domingo, 13 de fevereiro de 2011

Günther Grass e os irmãos Grimm: a cultura e o estado alemães

Folha de São Paulo de 8 de fevereiro de 2011

CRÍTICA

Grass na trilha de Grimm

Gênese de um monumento linguístico

RESUMO
Em seu novo romance, Günter Grass mescla sua trajetória pessoal à da Alemanha ao narrar a hercúlea empreitada dos irmãos Grimm: um dicionário que retratasse a língua alemã em seus aspectos filológicos, literários e históricos. Deixado inconcluso por seus idealizadores, o dicionário só foi terminado nos anos 1960.

MARCUS VINICIUS MAZZARI

SE LUTAR COM PALAVRAS, como diz Drummond em célebre poema, é coisa vã, contar a história de tal luta pode não ser inteiramente sem fruto. Eis o que se propõe o Nobel de literatura Günter Grass em seu último livro, "Grimms Wörter" ["Palavras de Grimm"; 360 págs., € 29,80], publicado em agosto de 2010, pouco antes de completar 83 anos.
Günter Grass transporta o leitor para uma época em que livros, como o "Dicionário Grimm", eram produzidos de maneira artesanal. Inspirado por essa tradição, o autor não apenas criou as ilustrações para a edição alemã, mas também escolheu cuidadosamente, com o editor Gerhard Steidl e produtores gráficos, os melhores (e ecologicamente mais avançados) componentes da moderna produção de livros, desde o papel -passando por técnicas de impressão (com tintas de alta qualidade) e encadernação- até a tipologia usada, a fonte Bodoni, criada pelo tipógrafo e impressor italiano Giambattista Bodoni (1740-1813).

ALFABETO Em nove capítulos, organizados por letras do alfabeto, narram-se os esforços dos irmãos Jacob e Wilhelm Grimm em elaborar um grande dicionário da língua alemã, contemplando a origem e etimologia de cada palavra (com frequência, recuando-se ao gótico e ao antigo e médio alto-alemão), a mudança das acepções, assim como suas principais ocorrências na literatura, dos "monumentos linguísticos" da Idade Média até Goethe.
Embora não se trate de uma biografia, a narrativa se inicia com um fato marcante na trajetória dos irmãos: em 1837, o príncipe de Hannover -um dos incontáveis Estados alemães da época- revoga a constituição liberal promulgada três anos antes, e sete professores que lhe haviam prestado juramento realizam um ato de protesto. Entre estes estão os irmãos Grimm, que, como os demais, são despedidos e perdem todos os direitos civis. Jacob, mais veemente no protesto, é ainda expulso do principado e busca asilo no vizinho Estado do Hesse, onde foram coligidos, anos antes, os contos maravilhosos que celebrizaram o nome Grimm (depois os irmãos encontrarão asilo definitivo em Berlim). "Asilo" ("Asyl") figura assim no primeiro capítulo das "Palavras de Grimm" e enseja a Grass enveredar polemicamente pela questão do asilo político na atual Alemanha. Esse capítulo, afinal, é todo ele dedicado ao "A", "o mais nobre e primordial de todos os sons, ressoando plenamente do peito e da garganta, o primeiro som que a criança aprende a articular e que os alfabetos da maioria das línguas colocam com razão em seu início", conforme se lê na abertura do verbete "A", redigido por Jacob em nada menos do que sete colunas!

HISTÓRIA No ócio repentino a que os irmãos se veem condenados, chega a proposta de uma editora de Leipzig para a elaboração de um dicionário. Tem início assim um projeto filológico verdadeiramente monumental, em cujo desenvolvimento se espelharão as vicissitudes da história alemã ao longo de 123 anos. Pois, ao acreditar de início que poderiam concluir o dicionário em cerca de dez anos (e em sete volumes), os irmãos subestimaram fragorosamente o trabalho que tinham pela frente: ao falecer em 1859, Wilhelm dera conta apenas da letra "D"; Jacob, mais disciplinado e dotado de incomum capacidade de trabalho, conseguiu vencer o "A", "B", "C", "E" e avançar bastante no "F", falecendo (1863) em meio à redação do verbete "Frucht", fruto(a).
Dezenas de milhares de fichas com verbetes para as demais letras foram legadas aos sucessores, cujo trabalho virou o século, atravessou a Primeira Guerra, a República de Weimar, os doze anos do nacional-socialismo (quando, evidentemente, foram eliminados do dicionário todos os vestígios judaicos) e ainda -agora de maneira "pan-germânica", isto é, conduzido por filólogos das duas Alemanhas- 15 anos da Guerra Fria, concluindo-se em janeiro de 1961, com a publicação do 32º volume. (Ironicamente, o dicionário concebido também como estímulo cultural para a unificação dos Estados alemães -assim como, no plano material, a implantação de estradas de ferro- consuma-se ao mesmo tempo que se levantava o Muro de Berlim.)
Desse modo, narrar a acidentada gênese do dicionário oferece a Grass o ensejo para revisitar momentos cruciais da história alemã, não só os vividos pelos Grimm (como a revolução de 1848), mas também aqueles com os quais se entrelaça sua própria biografia, marcada pela Juventude Hitlerista e pelo posterior engajamento no movimento social-democrata.

FRUTOS O que, contudo, organiza a imbricação de temporalidades e trajetórias são justamente as letras do alfabeto, como o "A" de "asilo" ou o "B" de três ícones da social-democracia alemã (Bebel, Bernstein e Brandt). É fácil imaginar as dificuldades que tal procedimento impõe a uma tradução, pois se nos casos onomásticos ou de palavras próximas ao latim verifica-se larga coincidência (como "fructus": "fruht", em antigo alto-alemão), na maioria dos vocábulos mobilizados por Grass o tradutor terá de valer-se de artifícios para tentar colher alguns frutos.
O próprio capítulo da letra "F" tem por fulcro palavras como "Forschung", "pesquisa", ou "Freiheit", "liberdade" (o slogan "Freie Fahrt für freie Bürger", "caminho livre para cidadãos livres", é revelador da degradação sofrida pelo conceito de liberdade numa sociedade automobilística), enquanto o do "K" vem comandado, entre outras palavras, por "Krieg", "guerra", cujo significado, já para o tempo dos Grimm e ainda mais para o de Grass, não é preciso enfatizar.
Como nenhum outro livro desse autor, "Palavras de Grimm" se caracteriza por uma profusão de paronomásias, aliterações e assonâncias, que se intensificam nos poemas incrustados nos capítulos. Mestre soberano da língua alemã, Grass constrói a narrativa manipulando ludicamente as letras do alfabeto, e isso mesmo nos trechos em que reconstitui seus violentos embates ideológicos durante as décadas do pós-Guerra. Para não poucos leitores serão essas as passagens mais questionáveis do livro, pois em momento algum o autor parece admitir a possibilidade de não estar com a razão.

DARWIN E GRIMM Por outro lado, mesmo o leitor mais refratário a Grass dificilmente deixará de admirar passagens como a que desdobra, ainda sob o império da letra "F", um encontro fictício entre dois pesquisadores ("Forscher") contemporâneos: o inglês Charles Darwin, que demonstrou a ininterrupta mutação das espécies (sua origem e extinção por seleção natural, a sobrevivência mediante adaptação bem-sucedida), e o alemão Jacob Grimm, que investigou a fundo deslocamentos de sons, perdas e mutações linguísticas, do sânscrito até o alemão moderno.
Ou ainda a reconstituição do belíssimo "Discurso sobre a Velhice" proferido por Jacob na Academia Prussiana em 1860, um "tema que bate secamente à porta, impõe-se e quer ir para o papel, ainda que seja com mão trêmula", e que enseja assim a Grass considerações sobre a própria velhice (e a aproximação da morte). Fichte, Hegel, Herder e outras celebridades aparecem entre os ouvintes, mas a fantasia de Grass se confessa impotente em juntar-lhes Lutero (presente em centenas de citações do dicionário) e o bispo ariano Ulfila, que no século 4º traduziu o Novo Testamento para o gótico, sistematizando esse idioma já extinto.
A narrativa se fecha com outro extraordinário momento visionário, que suspende o tempo (afinal estamos agora na letra "Z", de "Zeit", "tempo") e mescla as temporalidades: transportando-nos para os dias imediatamente anteriores à construção do Muro, Grass fantasia um encontro com os inseparáveis irmãos no parque em que estes, durante os anos berlinenses, costumavam fazer passeios diários. O objetivo ("Ziel") é comunicar-lhes que o dicionário acaba de ser concluído, graças ao esforço final de filólogos de leste e oeste.
Eis, porém, que os Grimm acolhem a notícia com ceticismo e reserva, compenetrados -e aqui se poderia voltar ao verso drummondiano- do que há de vão na luta com as palavras, pois elas mudam continuamente, geram novos sentidos e levam os antigos à extinção: portanto, pondera Jacob, "não há diques suficientemente fortes para a língua", que, como um rio, "vai sempre fluindo e transbordando das margens".
Sobrevém então, única exceção no fluxo das transformações, a imagem da morte, "marco fronteiriço de todo poder, meta final ["Zielpunkt"] de toda aspiração", nas palavras do grande poeta barroco Gryphius, largamente representado no dicionário. Um melancólico acorde final, sem dúvida, mas o que verdadeiramente ressalta dessas "Palavras de Grimm" é a homenagem que o velho Grass rende aos esforços abnegados desses irmãos e -fruto mais belo ainda- a declaração de amor que faz à língua alemã.

Em nove capítulos, organizados por letras do alfabeto, narram-se os esforços dos irmãos Grimm em elaborar um grande dicionário da língua alemã

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