocida de al-Bashir a partir de um conjunto de fatos e condutas que a seu ver equivalem a uma indicação clara desta intenção. De acordo com a jurisprudência internacional, porém, só é possível provar o estado de espírito de um réu por meio de inferência se esta for a única forma razoável a que se possa chegar com base na evidência. No caso de Darfur, teria sido mais razoável inferir a partir da evidência a intenção de cometer crimes contra a humanidade (extermínio, entre outros), em vez da intenção de aniquilar grupos étnicos em parte ou na sua totalidade.
Parece improvável que a ordem de prisão, supondo-se que o TPI a emita, produzirá os efeitos extrajudiciais - deslegitimar o acusado política e moralmente - que dele decorrem às vezes. Isso aconteceu no caso do ex-líder sérvio bósnio Radovan Karadzic que, apesar de jamais ter sido preso, foi afastado do poder e da arena internacional como conseqüência do seu indiciamento em 1995.
Em vez disso, o pedido de Moreno-Ocampo poderá ter repercussões políticas negativas, ao criar muita desordem nas relações internacionais. Ele poderá endurecer a posição do governo sudanês, colocar em risco a sobrevivência das forças de manutenção da paz em Darfur e até induzir al-Bashir a se vingar, suspendendo ou dificultando ainda mais o fluxo de ajuda humanitária internacional aos dois milhões de pessoas desalojadas em Darfur. Além disso, o pedido de Moreno-Ocampo poderá alienar ainda mais as grandes potências (China, Rússia e Estados Unidos), que atualmente são hostis ao TPI.
A Justiça Imperfeita para o Sudão
Antonio Cassese
As pessoas que acompanham os eventos em Darfur de perto sabem muito bem que o presidente do Sudão, Omar Hassan al-Bashir, comanda um grupo de líderes políticos e militares responsável por crimes graves e em larga escala contra cidadãos sudaneses, que as forças militares do país, com a ajuda de grupos paramilitares e milícias, cometem a cada dia na região. Esses cidadãos só são culpados de pertencer às três tribos (Fur, Masalit, e Zaghawa) que geraram os rebeldes que pegaram em armas contra o governo há alguns anos.
Qualquer medida destinada a responsabilizar os líderes do Sudão por seus crimes é, portanto, muito bem-vinda. Todavia, a decisão de Luis Moreno-Ocampo, o promotor do Tribunal Penal Internacional (TPI), de requerer uma ordem de prisão contra al-Bashir é desconcertante, por três motivos.
Primeiro, se Moreno-Ocampo pretendesse mesmo prender al-Bashir, deveria ter despachado uma petição sigilosa e requisitado aos juízes do TPI a emissão de uma ordem de prisão lacrada, que só seria tornada púbica quando al-Bashir viajasse para o exterior. A jurisdição do tribunal sobre os crimes em Darfur foi estabelecida em conformidade com uma decisão vinculante do Conselho de Segurança das Nações Unidas, o que significa que mesmo Estados que não sejam parte do estatuto do TPI devem cumprir as ordens e mandados emitidos pelo tribunal. Quando preferiu fazer uma requisição para uma ordem de prisão pública, Moreno-Ocampo deu a al-Bashir - presumindo que os juízes a concedam - a opção de simplesmente se abster de viajar para fora de seu país, e assim evitar de ser detido.
Segundo: Moreno O-campo decidiu inexplicavelmente indiciar somente o presidente do Sudão, e não incluiu os demais membros da liderança política e militar que, em associação com ele, planejaram, ordenaram e organizaram os crimes em grande escala em Darfur. Se Hitler estivesse vivo em outubro de 1945, os 21 acusados que foram efetivamente julgados em Nuremberg não teriam se safado.
Por último, não é possível entender porque Moreno-Ocampo mirou tão alto e acusou al-Bashir do "crime dos crimes", genocídio, em vez de formular acusações que são mais apropriadas e mais fáceis de levar a juízo, como crimes de guerra (bombardeio de civis) e crimes contra a humanidade (extermínio, transferência forçada de pessoas, assassinatos em massa, estupro etc.). Realmente, o genocídio se tornou uma palavra mágica, e as pessoas pensam que sua mera evocação desencadeia a enérgica indignação da comunidade internacional e forçosamente aciona a intervenção da ONU. Mas não é assim.
Não é possível entender porque o presidente do Sudão não foi acusado de algo mais fácil de ser levado a juízo, como crimes contra a humanidade
Além disso, rígidas condições devem ser satisfeitas para provar genocídio. Em particular, as vítimas devem formar um grupo étnico, religioso, racial ou nacional, e o perpetrador deve nutrir "intenção genocida", ou seja, a determinação de destruir o grupo como tal, em parte ou na sua totalidade. Por exemplo, a pessoa mata 10 curdos não porque eles são antipáticos ou porque o perpetrador alimente forte aversão contra qualquer um deles individualmente, mas tão-somente porque eles são curdos; ao matar essas dez pessoas, ele pretende contribuir para a destruição do grupo como tal.
No caso de Darfur, de acordo com Moreno-Ocampo, cada uma das três tribos constitui um grupo étnico; apesar de falarem a mesma língua da maioria (árabe) e adotarem a mesma religião (islâmica) e sua pele ser da mesma cor, eles constituem grupos étnicos distintos, porque cada tribo também fala um dialeto e vive numa região particular. Segundo esse parâmetro, os habitantes de muitas regiões européias - por exemplo, os sicilianos, que, além da língua oficial, também falam um dialeto e vivem numa região particular - devem ser considerados "grupos étnicos" distintos.
Ademais, Moreno-Ocampo inferiu a intenção genocida de al-Bashir a partir de um conjunto de fatos e condutas que a seu ver equivalem a uma indicação clara desta intenção. De acordo com a jurisprudência internacional, porém, só é possível provar o estado de espírito de um réu por meio de inferência se esta for a única forma razoável a que se possa chegar com base na evidência. No caso de Darfur, teria sido mais razoável inferir a partir da evidência a intenção de cometer crimes contra a humanidade (extermínio, entre outros), em vez da intenção de aniquilar grupos étnicos em parte ou na sua totalidade.
Parece improvável que a ordem de prisão, supondo-se que o TPI a emita, produzirá os efeitos extrajudiciais - deslegitimar o acusado política e moralmente - que dele decorrem às vezes. Isso aconteceu no caso do ex-líder sérvio bósnio Radovan Karadzic que, apesar de jamais ter sido preso, foi afastado do poder e da arena internacional como conseqüência do seu indiciamento em 1995.
Em vez disso, o pedido de Moreno-Ocampo poderá ter repercussões políticas negativas, ao criar muita desordem nas relações internacionais. Ele poderá endurecer a posição do governo sudanês, colocar em risco a sobrevivência das forças de manutenção da paz em Darfur e até induzir al-Bashir a se vingar, suspendendo ou dificultando ainda mais o fluxo de ajuda humanitária internacional aos dois milhões de pessoas desalojadas em Darfur. Além disso, o pedido de Moreno-Ocampo poderá alienar ainda mais as grandes potências (China, Rússia e Estados Unidos), que atualmente são hostis ao TPI.
Antonio Cassese foi o primeiro presidente do Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia (TPII) e depois presidente da Comissão Internacional de Inquérito das Nações Unidas sobre Darfur. Atualmente leciona Direito na Universidade de Florença. ©Project Syndicate/Europe´s World, 2008. www.project-syndicate.org
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