quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Constituição hondurenha não justifica o golpe

Folha de S. Paulo

30/09/2009

Pedro Estevam Serrano, especial para a Folha
ANÁLISE

O golpe em Honduras, que destituiu do exercício de seu mandato pelas armas um presidente eleito pelo voto, tem sido duramente repudiado pela comunidade internacional. Os golpistas usaram como justificativa o apoio da Corte Suprema e do Legislativo à deposição de Manuel Zelaya, fundando-se no artigo 374 da Constituição, que torna inválido qualquer plebiscito ou referendo que possibilite a renovação do mandato presidencial.
A partir dessa justificativa, alguns articulistas têm adotado como verdade uma suposta juridicidade do golpe, que teria, assim, um caráter universal de defesa da Constituição.
Tal conclusão, contudo, não resiste a uma leitura minimamente sistemática do texto constitucional de Honduras. O artigo 374 da Carta Magna hondurenha efetivamente impossibilita reforma constitucional que altere o mandato presidencial ou possibilite a reeleição do titular do respectivo mandato. Em verdade, tal dispositivo é clausula pétrea da Carta.
A clausula torna inválida qualquer alteração constitucional com tal objeto, mas não tem por si o condão de gerar a perda de mandato do presidente e muito menos dispensa o devido processo legal para tal sanção. O artigo 5º da Constituição impossibilita referendos ou plebiscitos que tenham por objeto a recondução do presidente ao mesmo mandato, sendo que o artigo 4º considera como obrigatória a alternância do exercício da Presidência, tornando crime de traição contra a pátria sua não observância.
Ora, a simples proposta de reeleição por um mandato do presidente da República não implica atentado contra o princípio da alternância, apenas altera o lapso de tempo pelo qual se dará tal alternância.
O único dispositivo no texto que poderia servir de fundamento à possível perda do mandato do presidente seria, provavelmente, a alínea 5 do artigo 42 da Carta, que torna passível da perda dos direitos de cidadania, entendida como a capacidade de votar e ser votado, a pessoa que "incitar, promover ou apoiar o continuísmo ou a reeleição do presidente".
Primeiro, a afirmação que a proposta de reforma constitucional de Zelaya implica inobservância de tal dispositivo merece algum reparo. O dispositivo pretende evitar o apoio e o incitamento ao continuísmo do detentor do mandato de presidente na época dos fatos. Zelaya tem afirmado que sua proposta é de possibilitar a reeleição de futuros presidentes, e não dele próprio. Assim, ele não teria apoiado, promovido ou incitado o continuísmo do atual presidente -ele próprio.
E, de qualquer forma, a alínea 6 do artigo 42 e diversos outros dispositivos da Constituição hondurenha determinam que a perda da cidadania deve ser aplicada em processo judicial contencioso e com direito a ampla defesa, observado o devido processo legal, o que não ocorreu de modo algum no procedimento adotado pelos golpistas e seus apoiadores.
Ainda que se considerasse que Zelaya cometeu crime ao ter formulado uma proposta de consulta popular contrariamente à Constituição, que o devido processo legal seria desnecessário por não previsão de procedimento específico de cassação de seu mandato na Carta hondurenha, que a Corte maior daquele país sancionou a decisão golpista de detê-lo, a forma de execução dessa decisão foi integralmente atentatória a dispositivos expressos da Constituição de Honduras.
O artigo 102 estabelece expressamente que nenhum hondurenho pode ser expatriado nem entregue pelas autoridades a um Estado estrangeiro. Ter detido Zelaya ainda de pijamas e tê-lo posto para fora do país de imediato atenta gravemente contra tal dispositivo.
A conduta golpista tratou-se de um cipoal de inconstitucionalidades, ao contrário do que postularam articulistas apressados, mais animados pela simpatia ao golpe de direita que por qualquer avaliação mais precisa e sistemática da Constituição hondurenha. Os atos praticados formam um atentado grave a diversos dispositivos da Carta Magna daquele país.
Em verdade, a conduta dos golpistas e dos que os apoiaram é que, clara e cristalinamente, constitui crime conforme o disposto no artigo 2º da Carta hondurenha, que tipifica como delito de traição da pátria a usurpação da soberania popular e dos poderes constituídos.
Podem querer alegar que, mesmo inconstitucional, toda a conduta golpista foi sustentada pela Corte maior. À Corte constitucional cabe o papel de interpretar a Constituição e não de usurpá-la às abertas. Sua autoridade é exercida não em nome próprio, mas como intérprete da Constituição, cabendo-lhe defendê-la, não destruí-la.
Ao agir como agiu, a Corte hondurenha realizou o que no âmbito jurídico tem-se como "poder constituinte originário", ou seja, uma conduta política e não jurídica, originária, de fundação de uma nova ordem constitucional. Uma ordem imposta, de polícia e não democrática. Na ciência política, o mesmo fenômeno tem outro nome: golpe de Estado.

PEDRO ESTEVAM SERRANO, mestre e doutor em direito do Estado, é professor de direito constitucional da PUC-SP

EUA e Cuba têm reunião sigilosa

O Estado de S. Paulo

30/09/2009

AP, Washington
Em visita à ilha, alta funcionária do Departamento de Estado teria mantido diálogo com vice-chanceler cubano
Uma funcionária de alto escalão do Departamento de Estado dos EUA manteve, em Cuba, um diálogo direto com a cúpula do regime castrista, revelaram três diplomatas americanos à Associated Press. Se confirmadas, as reuniões - que não haviam sido previamente anunciadas - serão o contato mais significativo entre Washington e Havana em décadas.

Em uma viagem de seis dias, Bisa Williams, vice-secretária do Departamento de Estado dos EUA para o Hemisfério Ocidental, teria se encontrado com o vice-chanceler cubano, Dagoberto Rodriguez. Os dois supostamente passaram por áreas da Província de Pinar del Rio atingidas por um furacão e visitaram fazendas estatais comunitárias.

O encontro de alto escalão ocorre após EUA e Cuba retomarem, no dia 17, o serviço postal entre os países, congelado desde 1963. Essa negociação, entretanto, havia sido previamente divulgada.

Para os funcionários americanos, que pediram anonimato, o simples fato de o encontro bilateral ter ocorrido seria mais significativo que seus resultados concretos. "Fomos a um terreno que não íamos há muito tempo", disse um dos diplomatas.

REAPROXIMAÇÃO
O porta-voz do Departamento de Estado dos EUA, Ian Kelly, admitiu que Bisa permaneceu em Cuba após as negociações sobre o serviço postal. Contudo, Kelly recusou-se a entrar em detalhes sobre o conteúdo das novas discussões.

"Bisa esteve com autoridades do governo e com vários representantes da sociedade civil para obter um panorama geral, em campo, sobre a situação econômica e política", resumiu Kelly.

Desde que assumiu, em janeiro, o presidente Barack Obama tem aliviado, com cautela, as restrições impostas pelos EUA à ilha comunista. Em abril, uma semana antes da Cúpula das Américas, em Trinidad e Tobago, Obama autorizou cubano-americanos a enviar dinheiro e visitar parentes em Cuba. Em seguida, iniciou contatos para retomar o serviço postal, concluídos no último dia 17.

No entanto, a secretária de Estado dos EUA, Hillary Clinton, havia alertado que Washington não pretende derrubar o embargo a Cuba - que já dura 47 anos - até que o país reverta seu regime de partido único e adote a democracia.

Na abertura anual da Assembleia-Geral da ONU, que ocorreu na semana passada em Nova York, o chanceler cubano, Bruno Rodriguez, discursou em defesa da normalização de relações entre Cuba e os EUA. Segundo o ministro, o governo de Raúl Castro está disposto a manter com Obama um "diálogo respeitoso", "que não submeta a independência, soberania e autodeterminação" de Cuba.

DIALOGO
Viagens e divisas: Às vésperas da Cúpula das Américas, em abril, Obama anuncia o fim das restrições de viagens de cubano-americanos à ilha e de envio de dinheiro a parentes em Cuba
Lei: Obama renova por seis meses a suspensão da cláusula da Lei Helms-Burton, de 1996, que permite a abertura de processos contra companhias de terceiros países que negociem com empresas cubanas
Propaganda: EUA desligam anúncio eletrônico de sua representação em Havana que era usado para atacar o regime cubano.

Banzé brasuca em Tegucigalpa

O Estado de S. Paulo

30/09/2009

José Nêumanne
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva é um gênio da política e disso não dá para duvidar. Reconhecer essa verdade, contudo, não esclarecerá se ele foi sincero (e, portanto, de um desconhecimento sesquipedal dos fatos) ou se apenas destilou um gosto peculiar pela ironia quando, na Cúpula América do Sul-África, execrou "retrocessos" institucionais em nosso continente - caso da deposição de Manoel Zelaya. Pois o fez ao lado do tirano líbio Muamar Kadafi, no poder há 40 anos, e do ditador de Zimbábue há 29 anos, Robert Mugabe. Falar em ironia no episódio chega a ser um cruel acinte à memória das vítimas de tantas ditaduras que prosperaram na América Central à sombra das bananeiras em flor. E, justiça seja feita, se se trata de mera ignorância, ela teria de ser imputada também a vários colegas de Lula, entre os quais o americano Barack Obama. Sem falar nos coleguinhas jornalistas que, rejeitando os fatos, classificam de "golpista" o governo de facto de Honduras.
Mel, como é apelidado o latifundiário eleito pela direita que aderiu ao bolivarianismo de Hugo Chávez, foi deposto, é verdade, e não submetido a um processo regular de impeachment, como o foi o primeiro presidente brasileiro eleito pelo voto popular depois da ditadura militar de 1964, Fernando Collor. Isso ocorreu, porém, à luz do ignorado artigo 239 da Constituição de Honduras, que reza peremptoriamente: "O cidadão que desempenhou a titularidade do Poder Executivo não poderá ser presidente ou vice-presidente da República. Quem quebrar este dispositivo ou propuser sua reforma, assim como aqueles que o apoiem direta ou indiretamente, terá de imediato cessado o desempenho de seu respectivo cargo e ficará inabilitado por dez (10) anos para o exercício de qualquer função pública."
Collor nem sonhou tentar o que Zelaya tentou: mudar a Constituição e convocar um plebiscito para permitir sua permanência no cargo, ao arrepio do Congresso e da Justiça. O ex-presidente hondurenho pediu apoio aos militares e, não o tendo obtido, demitiu o comandante das Forças Armadas. A Justiça mandou depô-lo, empossou o presidente do Congresso e não permitiu que ele se vestisse, embarcando-o de pijama para o exterior. O mundo inteiro se revoltou com a desfaçatez dos "golpistas" de Honduras por crassa ignorância das regras constitucionais vigentes num país minúsculo e miserável. Teceu-se, aí, com rapidez, a cortina de fumaça do governo "golpista" e do "martírio" do presidente eleito pelo povo e deposto por militares num novo e típico pronunciamiento latino-americano.
No afã de não repetir Bush, Barack Obama, assessorado por madame Clinton, absolutamente jejuna em quaisquer assuntos ao sul do Rio Grande, condenou a deposição, mas depois foi tratar de problemas mais relevantes. Com o "não temos nada com isso" dos xerifes do mundo, tudo se encaminhava para uma solução simples e cômoda do episódio: as eleições presidenciais poderiam ser realizadas e a paz democrática voltaria a reinar naquele antigo pedaço do império da United Fruit Company.
Aí entrou em ação o coronel golpista Hugo Chávez, que despachou de volta para o centro dos acontecimentos o presidente deposto. Este cruzou a fronteira, mas voltou por cima dos pés para, em seguida, empreender uma entrada espetacular em Tegucigalpa, mercê do engenho estratégico do amigo venezuelano e do peculiar conceito sobre democracia da companheirada brasileira. Dirigente sindical no fim da ditadura militar, quando o general Geisel cunhou sua "democracia relativa", Lulinha Paz e Amor inventou a "democracia de conveniência", adaptação petista da sentença de Artur Bernardes: "Para os amigos, tudo; para os inimigos, o rigor da lei." Ahmadinejad roubou a eleição no Irã? Isso não interessa ao Brasil, que não pode intervir na soberania iraniana. Ahmadinejad nega o holocausto? O fato de sermos amigos não nos força a pensarmos da mesma forma.
Mas o mesmo não vale para Honduras, que não tem projeto bélico nuclear nem bate boca com o vilão ianque. E foi assim que, quando o mundo inteiro esperava um banho de votos para lavar a mauvaise conscience pelo completo desconhecimento internacional das regras constitucionais hondurenhas, o governo brasileiro, para apoiar Chávez, foi à caça do apoio de tiranos africanos para repor Mel Zelaya no poder. Para tanto mandou às favas todas as regras do civilizado convívio internacional. Como nunca antes na história deste planeta, abrigou na "embaixada" brasileira não um fugitivo de um regime ditatorial, mas alguém que decidiu impor a própria vontade de continuar mandando em casa, sem dar bola para as instituições e a opinião pública locais. Esses episódios sempre terminam com um salvo-conduto ao abrigado na embaixada e seu asilo pelo país que o hospedou. Mas este não pode ser o caso: Zelaya não quer fugir de Honduras, mas ficar lá, sob a proteção de Lula, porque Chávez mandou.
O absurdo não para por aí. Lula tem exigido respeito absoluto ao território brasileiro da "embaixada" depois de ter chamado o embaixador de volta e mantido em Tegucigalpa apenas um encarregado de negócios. O governo de facto ainda não ocupou o prédio só para evitar pretextos intervencionistas, pois, como não reconhece a autoridade "golpista", o Brasil não tem mais embaixada em Tegucigalpa.
O ex-chanceler mexicano Jorge Castañeda tem razão ao se dizer - em entrevista a Lúcia Guimarães no caderno Aliás deste jornal, no domingo - espantado com a intromissão brasileira em Honduras. Estamos é fazendo um banzé brasuca estúpido em terreiro alheio, que, aliás, não tem interesse nem importância nenhuma para nós. Ao mundo, que tenta se esconder do vexame de ignorar as regras da democracia de um país pobre, o Brasil parece bater no peito e proclamar com arrogância: "Sou ignorante, sim, mas quem aí não é?"
José Nêumanne, jornalista e escritor, é editorialista do Jornal da Tarde

Nações Unidas e democracia

O Estado de S. Paulo

30/09/2009

Marco Maciel
A Organização das Nações Unidas (ONU), que reúne 192 países, instituiu o 15 de setembro como Dia Internacional da Democracia. Trata-se de atitude coerente com as origens da instituição e, por isso, o atual secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, pode dizer que "sistemas democráticos são essenciais para se alcançarem os objetivos de paz, direitos humanos e desenvolvimento no mundo".
No Ocidente, todos esses conceitos tiveram início com o célebre discurso de Péricles, em Atenas, três séculos antes de Cristo. Nele o orador apresentava os elementos fundamentais da democracia: governo "não de poucos, mas da maioria". E explicava o seu sentido ético: "Não é o fato de pertencer a uma classe, mas o mérito, que dá acesso aos postos mais honrosos; inversamente, a pobreza não é razão para que alguém, sendo capaz de prestar serviços à cidade, seja impedido de fazê-lo pela obscuridade de sua condição."
Num de seus livros, afirma Roberto Dahl: "A democracia não é uma fórmula particular de sociedade ou uma concreta forma de vida, mas sim um tipo específico de procedimento ou de técnica, em que a ordem social é criada e aplicada pelos que estão sujeitos a essa mesma ordem, para assegurar a liberdade política, entendida como autodeterminação."
Daí podemos concluir que a democracia, como puro procedimento, carece de um conteúdo substancial: não garante que as normas de ordem social tenham de ser justas ou equitativas, que expressem o interesse comum; assegura, tão somente, que todos quantos vivem sob sua sujeição tenham participado de sua criação.
Ademais, os conceitos elaborados pelo jurista Hans Kelsen nos levam, necessariamente, à distinção entre democracia representativa e democracia participativa. A "Teoria da Representação" é calcada na premissa de que os que tomam as decisões na democracia representativa são os representantes livremente escolhidos pelos eleitores. A eles cabe aprovar as leis que organizam a sociedade e o poder. Por seu turno, a democracia participativa significa um passo adiante: os representantes não apenas aprovam as leis; devem votá-las, desde que atendam aos requisitos de justiça e equidade e exprimam o interesse comum.
Considerado sob esse aspecto, o fundamento ético de representação política e seu papel insubstituível consiste na necessidade de enfrentar e superar as novas demandas sociais. Quando isso não ocorre, o resultado é o surgimento de crises que se sucedem sem que, muitas vezes, saibamos qual a sua causa.
Mas, para acentuar o pressuposto de que sem moralidade não se pode fazer democracia, voltemos a Péricles. Explicava o estratego e político grego: "No tocante às leis todos são iguais para a solução de suas divergências privadas. (...) Ao mesmo tempo que evitamos ofender os outros em nosso convívio privado, em nossa vida pública nos afastamos da ilegalidade principalmente por causa de um temor reverente, pois somos submissos às autoridades e às leis, especialmente àquelas promulgadas para socorrer os oprimidos e às que, embora não escritas, trazem aos transgressores uma desonra visível a todos."
Do tempo de Péricles aos atuais, houve novas e naturais conquistas democráticas se acrescentando na teoria e na prática. A preparação da Revolução Inglesa gerou a racionalização política de Locke; a da Revolução Americana produziu Jefferson e Madison, importantes constitucionalistas, e não só grandes líderes; a Revolução Francesa criou a doutrina da completa soberania do povo em Rousseau e a divisão dos Poderes segundo Montesquieu.
Abraham Lincoln e Woodrow Wilson completaram essas definições: Lincoln ao dizer que a democracia é o governo do povo, pelo povo e para o povo; Wilson acrescentando que nela as instituições são mais fortes que os homens. Isaiah Berlin, por sua vez, sintetizou essas liberdades em dois conjuntos complementares: liberdade da opressão econômica, religiosa, política e social; e liberdade para o sufrágio universal, educação pública e gratuita, e confraternização de classes, gêneros, culturas e civilizações pelo pluralismo.
Todos esses conceitos, oriundos das experiências históricas dos povos, referem-se ao conteúdo da democracia. Quanto à sua forma, também fundamental é a contribuição de Hans Kelsen. Foi ele que demonstrou a necessidade dos direitos das minorias e de um Parlamento com partidos políticos representativos e responsáveis, definindo a democracia necessariamente como democracia de partidos.
Também no Brasil temos os grandes teóricos e práticos da democracia. Joaquim Nabuco é nosso maior defensor dos direitos sociais, contra todas as formas de escravidão; Rui Barbosa, outro tanto dos direitos individuais e das liberdades públicas; Anísio Teixeira, os da educação para todos; Sobral Pinto, os direitos humanos. Aliás, em Pernambuco, Gilberto Freyre defendia a ecologia desde a primeira edição de Nordeste, em 1937, e, já na década de 1960, Vasconcelos Sobrinho estava entre os precursores dos movimentos ambientalistas no Brasil.
A Constituição é a suprema formalização da democracia, que, nos novos tempos, incorpora uma espessa declaração de direitos sociais e econômicos. As modernas Cartas Magnas, como a brasileira de 1988, acrescentam o reconhecimento de outras conquistas de direitos e deveres, inclusive no campo dos direitos humanos e da preservação do meio ambiente. Mais do que nunca, o mundo necessita expandir, por toda parte, os valores da democracia verdadeira, autêntica. Democracia social, com ética, participação e igualmente atenta ao território da cultura, pois neles estão alojados os valores que definem a identidade dos diferentes povos e nações.
Marco Maciel, senador,é membro da Academia Brasileira de Letras

Conselho de Direitos Humanos endossa relatório sobre Gaza

Folha de S. Paulo

30/09/2009

Luciana Coelho, de Genebra
Países instam Israel e palestinos a investigarem supostos crimes de guerra, mas EUA criticam texto

Os países do Conselho de Direitos Humanos da ONU foram unânimes ontem em pedir que israelenses e palestinos investiguem acusações de violações mútuas citadas por uma missão do organismo que examinou o conflito de dezembro e janeiro na faixa de Gaza, sendo a única e óbvia exceção Israel.
O consenso é raro por incluir os EUA, que, embora criticando duramente o relatório produzido pela equipe do juiz sul-africano Richard Goldstone, exortaram seu aliado a investigar as "acusações críveis".
A principal das muitas recomendações de Goldstone é a exigência de que os lados apresentem em seis meses um relatório investigativo das violações citadas no texto. Esses documentos seriam submetidos a especialistas independentes designados pelo conselho.
Caso eles indiquem que não há esforço para punir violadores, o conselho deve levar o caso aos procuradores do Tribunal Penal Internacional. Mas Israel não integra o TPI, o que solapa uma eventual denúncia.
Israel rejeitou o texto, que diz ignorar seu direito de autodefesa, e afirmou já ter conduzido mais de cem inquéritos.
Já os demais 26 países e grupos que se pronunciaram ontem foram favoráveis à investigação. Os EUA disseram que "encorajam Israel a usar os procedimentos apropriados de revisão para investigar toda alegação crível".
Mas rechaçaram o relatório como "profundamente falho" ao "transformar inferências em fatos" e equiparar "um Estado democrático ao Hamas", grupo que tacha de terrorista.
O relatório acusa Israel e o Hamas de terem cometido crimes de guerra no conflito iniciado em 27 de dezembro último, cujo saldo foi de 1.400 mortos palestinos e 13 israelenses. As acusações mais graves recaem sobre Israel, como visar civis e usar munição proibida.
Goldstone rechaçou acusações de que sua equipe tenha sido politicamente motivada. Mas admitiu que o trabalho, amparado em conversas com autoridades e testemunhas, teve a abrangência restrita. Israel não autorizou a entrada da missão em seu território.

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

A visão americana de Zelaya

Folha de São Paulo, segunda-feira, 28 de setembro de 2009



ENTREVISTA

JULIA SWEIG

Honduras expõe tensão recente entre governos de Brasil e EUA
Para especialista, diplomacia brasileira pode ter "atenção mais positiva" da Casa Branca com tom mais firme sobre o Irã

O "SURPREENDENTE" protagonismo que o Brasil adquiriu na crise em Honduras, em contraste com a posição vacilante dos EUA, expõe a tensão recente entre os dois países, depois de um início que parecia promissor após a posse de Barack Obama, em janeiro. O Brasil vê sua expectativa de ser a ponte para uma relação renovada entre a Casa Branca e a região frustrada pelo novo governo, "incrivelmente vulnerável" à oposição conservadora no Congresso e até agora sem porta-voz para a política hemisférica. Mas é possível que os EUA esperem posição mais firme do Brasil numa questão que consideram vital, o programa nuclear do Irã.

CLAUDIA ANTUNES
DA SUCURSAL DO RIO

Este é, em resumo, o diagnóstico feito por Julia Sweig, diretora para a América Latina do Council on Foreign Relations, que reúne parte da elite dos estudiosos da política externa americana. Sweig conversou com a Folha por telefone e e-mail no fim de semana. Abaixo, trechos da entrevista.




FOLHA - A Casa Branca parecia satisfeita com a situação que havia antes da volta do presidente deposto Manual Zelaya a Honduras, de esperar para ver o que fazer depois das eleições lá. Qual a sua opinião?
SWEIG - Não sei. Se você pensar que a estratégia do Departamento de Estado e da Casa Branca sempre foi se mover vagarosamente, até que houvesse eleições que eles pudessem descrever como legítimas, pode-se dizer que estavam satisfeitos. Mas na semana retrasada veio o anúncio de que eles [do governo americano] finalmente imporiam sanções adicionais [ao governo golpista]. Portanto, ainda havia dúvidas sobre se as eleições poderiam ser reconhecidas. E agora a ONU anunciou que vai retirar sua assistência eleitoral. Acho, francamente, que ninguém sabe o que fazer.

FOLHA - Por que os EUA se moveram tão devagar?
SWEIG - O fator importante é que este governo, pelo menos no que diz respeito à América Latina, tem tentado excessivamente acomodar a oposição no Congresso, fantasmas da Guerra Fria que saíram do armário com esse evento [o golpe hondurenho]. Depois que Obama e [a secretária de Estado] Hillary Clinton disseram as coisas certas sobre restaurar o governo legítimo, foram alvo de uma chuva de críticas por supostamente facilitar a aliança chavista na região. E se mostraram incrivelmente vulneráveis. Claro que o oposto é verdadeiro. Ao se moverem com mais força para restaurar Zelaya, eles teriam esvaziado a retórica de [o presidente da Venezuela, Hugo] Chávez. Essas forças no Congresso ainda seguram a confirmação do novo secretário de Estado assistente para a região [Arturo Valenzuela] e do novo embaixador no Brasil [Thomas Shannon, ex-responsável pelo hemisfério no Departamento de Estado].

FOLHA - Qual o impacto regional de o Brasil ter recebido Zelaya na embaixada?
SWEIG - É cedo para dizer. Mas acho que isso surpreendeu, porque o Brasil não tem tradicionalmente esse ativismo em sua política externa. É muito ativo nos bastidores, na resolução de conflitos na América do Sul etc. Mas Honduras é o último lugar na América Latina onde você esperaria que o Brasil assumisse um papel ativo. Acho que a frustração foi crescendo, o compromisso verbal dos EUA com a democracia não foi apoiado por fatos. E isso, claro, dá ao Brasil uma oportunidade para elevar sua posição na região.

FOLHA - Mas o governo brasileiro também é acusado de intromissão nos assuntos internos hondurenhos. Qual o limite entre intervenção indevida e a defesa da democracia?
SWEIG - Esse é um longo debate. A Carta Democrática da OEA (Organização dos Estados Americanos) não é um documento intervencionista. Há uma grande diferença entre tomar medidas para corrigir violações de princípios articulados na Carta e intervir em assuntos internos de outro Estado. Mas o risco de ser uma potência nesta região ou globalmente é que você fica vulnerável à acusação de intervenção, seja por ação ou seja por omissão. Do meu ponto de vista, a disposição do Brasil em enfatizar a legitimidade do pleito de Zelaya pela volta à Presidência não deve ser confundida com intervenção no sentido clássico. Dito isso, pode ser que ir da retórica à prática, permitindo que Zelaya se estabeleça na embaixada, seja um passo ambicioso demais mesmo para o compromisso do governo Lula em restaurar a ordem democrática.

FOLHA - E o que isso significa na relação do Brasil com os EUA?
SWEIG - Não vi os EUA dizerem nada publicamente sobre a decisão do Brasil de permitir a entrada de Zelaya na embaixada. Você viu?

FOLHA - O chanceler Celso Amorim e a embaixadora americana na ONU tiveram uma discussão [na sexta-feira]. A embaixadora disse que o Brasil recorrera ao fórum errado para tratar de Honduras.
SWEIG - Lembre-se de que hoje não há nenhuma liderança respondendo pela América Latina no governo americano. Temos o Afeganistão, a questão nuclear no Irã. O último lugar em que este governo quer pôr sua energia é na região. O que eu diria é que há tensões entre EUA e Brasil, como essa conversa sobre Honduras sugere. Mas isso pode forçar uma atenção [ao Brasil] em nível superior, porque os dois governos, seja no G20, no tema da mudança climática, em Cuba, precisam um do outro. Ambos têm a ganhar com relações mais fortes e menos polarizadas.

FOLHA - O acordo para o uso pelos EUA de bases na Colômbia contribuiu para essa tensão?
SWEIG - Nos primeiros nove meses deste ano, o Brasil queria ser visto como a potência na América do Sul que poderia ajudar Washington a recuperar sua posição na região. Mas ocorreu que, primeiro, do ponto de vista brasileiro os EUA não se moveram com a rapidez esperada na questão de Cuba [o governo brasileiro tem insistido no fim do embargo]. Depois, vieram as bases. Acho que falhas da diplomacia americana levaram a uma batalha desnecessária. Se a consulta à região tivesse sido mais séria, a tensão poderia ter sido evitada.

FOLHA - Quem está no comando da diplomacia para a região nos EUA?
SWEIG - Ninguém sabe. Thomas Shannon submergiu, porque não quer pôr em risco sua confirmação para a embaixada em Brasília. Não acho que isso [a disputa sobre as bases] teria acontecido se ele e Valenzuela não tivessem sido tão enfraquecidos pelo caso de Honduras. E aí é que tudo se junta.

FOLHA - Há preocupação nos EUA com o acordo militar entre Brasil e França?
SWEIG - Diria que há alguma preocupação, não porque seja a França, que é aliada dos EUA, mas porque reflete a redução da influência dos EUA na região. Mas há algo importante sobre o Irã.

FOLHA - O que é?
SWEIG - Com o aumento do foco sobre o Irã, haverá uma expectativa em Washington de que uma potência como o Brasil deve se juntar a França, Reino Unido, EUA, Alemanha, China e Rússia [o grupo que iniciará negociações com Teerã na próxima quinta-feira] na advertência ao Irã de que haverá um preço a pagar por não cumprir as regras da AIEA (Agência Internacional de Energia Atômica) ou enganá-la.
A percepção de que o presidente Lula se preocupa pouco com as pretensões nucleares do Irã ou com a anormalidade extrema das últimas eleições [iranianas] pode alimentar a sensação em Washington de que o problema brasileiro em Honduras poderia ter uma atenção mais positiva dos EUA se o Brasil expressasse posição mais dura sobre o Irã.
Proliferação nuclear e Irã são questões vitais para os EUA, e a impressão de que Lula tenta ficar acima disso pode diminuir a posição brasileira em temas mais perto de casa. O Brasil pode condenar as instalações secretas iranianas [denunciadas por EUA, França e Reino Unido na semana passada] sem sacrificar suas prioridades nas relações Sul-Sul.

domingo, 27 de setembro de 2009

A dimensão moral

Folha de São Paulo 27 de setembro de 2009

A dimensão moral
Axel Honneth, herdeiro da Escola de Frankfurt, defende a existência de uma "luta por reconhecimento" dos sujeitos e grupos em toda dinâmica social, mesmo nos conflitos que parecem ser puramente "materiais'


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Os conflitos por redistribuição representam formas implícitas de luta por reconhecimento
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Para o filósofo alemão Axel Honneth, um dos problemas para a superação da crise socioeconômica na Europa é a ausência de ideias novas na política: "Todos os caminhos parecem estar de algum modo obstruídos".
Diretor do Instituto de Pesquisa Social, onde se desenvolveu a chamada Escola de Frankfurt, ele se refere à ineficiência econômica da social-democracia e à resistência dos liberais em limitar o mercado.
Honneth, que faz palestra sobre o pensamento alemão contemporâneo amanhã (às 19h, no Instituto Goethe, em São Paulo, com entrada franca), ressalta que os intelectuais também precisam renovar o repertório.
O pensador, representante da teoria crítica e ex-assistente de Jürgen Habermas, afirma à Folha que a fundamentação herdada dos frankfurtianos -"fusão" de Hegel (1770-1831), Marx (1818-83) e Freud (1856-1939)- envelheceu.
O autor de "Luta por Reconhecimento" (ed. 34) defende, no entanto, que uma teoria crítica renovada deve ter um papel importante em repensar o capitalismo visando à emancipação dos indivíduos. Na entrevista abaixo, ele também comenta sua expectativa em relação ao presidente dos EUA, Barack Obama, e defende seu conceito de "reconhecimento" como fundamental para a compreensão dos conflitos sociais no mundo atual.




FOLHA - O sr. chega ao Brasil no momento em que acontecem eleições gerais na Alemanha. Apesar da profunda crise econômica, a atual primeira-ministra, Angela Merkel, é a favorita e os debates eleitorais estão em baixa temperatura. Como entender isso? Estaria ligado a um processo mais geral de perda de vitalidade das democracias?
AXEL HONNETH - Vocês têm razão quando afirmam que, apesar dos crescentes problemas sociais, o interesse público nas próximas eleições continua muito pequeno, mesmo com toda a tentativa de se chamar a atenção com a encenação midiática.
Uma explicação que me parece apenas superficial dessa atitude diz respeito à "grande coalizão", nesse período de governo que está chegando ao fim, entre democratas cristãos e social-democratas, a qual dificultava entrever alternativas programáticas entre ambos os partidos. Parece-me mais decisivo, no entanto, o fato de, em amplos círculos da esfera pública política, imperar uma certa perplexidade sobre os instrumentos apropriados para a superação da crise social.
Todos os caminhos parecem estar de algum modo obstruídos. O recurso às velhas receitas de sucesso da social-democracia se tornou impossível, pois o aumento dos programas sociais tem por consequência o crescimento do desemprego.
Desconfia-se das promessas dos partidos da "esquerda" porque pretendem realizar a justiça social desconsiderando o processo de unificação europeu. Em suma, não temos mais um conhecimento imediato do problema e concordamos apenas que temos de impor fortes limites ao mercado capitalista. Porém, com exceção dos liberais, todos os partidos concordam em relação a isso, a despeito das poucas polarizações e da falta de interesse.

FOLHA - Em tempos recentes, o termo "reconhecimento" adquiriu um papel importante na esfera pública e na vida cotidiana. Mas muitas vezes é empregado em sentidos bem pouco críticos, como quando pessoas se dizem reconhecidas simplesmente por terem mais dinheiro, mais poder ou mais prestígio do que outras. Como a ideia crítica de reconhecimento que o sr. propõe se distingue desse tipo de situação? Há casos de "falso" reconhecimento?
HONNETH - É claro que existem essas formas de "falso" reconhecimento. E elas inclusive aumentam nas sociedades capitalistas liberais do Ocidente porque seguem o programa neoliberal, que, ao apelar positivamente para sua flexibilidade e mobilidade, leva as pessoas a aceitarem relações desregulamentadas de trabalho.
Também a história nos mostrou casos de uso "ideológico" da retórica do reconhecimento. Pensem nas imagens culturalmente difundidas da "boa dona de casa" ou do "bravo guerreiro", todas gestos públicos de reconhecimento que preenchem essencialmente a função de motivar as pessoas a consentir com posições de subordinação.
Contudo, é difícil determinar o limite exato entre formas "falsas" ou "corretas" de reconhecimento. Eu diria resumidamente que todas as formas de reconhecimento que são adequadas e promovem a emancipação são aquelas que, com base em princípios já aceitos de reconhecimento, possibilitam ampliar social e substancialmente sua aplicação.
Para falar mais concretamente: lá onde até então as qualidades desrespeitadas de uma pessoa ou grupo depararam socialmente pela primeira vez com reações afirmativas, lá onde grupos até agora excluídos foram providos de direitos que uma maioria já dispunha, em todos esses casos se trata de uma expansão de relações de reconhecimento que promovem a emancipação.

FOLHA - O sr. sempre formulou sua teoria do reconhecimento tendo como referência a teoria crítica, de nomes como Horkheimer, Adorno, Marcuse e Habermas. Em um texto de 1982, o sr. escreveu: "Embora frequentemente declarada morta, a teoria crítica demonstra uma espantosa capacidade de sobrevivência". Em 2007, o sr. inicia seu inventário da teoria crítica com palavras que parecem ir na direção contrária: "Na mudança para o novo século, a teoria crítica parece ter se tornado uma figura de pensamento do passado". O que aconteceu nos últimos 25 anos para que sua avaliação tenha mudado tão drasticamente?
HONNETH - Tenho a impressão de que não existe em absoluto uma oposição entre essas duas passagens citadas por vocês. Na última citação eu pretendi mostrar, sobretudo, que as figuras de pensamento da primeira geração da teoria crítica, com a fusão de Hegel, Marx e Freud, hoje certamente envelheceram do ponto de vista teórico. Não podemos agir como se esse instrumental conceitual ainda pudesse ser utilizado atualmente sem qualquer modificação.
Por outro lado, porém, procurei mostrar na primeira citação que o interesse pela teoria crítica nunca foi abandonado, pois com tal postura crítica ainda vinculamos a esperança de uma análise dos males sociais a uma perspectiva emancipatória. Considerando juntamente as duas citações, podemos chegar à ideia de manter as fortes pretensões da velha teoria com meios teóricos modificados.

FOLHA - Recentemente, o sr. criticou a escassez de investigações críticas em torno de "um conceito emancipatório, humano de trabalho". E enfatizou que "uma parte crescente da população luta tão somente para ter acesso a alguma chance de uma ocupação capaz de assegurar a subsistência; outra parte executa atividades em condições precariamente protegidas e altamente desregulamentadas; uma terceira parte, por fim, experimenta no momento a rápida desprofissionalização e a terceirização de seus postos de trabalho, que anteriormente ainda tinham um status assegurado". O sr. vê contratendências a esses movimentos destrutivos? Ou um "trabalho dotado qualitativamente de sentido", como o sr. defende, é hoje apenas um ideal?
HONNETH - Essa é uma pergunta muito complexa, que pode ser respondida empiricamente ou a partir de uma teoria social. Se nos detemos nas investigações empíricas, então se nota que o desejo de uma melhora nas condições de trabalho nunca foi abandonado pelos próprios empregados. Esse interesse, embora seja negativamente perceptível na forma de recusas de trabalho e de manifestações de insatisfação, estende-se não apenas à garantia de um salário capaz de assegurar a subsistência, mas a uma melhora qualitativa da situação de trabalho, ou seja, à criação de atividades suficientemente complexas e que não causam danos psíquicos ou físicos.
Sob o ponto de vista da teoria social, creio poder mostrar que a aprovação de tais formas de trabalho "dotadas de sentido" está estruturada nos próprios princípios normativos do mercado capitalista: este promete aos empregados desde o início não apenas um salário adequado à manutenção da própria vida, mas também uma participação na reprodução social que seja abrangente e condizente com a divisão do trabalho.

FOLHA - A queda do muro de Berlim significou há 20 anos a bancarrota do socialismo de Estado. A atual crise econômica parece marcar o fim do neoliberalismo. Que balanço o sr. tiraria desse período? Na sua opinião, o presidente norte-americano Barack Obama representa o símbolo de um novo período?
HONNETH - Sim, eu estou otimista o suficiente para ver de fato em Obama algo como a forma histórica do impulso político por mudança -não apenas no que diz respeito à relação malograda e infeliz com o mundo islâmico, mas também com referência à necessidade de uma correção política da economia neoliberal.

FOLHA - Desde a publicação no Brasil de seu livro "Luta por Reconhecimento", em 2003, a recepção de seu trabalho tem passado em grande medida pela polêmica que o sr. travou com a teórica crítica norte-americana Nancy Fraser, que criticou sua posição dizendo que uma centralidade do conceito de reconhecimento acabaria por relegar a segundo plano as lutas por redistribuições materiais da riqueza. Que balanço o sr. faz dessa polêmica hoje?
HONNETH - Eu receio que as objeções de Nancy Fraser nunca modificaram realmente o meu modo de pensar. Além disso, estou convencido de que os conflitos por redistribuição representem formas implícitas de luta por reconhecimento porque, na demanda por uma maior participação no total da riqueza social, visam ao reconhecimento de um benefício que até então não foi adequadamente honrado nem tornado digno -quem insiste em aprofundar o vão entre os dois tipos de conflito social perde de vista a dimensão moral de todas as lutas por distribuição.

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

G20 pretende substituir FMI como fórum da nova economia

Folha de S. Paulo
25/09/2009
Clóvis Rossi, enviado especial a Pittsburgh

G20 substitui FMI como fórum econômico
Se fórmula for aprovada pelos chefes de governo, grupo assumirá papel para discutir uma eventual nova política global O G20, por meio de seus ministros de Economia e presidentes de bancos centrais, assumirá o papel de fórum para a discussão de uma eventual nova política econômica global, capaz de corrigir os desequilíbrios que estiveram na origem da crise agora próxima de ser controlada.
Essa era a fórmula que estava praticamente definida ontem pelos negociadores do grupo das maiores economias do planeta para ser submetida aos chefes de governo que encerram hoje a terceira cúpula do clube em apenas dez meses.Foi a maneira encontrada para contornar a resistência de países como China e Alemanha à proposta norte-americana, que conferia ao FMI (Fundo Monetário Internacional) poderes praticamente de xerife para vigiar a adequação de políticas nacionais que tenham repercussão em outros países.
Na prática, significa que todos os países do G20 aceitam, com maior ou menor entusiasmo, a ideia de que os desequilíbrios que levaram a crise precisam ser enfrentados.Em resumo, o desequilíbrio está dado pelo excesso de exportações chinesas (mas também alemãs e japonesas) e pelo excesso de consumo norte-americano.
Críticas
Anteontem, o ministro chinês do Exterior já havia criticado a proposta de dar ao FMI amplos poderes até para impor parâmetros de política econômica e vigiar o respeito a eles.
Ontem, foi a vez da chanceler alemã, Angela Merkel: "Não se deve buscar temas substitutos de forma a deixar de lado a regulação do sistema financeiro", disparou.
Na verdade, o argumento central dos países que se opuseram ao projeto norte-americano é a soberania. A globalização não avançou o suficiente para que os Estados-nações entreguem fatias importantes de sua soberania a organismos multinacionais.
Por isso mesmo, a proposta que constava ontem do esboço de declaração final deixa para o FMI apenas o que já faz hoje, ou seja, a assessoria técnica.
Mesmo o G20 não terá músculos para impor políticas. Será um foro em que os ministros e presidentes de bancos centrais conversarão entre si sobre suas respectivas políticas econômicas, com atenção especial e reforçada sobre os efeitos que elas possam ter nos seus pares -e no resto do mundo, claro.
O texto preliminarmente acertado (mas que pode ser alterado pelos chefes de governo) "evitou que haja qualquer mecanismo intrusivo", na descrição obtida pela Folha com os negociadores.
Mesmo sem se tornar "intrusivo", o fato é que o G20 ganha, se a proposta acabar sendo aprovada, um novo selo de qualidade como gerente da economia global.
Tanto é assim que o primeiro-ministro britânico, Gordon Brown, presidente de turno do G20 até o fim do ano, anunciou ontem que está deslocando sua ministra de Negócios, Shriti Vadera, para conselheira para o G20, "como parte do esforço para transformar o grupo em uma nova forma de governança global", segundo a avaliação feita pelo jornal "Financial Times".
Marco Aurélio Garcia, o assessor diplomático do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, festeja: "Fica claro [com o novo papel do G20] que o G8 não é mais a instância que organiza o debate. Houve uma transferência de competências".Foi o Brasil -que não participa do G8, limitado aos sete países ricos mais a Rússia- que propôs que o G20 tivesse um "upgrade", passando de reunião de ministros e presidentes de bancos centrais para cúpulas de chefes de governo.

Abrigando a democracia

Folha de S. Paulo
25/09/2009

Aloizio Mercadante

TENDÊNCIAS/DEBATES

O ABSURDO e violento cerco militar à Embaixada do Brasil em Tegucigalpa, promovido por um governo golpista condenado de forma unânime pela comunidade internacional, inclusive por graves violações dos direitos humanos, gerou por aqui reações desencontradas.

Muitos, como eu, condenaram a violência perpetrada contra uma missão protegida pela Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas. Redigi moção de repúdio que foi aprovada no Senado Federal.

Nela, afirmei o óbvio: o cerco à embaixada é inaceitável, o abrigo a Manuel Zelaya é necessário e sua volta ao cargo de presidente constitui-se numa demanda legítima da comunidade internacional.

No plano mundial, muitos governos manifestaram sua solidariedade ao Brasil. Entretanto, para meu espanto, internamente há aqueles que vêm aproveitando o episódio para atacar o Brasil e seu governo.

Os argumentos são precários. O principal tange à suposta participação do Brasil no retorno de Zelaya ao seu país. O encarregado de Negócios do Brasil em Tegucigalpa já explicou que foi surpreendido pelo telefonema de uma deputada hondurenha no meio da noite. O próprio presidente Zelaya esclareceu que o governo brasileiro não tinha conhecimento do seu plano, pois ele temia que sua estratégia vazasse.

É provável que o presidente Zelaya tenha entrado em seu país pensando em pedir abrigo ao Brasil. De fato, o Brasil, que se rege nas relações internacionais, entre outros princípios, pelo da "concessão de asilo político", jamais negaria abrigo ao único governante de Honduras reconhecido pela ONU e pela OEA. Muitos outros governos teriam feito a mesma coisa.

Além disso, Zelaya escolheu o Brasil pelo atual prestígio internacional do país e pelo firme compromisso brasileiro com a democracia expresso, entre outras atitudes, pela recusa de Lula em buscar um fácil terceiro mandato, o que diferencia nosso regime político de outros da região, como o de Hugo Chávez (Venezuela), Álvaro Uribe (Colômbia) e o daquele que pretendia Zelaya em Honduras.

Apesar disso, alguns teimam em "investigar" a participação do Brasil na volta de Zelaya. Outros fazem uma defesa do governo golpista de Honduras, alegando que a saída de Zelaya foi decidida na Suprema Corte daquele país, como se o opaco verniz legal de uma ação que se iniciou e se encerrou em menos de 24 horas pudesse legitimar um inconfundível golpe de Estado, que resultou na expulsão, "manu militari", de Zelaya de Honduras, ainda de pijamas.

Embaixadores já de pijamas, deserdados de uma política externa pouco memorável, emprestaram seu vetusto brilho às arengas da oposição conservadora. Houve até mesmo quem comparasse o Brasil de hoje aos EUA de antanho, por suposta disposição de se ingerir nos assuntos internos de outros países, que contrastaria com a nossa tradição de não intervenção.

Bem, comparar a concessão de abrigo diplomático às outrora ubíquas maquinações contra governos democraticamente eleitos na América Latina nos parece, no mínimo, um exagero. Ademais, os sinais estão trocados. Antigamente se intervinha, por meios violentos e escusos, para derrubar governos democráticos. Hoje se pressiona pela volta da normalidade democrática.

Tal pressão é inteiramente legítima. Golpes de Estado, é bom lembrar, são incompatíveis com a Carta da ONU e a Carta Democrática Interamericana. O Brasil participa, assim, de um esforço internacional para que Honduras reencontre o caminho do diálogo e da democracia. Sem ingerências indevidas.

É claro, no entanto, que o abrigo a Zelaya e a violenta reação do governo golpista de Honduras colocou o Brasil numa situação incômoda.

Mas o país vem fazendo a coisa certa: concedeu o refúgio, instituto fundamental das relações internacionais, do qual tantos brasileiros já se beneficiaram, especialmente no golpe de Pinochet, no Chile, e solicitou ao secretário-geral da OEA a mediação do conflito hondurenho.

Neste momento delicado, considero ser impositiva a defesa intransigente do Brasil, do direito internacional e da democracia. Outros, movidos por interesses menores, preferem atacar o país e defender o indefensável, para contentamento do governo golpista de Tegucigalpa.

Enquanto isso, na ONU, Lula, o presidente mais popular do planeta, segundo a revista "Newsweek", arranca aplausos dos líderes internacionais ao afirmar que o mundo demanda a volta de Zelaya e uma nova ordem internacional menos assimétrica e dotada de instituições democráticas. O mundo, de fato, demanda o abrigo da democracia.

ALOIZIO MERCADANTE , 55, economista e professor licenciado da PUC-SP e da Unicamp, é senador da República pelo PT-SP.

'Brasil não é polícia regional, diz hondurenho'/entrevista

Folha de S. Paulo

23/09/2009

O embaixador hondurenho Delmer Urbizo defende a eleição de novembro como saída para a crise política em seu país. E revolta-se com a falta de apoio dos vizinhos -nenhum deles reconhece o governo Roberto Micheletti, que ele representa na ONU em Genebra. No dia 14, Urbizo foi retirado do Conselho de Direitos Humanos da ONU, após embaixadores latinos, liderados pelo Brasil, pedirem a anulação da sua credencial. Mas, apesar da voz desanimada com que atendeu em sua casa ao telefonema da Folha ontem, Urbizo diz manter o moral alto.E frisou que suas credenciais seguem válidas -a Folha apurou que a ONU ainda tramita o pedido de anulação.

FOLHA - Como fica sua situação aqui na ONU? URBIZO - Foi um atropelo inqualificável. Estou protestando ao presidente do Conselho de Direitos Humanos. Porque sigo sendo embaixador, e, mesmo assim, me impedem de assistir às sessões.

FOLHA - Como o sr. vê o papel do Brasil nesse episódio?URBIZO - Estranhei. Sempre respeitamos o presidente Lula. Mudaram as coisas. A política bilateral vai mal.

FOLHA - A questão do Brasil é com o governo Micheletti. URBIZO - A questão é que o Brasil está assumindo... [O presidente dos EUA, Barack] Obama já disse isso, que está encarregando o Brasil de fazer o que os EUA faziam antes e cuidar dos interesses latino-americanos. Mas os países latino-americanos não vão procurar o Brasil para cuidar dos interesses deles.

FOLHA - O Brasil virou uma polícia regional, é isso? URBIZO - Eram assim os EUA. Mas eles não querem mais saber da região, logo...

FOLHA - Muitos veem no Brasil o contrapeso ao venezuelano Hugo Chávez. URBIZO - Que contrapeso? Se Chávez realmente fosse um problema para os EUA, os EUA o apagariam do mapa. Eles não continuam comprando petróleo dele? Todos têm negócio com Chávez.

FOLHA - Por que ninguém reconheceu seu governo? URBIZO - Quantas ditaduras há no mundo e não fizeram nada? A nossa não é uma ditadura. Querem usar um país pequeno e vulnerável para fazer justiça internacional. Esse governo é transitório. Haverá eleição em 29 de novembro, eleições aprovadas no ano passado. Não há ruptura constitucional.

FOLHA - A volta de Zelaya pode atravancar o processo? URBIZO - É provável que isso traga alguma perturbação, mas as eleições vão acontecer. Essa é a aposta do povo hondurenho, eleições transparentes. Há apoio internacional para isso, só a OEA [Organização dos Estados Americanos] não quer.

FOLHA - Quem apoiou? URBIZO - O Clube Rotary internacional vai mandar observadores. As câmaras de comércio latino-americanas. A sociedade civil, as igrejas...Logo o governo ganhará nas urnas o respaldo de seus eleitores. Quantos governos militares saíram com eleições legítimas? No nosso caso, só há um presidente de fato, porque o outro foi destituído pelo Congresso. Agora querem dizer que as eleições não são a saída. Como resolver o problema institucional se não assim?E te digo, o único país com ditadura feroz que não fez uma Comissão da Verdade foi o Brasil. Qual a estatura moral brasileira? Não se pode ter dupla moral na política exterior.

"A situação é difícil porque os golpistas sequestraram o país"/Entrevista

O Globo

23/09/2009

Ricardo Galhardo

Presidente deposto nega acordo prévio com o Brasil e diz que escolheu o país pela identidade democrática de LulaRefugiado há dois dias na embaixada do Brasil em Honduras, o presidente deposto Manuel Zelaya disse ao GLOBO, por telefone, que escolheu a representação brasileira devido ao caráter democrático do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, um amigo de Honduras, segundo ele. Zelaya negou que tenha acertado a estratégia durante sua visita ao Brasil, no dia 12 de agosto. Ele aproveitou para pedir uma ação mais enérgica dos organismos internacionais contra o governo golpista.Ricardo Galhardo

O GLOBO: Como está a situação na na Embaixada do Brasil? MANUEL ZELAYA: A situação é difícil porque os golpistas sequestraram o país e há um cerco militar à embaixada.

Tem havido muita violência desde sua volta ao país, na segundafeira? ZELAYA: Na verdade, a violência começou no dia 28 de junho. Tem havido muitos assassinatos, raptos, torturas. Há informes da comissão de direitos humanos (da ONU). A violência tem uma preponderância muito forte em um regime militar provocado por um golpe de Estado.

Em que pé estão as negociações com o governo de facto para sua restituição ao poder? ZELAYA: Até o momento, não foi realizada nenhuma negociação.Os golpistas responderam às minhas solicitações de diálogo com balas, bombas, mortes e ameaças às pessoas que estavam participando das manifestações de resistência.

As organizações internacionais como OEA têm ajudado? ZELAYA: Elas têm manifestado boas intenções, mas o que esperamos é que ajam com mais energia frente a esta situação de opressão ao povo hondurenho, já que os ataques são armados e violentos e estão criando demasiada repressão em Honduras.

Por que o senhor escolheu a Embaixada do Brasil? ZELAYA: Pela profunda identificação democrática do presidente Lula e pelo esforço que ele tem liderado para sustentar nosso país com muitos projetos. O presidente Lula é um amigo de Honduras.l

O abrigo na embaixada foi negociado com o presidente Lula durante sua última visita ao Brasil? ZELAYA: Não, não foi negociado.Não dei conhecimento ao presidente Lula sobre essa situação. Isso foi decidido por mim assim que entrei aqui na capital de Honduras.Nada foi acertado previamente com o Brasil.

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Acordo climático de Copenhague

Folha de São Paulo, segunda-feira, 21 de setembro de 2009




ENTREVISTA DA 2ª - DAVID VICTOR

Acordo de Copenhague não fará diferença em emissão
Para professor da Universidade da Califórnia em San Diego, próximo tratado do clima corre o risco de cometer os mesmos erros do Protocolo de Kyoto

NUM MOMENTO em que o mundo pede pressa na negociação de um novo acordo do clima, a posição do cientista político americano David Victor parece bizarra: ele quer que os governos parem um pouco para conversar. Uns dois anos. Não é que Victor seja contra um acordo forte contra os gases-estufa. Ao contrário: o que ele quer, diz, é evitar que os diplomatas reunidos em Copenhague em dezembro produzam um acordo cheio de promessas impossíveis de cumprir.

DA REDAÇÃO

Victor diz temer um tratado que, no final das contas, não leve a uma redução significativa de emissões e ainda provoque desistências de alguns países no caminho. Um acordo assim já existe: o Protocolo de Kyoto, que tem metas pífias de redução para países desenvolvidos e que foi abandonado pelo maior poluidor do planeta, os EUA. "Estamos cometendo quase os mesmos erros que cometemos com Kyoto", afirma Victor, professor de Relações Internacionais da Universidade da Califórnia em San Diego e um dos mais célebres críticos do acordo no mundo acadêmico. Segundo o pesquisador, autor do livro "The Collapse of the Kyoto Protocol" ("O Colapso do Protocolo de Kyoto"), de 2001, a falta de negociações sérias no ano passado, a extrema complexidade do tema e o número alto de países na mesa (190) têm tudo para produzir em Copenhague um repeteco de Kyoto. "Não há chance nenhuma de que Copenhague sozinha vá produzir um acordo que fará diferença nas emissões", afirmou. "É inevitável que o mundo terá um aquecimento muito grande, mesmo que os governos resolvam levar o problema a sério." Na semana passada, em artigo na revista científica "Nature", Victor propôs que Copenhague produza um acordo provisório e que os principais países poluidores, entre os quais o Brasil, comecem a sério a discutir políticas de redução. Em entrevista à Folha, ele explica sua ideia. (CLAUDIO ANGELO)






FOLHA - Há um grau de interesse público enorme na conferência de Copenhague. Por quê?
DAVID G. VICTOR - Eu acho que virou um grande assunto porque é o próximo grande marco na discussão de clima. O último grande marco foi Kyoto, e Copenhague é a extensão lógica de Kyoto, porque é a data-limite para o tratado substituto. Então é por isso que muitas pessoas começaram a acompanhar o assunto. E muitas empresas também, porque isto se tornou uma grande questão para a maneira como elas operam.

FOLHA - Será que, por causa desse interesse das empresas, o combate à mudança climática não aconteceria mesmo sem um acordo?
VICTOR - O que acontece agora é que o que a maioria dos países está fazendo é o que eles fariam mesmo na ausência de um tratado. Os europeus estão muito preocupados com a mudança climática e estão correndo para fazer o que têm feito, os EUA estão fazendo um um pouquinho, o Brasil está um pouco envolvido. O desafio para os diplomatas é produzir um acordo que faça os países fazerem mais do que fariam sozinhos.

FOLHA - Quais são as chances de que Copenhague vá produzir um acordo significativo para o clima?
VICTOR - Não há chance nenhuma de que Copenhague sozinha vá produzir um acordo que fará diferença nas emissões, porque os processos industriais e de agricultura que causam emissões mudam muito lentamente. O máximo que podemos esperar de Copenhague é mais um passo num longo processo de botar pressão nas atividades que causam emissões.

FOLHA - O sr. publicou em 2001 um livro chamado "O Colapso do Protocolo de Kyoto", no qual explicava por que o acordo havia falhado. Nesta semana, escreveu um artigo para a revista "Nature" dizendo que o acordo de Copenhague também ruma para o fracasso. Quais são os problemas de um e de outro?
VICTOR - O principal é que as pessoas não tratam esse assunto como o problema econômico sério que ele é. Elas ainda o tratam como um problema ambiental. Quando você pensa isso como um problema ambiental, você tem um conjunto de ferramentas no kit dos diplomatas: você fixa metas progressivas, dá só um par de anos para a negociação, as pessoas que negociam são ministros de Ambiente. Essas ferramentas funcionam muito bem para problemas ambientais, mas o aquecimento global é um tipo de problema totalmente diferente. Estamos hoje, em pleno processo rumo a Copenhague, cometendo quase os mesmos erros que fizemos com Kyoto.

FOLHA - Que foram...
VICTOR - Que foram: quase nenhuma negociação séria sobre compromissos aconteceu no ano que antecedeu a assinatura de Kyoto. O mesmo está acontecendo agora. O número de assuntos na mesa é imenso. O número de países é maciço. Parece que não aprendemos nada com a experiência de Kyoto, porque estamos repetindo-a. É por isso que eu fui tão pessimista no artigo da "Nature". Parte disso é porque o problema da mudança climática é muito, muito difícil de resolver. Parte disso é porque os instrumentos desenhados -os tratados, as organizações- não estão à altura da tarefa. E o que me preocupa é que nós vamos perder mais dez anos patinando, fingindo que estamos atacando o problema com organizações que não têm capacidade para isso. E o que eu acho que isso significa é que é inevitável que o mundo terá um aquecimento muito grande, mesmo que os governos resolvam levar o problema a sério. Eu não falo muito disso no artigo da "Nature", mas a consequência disso é que os governos terão de gastar muito mais tempo pensando em adaptação, em geoengenharia e em coisas que são preocupações quando você vê um futuro que terá um bocado de aquecimento global.

FOLHA - O Banco Mundial soltou um relatório nesta semana reconhecendo que será quase impossível não ultrapassarmos as 450 partes por milhão de CO2 na atmosfera, o nível considerado seguro. Qual o sr. acha que será a concentração final antes de estabilizarmos o clima?
VICTOR - A meta de 450 partes por milhão só existe enquanto ninguém realmente tentar cumpri-la. Quando tentarem, verão que vamos passar longe dela. A meta de 2C que a União Europeia pôs na sua lei e que o G8 pôs no seu comunicado vai ser estourada.

FOLHA - O acordo não está certo e os instrumentos não estão à altura da tarefa, na sua opinião. Qual seriam o acordo certo e os instrumentos certos então?
VICTOR - O que eu acho que precisa ser feito é separar as questões sobre as quais os governos já concordam com as questões sobre as quais é impossível haver acordo nos próximos dois anos. Na primeira categoria, o que você faz é um acordo provisório, que garanta os compromissos que os governos já se dispuseram a adotar. E aqui houve um enorme progresso: o Japão fez uma promessa neste ano, a União Europeia fez no ano passado, neste semestre, espero, os EUA farão uma promessa, a Índia e a China estão se preparando. Algo que possa cimentar essas propostas, para que os governos não fiquem chateados com a falta de progresso. A segunda coisa que você precisa fazer é iniciar um processo pelo qual os compromissos que os governos adotam um em relação ao outro possam ser mais orientados pelas coisas que eles podem de fato cumprir. Um dos problemas de Kyoto é que as pessoas chegaram lá fazendo promessas de corte de emissões que não podiam honrar. Precisamos de um processo que se concentre num punhado de governos: Brasil, Indonésia, EUA, UE, Japão, China. Esses governos podem se juntar e fazer promessas uns aos outros, e essas promessas não seriam só o que eles podem fazer já, mas também o que eles se dispõem a fazer caso outros governos façam mais.

FOLHA - Mas como esses compromissos condicionados seriam diferentes de metas voluntárias que não resolvem o problema?
VICTOR - O melhor exemplo é o que a UE está fazendo agora. Eles têm uma meta, que é voluntária, e dizem: se vocês, nos outros países, fizerem coisas parecidas, nós aumentaremos para tanto. E não é esse o diálogo que estamos tendo. O único estilo de negociações que temos no momento é todo mundo falando o que vai fazer voluntariamente, e outros estão até mesmo dizendo que, se os outros não fizerem, eles não vão fazer nada.

FOLHA - O sr. também critica a pressa nas negociações. Mas nós não temos muito tempo, certo? Não podemos gastar mais dois anos falando sobre o assunto.
VICTOR - Eu acho que esta é a realidade (risos). Temos dois caminhos a seguir: um, estamos numa crise e precisamos andar mais rápido e ter tudo finalizado em Copenhague. E o resultado desse caminho será outro Kyoto, onde os grandes países aderem ao acordo e outros não, onde as metas são aguadas e as pessoas ficam pensando que se fez algo a respeito, quando na verdade não há nenhuma estratégia séria. O segundo caminho, o que eu defendo, é que você precisa de mais tempo para que a negociação possa refletir o que os governos podem de fato fazer. E isso, infelizmente, é um processo lento. De uma maneira ou de outra, estaremos comprometidos com uma quantidade grande de aquecimento global.

FOLHA - Muita gente acha que o custo da mitigação vai se tornar proibitivo se demorarmos mais para fazer a emissões começarem a declinar. Além disso, há o temor de um colapso no mercado de carbono, que ficaria sem regra nenhuma depois de 2012, quando Kyoto expira.
VICTOR - A questão mais importante agora é a dos mercados de carbono. Ele precisa de um sinal muito claro de Copenhague de que os governos não vão deixar essas regulações desaparecerem. É por isso que você precisa de um acordo provisório.

FOLHA - Que elementos deveriam constar desse acordo "redux" de Copenhague que o sr. propõe?
VICTOR - Os tópicos centrais são metas e prazos que todos poderão adotar e extensão do MDL [Mecanismo de Desenvolvimento Limpo de Kyoto, que prevê venda de créditos de países pobres para países ricos]. Um problema central é que há um grande número de créditos que não são créditos.

FOLHA - Ele não teve eficácia nenhuma, é isso?
VICTOR - Eu não diria que não teve eficácia nenhuma, porque, se você procurar bem, vai encontrar um bom projeto. Mas, no geral, o MDL tem sido um desastre. Você olha para as curvas de emissões e para os projetos individuais, as pessoas estão recebendo investimentos novos para coisas que seriam feitas de qualquer maneira.

FOLHA - Os países em desenvolvimento devem adotar metas obrigatórias como as de Kyoto?
VICTOR - Eu sempre fui cético quanto a metas tipo Kyoto, porque os governos não controlam emissões: os governos controlam a política e a economia, e é a economia que produz emissões. Nos países em desenvolvimento, em especial, há uma relação muito fraca entre a política dos governos e as metas de emissão que eles podem adotar. Eles não sabem qual será seu nível de emissão no futuro. Então eles fariam como a Rússia, que é oferecer metas de redução muito mais altas que suas emissões. E nós não queremos que isso aconteça.

FOLHA - O sr. está para ser pai pela primeira vez. Como é ter um filho quando o sr. acredita que o cenário para o futuro dele será tão turvo?
VICTOR - Toda geração tem algum problema que a deixa muito deprimida. A última geração teve as armas nucleares. A anterior teve a depressão econômica, a outra teve a guerra na Europa. Eu acho que, no longo prazo, nós vamos resolver o aquecimento global, com tecnologias radicalmente novas. Mas vai levar muito tempo. Daqui até lá, teremos algum aquecimento aqui, e parte dessas mudanças climáticas pode ser muito catastrófica.

Idioma russo entra em declínio na antiga URSS

O Estado de S. Paulo

21/09/2009

Países que integravam bloco estão fortalecendo idiomas nativos, o que pode levar o russo a perder 150 milhões de fluentes na língua até 2025

Clifford J. Levy, The New York Times

Num canto da livraria Bukvatoriya, localizada nesta capital da península da Crimeia, há estantes repletas de obras literárias tão provocativas para o Kremlin quanto um batalhão de soldados da Otan. Os livros são clássicos - de autoria de Oscar Wilde, Victor Hugo, Mark Twain e Shakespeare - que foram traduzidos para o ucraniano, em edições destinadas ao público adolescente. Um Harry Potter que lança feitiços em ucraniano também está presente nas prateleiras. As crianças podem até ler Púchkin, o mais celebrado autor russo, em versão traduzida.

Duas décadas atrás, a demanda por tais obras seria pequena, levando-se em conta que a maioria das pessoas nesta região pertence à etnia russa. Mas o governo da Ucrânia está exigindo que o idioma ucraniano seja empregado em todas as facetas da sociedade, especialmente nas escolas, para garantir que a próxima geração seja orientada por Kiev, e não por Moscou.

A medida ucraniana se tornou um ponto de ignição nas relações entre os dois países e reflete a queda no status do idioma russo não apenas na antiga União Soviética, mas no ex-bloco soviético como um todo.

"O declínio no emprego do idioma russo é um golpe duríssimo para Moscou, nas esferas econômicas e sociais", disse o sociólogo Aleksei Vorontsov, da Universidade Herzen, em São Petersburgo. "Trata-se de um rompimento de laços, deixando a Rússia mais isolada."

O russo parece estar sofrendo mais do que outros idiomas coloniais porque os países obrigados a absorvê-lo possuem uma identidade nacional mais coesa e estão agora promovendo seus idiomas nativos para afirmar sua soberania.

O russo é um dos poucos grandes idiomas a perder adeptos e, segundo estimativas, o total de pessoas fluentes no russo cairá para 150 milhões até 2025, um grande declínio em relação aos 300 milhões de versados no russo que havia em 1990, um ano antes do colapso soviético.

A situação foi agravada pela crise demográfica na própria Rússia, que até 2050 pode perder 20% de sua população.

A queda no número de pessoas fluentes no russo não se deu de maneira uniforme nos territórios da antiga URSS. Nas ex-repúblicas soviéticas do Quirguistão, o russo ainda é adotado.

Mas países que se sentiam subjugados pelo poder soviético, como os Estados bálticos, se vingaram por meio da obrigatoriedade da fluência em seus idiomas nativos como pré-requisito para a concessão de cidadania .

Esta disputa é mordaz na Ucrânia, especialmente na península da Crimeia, no Mar Negro, um antigo território russo onde 60% da população de 2 milhões pertencem à etnia russa. Muitas escolas na Crimeia empregam o russo como primeiro idioma, mas com frequência são obrigadas a lecionar matérias como geografia e matemática em ucraniano. E exames nacionais de grande importância são feitos exclusivamente em ucraniano.

O ressentimento pode aparecer em lugares inusitados. Quando o Tajiquistão, ex-república soviética localizada na Ásia Central, disse há poucos meses que rebaixaria o status da língua russa, exigindo que os documentos do governo fossem redigidos exclusivamente no idioma tajique, um grito de protesto emanou daqueles que enxergavam o russo como uma ponte para a Rússia e para o mundo exterior. Nos ex-satélites soviéticos na Europa, onde o russo foi essencialmente expurgado com o comunismo, houve uma restauração pequena, mas notável.

O idioma é útil no comércio com o mercado da Rússia e, assim, a procura por aulas de russo tem aumentado. A ironia é que a língua franca do comunismo passou a ser um recurso usado na busca do capitalismo.

"A situação é difícil porque os golpistas sequestraram o país"/

O Globo

Assunto: O Mundo/entrevista
Título: 1b A situação é difícil porque os golpistas sequestraram o país
Data: 23/09/2009
Crédito: Ricardo Galhardo

Presidente deposto nega acordo prévio com o Brasil e diz que escolheu o país pela identidade democrática de Lula

Refugiado há dois dias na embaixada do Brasil em Honduras, o presidente deposto Manuel Zelaya disse ao GLOBO, por telefone, que escolheu a representação brasileira devido ao caráter democrático do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, um amigo de Honduras, segundo ele. Zelaya negou que tenha acertado a estratégia durante sua visita ao Brasil, no dia 12 de agosto. Ele aproveitou para pedir uma ação mais enérgica dos organismos internacionais contra o governo golpista.

Ricardo Galhardo

O GLOBO: Como está a situação na na Embaixada do Brasil? MANUEL ZELAYA: A situação é difícil porque os golpistas sequestraram o país e há um cerco militar à embaixada.

Tem havido muita violência desde sua volta ao país, na segundafeira? ZELAYA: Na verdade, a violência começou no dia 28 de junho. Tem havido muitos assassinatos, raptos, torturas. Há informes da comissão de direitos humanos (da ONU). A violência tem uma preponderância muito forte em um regime militar provocado por um golpe de Estado.

Em que pé estão as negociações com o governo de facto para sua restituição ao poder? ZELAYA: Até o momento, não foi realizada nenhuma negociação.

Os golpistas responderam às minhas solicitações de diálogo com balas, bombas, mortes e ameaças às pessoas que estavam participando das manifestações de resistência.

As organizações internacionais como OEA têm ajudado? ZELAYA: Elas têm manifestado boas intenções, mas o que esperamos é que ajam com mais energia frente a esta situação de opressão ao povo hondurenho, já que os ataques são armados e violentos e estão criando demasiada repressão em Honduras.

Por que o senhor escolheu a Embaixada do Brasil? ZELAYA: Pela profunda identificação democrática do presidente Lula e pelo esforço que ele tem liderado para sustentar nosso país com muitos projetos. O presidente Lula é um amigo de Honduras.

l O abrigo na embaixada foi negociado com o presidente Lula durante sua última visita ao Brasil? ZELAYA: Não, não foi negociado.

Não dei conhecimento ao presidente Lula sobre essa situação. Isso foi decidido por mim assim que entrei aqui na capital de Honduras.

Nada foi acertado previamente com o Brasil.

'A situação é difícil porque os golpistas sequestraram o país'/Entrevista

O Globo

23/09/2009
Ricardo Galhardo

Presidente deposto nega acordo prévio com o Brasil e diz que escolheu o país pela identidade democrática de Lula

Refugiado há dois dias na embaixada do Brasil em Honduras, o presidente deposto Manuel Zelaya disse ao GLOBO, por telefone, que escolheu a representação brasileira devido ao caráter democrático do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, um amigo de Honduras, segundo ele. Zelaya negou que tenha acertado a estratégia durante sua visita ao Brasil, no dia 12 de agosto. Ele aproveitou para pedir uma ação mais enérgica dos organismos internacionais contra o governo golpista.

Ricardo Galhardo

O GLOBO: Como está a situação na na Embaixada do Brasil? MANUEL ZELAYA: A situação é difícil porque os golpistas sequestraram o país e há um cerco militar à embaixada.

Tem havido muita violência desde sua volta ao país, na segundafeira? ZELAYA: Na verdade, a violência começou no dia 28 de junho. Tem havido muitos assassinatos, raptos, torturas. Há informes da comissão de direitos humanos (da ONU). A violência tem uma preponderância muito forte em um regime militar provocado por um golpe de Estado.

Em que pé estão as negociações com o governo de facto para sua restituição ao poder? ZELAYA: Até o momento, não foi realizada nenhuma negociação.

Os golpistas responderam às minhas solicitações de diálogo com balas, bombas, mortes e ameaças às pessoas que estavam participando das manifestações de resistência.

As organizações internacionais como OEA têm ajudado? ZELAYA: Elas têm manifestado boas intenções, mas o que esperamos é que ajam com mais energia frente a esta situação de opressão ao povo hondurenho, já que os ataques são armados e violentos e estão criando demasiada repressão em Honduras.

Por que o senhor escolheu a Embaixada do Brasil? ZELAYA: Pela profunda identificação democrática do presidente Lula e pelo esforço que ele tem liderado para sustentar nosso país com muitos projetos. O presidente Lula é um amigo de Honduras.

l O abrigo na embaixada foi negociado com o presidente Lula durante sua última visita ao Brasil? ZELAYA: Não, não foi negociado.

Não dei conhecimento ao presidente Lula sobre essa situação. Isso foi decidido por mim assim que entrei aqui na capital de Honduras.

Nada foi acertado previamente com o Brasil.

'A situação é difícil porque os golpistas sequestraram o país'/Entrevista

O Globo

23/09/2009
Ricardo Galhardo

Presidente deposto nega acordo prévio com o Brasil e diz que escolheu o país pela identidade democrática de Lula

Refugiado há dois dias na embaixada do Brasil em Honduras, o presidente deposto Manuel Zelaya disse ao GLOBO, por telefone, que escolheu a representação brasileira devido ao caráter democrático do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, um amigo de Honduras, segundo ele. Zelaya negou que tenha acertado a estratégia durante sua visita ao Brasil, no dia 12 de agosto. Ele aproveitou para pedir uma ação mais enérgica dos organismos internacionais contra o governo golpista.

Ricardo Galhardo

O GLOBO: Como está a situação na na Embaixada do Brasil? MANUEL ZELAYA: A situação é difícil porque os golpistas sequestraram o país e há um cerco militar à embaixada.

Tem havido muita violência desde sua volta ao país, na segundafeira? ZELAYA: Na verdade, a violência começou no dia 28 de junho. Tem havido muitos assassinatos, raptos, torturas. Há informes da comissão de direitos humanos (da ONU). A violência tem uma preponderância muito forte em um regime militar provocado por um golpe de Estado.

Em que pé estão as negociações com o governo de facto para sua restituição ao poder? ZELAYA: Até o momento, não foi realizada nenhuma negociação.

Os golpistas responderam às minhas solicitações de diálogo com balas, bombas, mortes e ameaças às pessoas que estavam participando das manifestações de resistência.

As organizações internacionais como OEA têm ajudado? ZELAYA: Elas têm manifestado boas intenções, mas o que esperamos é que ajam com mais energia frente a esta situação de opressão ao povo hondurenho, já que os ataques são armados e violentos e estão criando demasiada repressão em Honduras.

Por que o senhor escolheu a Embaixada do Brasil? ZELAYA: Pela profunda identificação democrática do presidente Lula e pelo esforço que ele tem liderado para sustentar nosso país com muitos projetos. O presidente Lula é um amigo de Honduras.

l O abrigo na embaixada foi negociado com o presidente Lula durante sua última visita ao Brasil? ZELAYA: Não, não foi negociado.

Não dei conhecimento ao presidente Lula sobre essa situação. Isso foi decidido por mim assim que entrei aqui na capital de Honduras.

Nada foi acertado previamente com o Brasil.

Brasil não é polícia regional, diz hondurenho/entrevista

Folha de S. Paulo

23/09/2009

Luciana Coelho, de Genebra
entrevista

O embaixador hondurenho Delmer Urbizo defende a eleição de novembro como saída para a crise política em seu país. E revolta-se com a falta de apoio dos vizinhos -nenhum deles reconhece o governo Roberto Micheletti, que ele representa na ONU em Genebra.
No dia 14, Urbizo foi retirado do Conselho de Direitos Humanos da ONU, após embaixadores latinos, liderados pelo Brasil, pedirem a anulação da sua credencial. Mas, apesar da voz desanimada com que atendeu em sua casa ao telefonema da Folha ontem, Urbizo diz manter o moral alto.
E frisou que suas credenciais seguem válidas -a Folha apurou que a ONU ainda tramita o pedido de anulação.

FOLHA - Como fica sua situação aqui na ONU?
URBIZO - Foi um atropelo inqualificável. Estou protestando ao presidente do Conselho de Direitos Humanos. Porque sigo sendo embaixador, e, mesmo assim, me impedem de assistir às sessões.

FOLHA - Como o sr. vê o papel do Brasil nesse episódio?
URBIZO - Estranhei. Sempre respeitamos o presidente Lula. Mudaram as coisas. A política bilateral vai mal.

FOLHA - A questão do Brasil é com o governo Micheletti.
URBIZO - A questão é que o Brasil está assumindo... [O presidente dos EUA, Barack] Obama já disse isso, que está encarregando o Brasil de fazer o que os EUA faziam antes e cuidar dos interesses latino-americanos. Mas os países latino-americanos não vão procurar o Brasil para cuidar dos interesses deles.

FOLHA - O Brasil virou uma polícia regional, é isso?
URBIZO - Eram assim os EUA. Mas eles não querem mais saber da região, logo...

FOLHA - Muitos veem no Brasil o contrapeso ao venezuelano Hugo Chávez.
URBIZO - Que contrapeso? Se Chávez realmente fosse um problema para os EUA, os EUA o apagariam do mapa. Eles não continuam comprando petróleo dele? Todos têm negócio com Chávez.

FOLHA - Por que ninguém reconheceu seu governo?
URBIZO - Quantas ditaduras há no mundo e não fizeram nada? A nossa não é uma ditadura. Querem usar um país pequeno e vulnerável para fazer justiça internacional. Esse governo é transitório. Haverá eleição em 29 de novembro, eleições aprovadas no ano passado. Não há ruptura constitucional.

FOLHA - A volta de Zelaya pode atravancar o processo?
URBIZO - É provável que isso traga alguma perturbação, mas as eleições vão acontecer. Essa é a aposta do povo hondurenho, eleições transparentes. Há apoio internacional para isso, só a OEA [Organização dos Estados Americanos] não quer.

FOLHA - Quem apoiou?
URBIZO - O Clube Rotary internacional vai mandar observadores. As câmaras de comércio latino-americanas. A sociedade civil, as igrejas...
Logo o governo ganhará nas urnas o respaldo de seus eleitores. Quantos governos militares saíram com eleições legítimas? No nosso caso, só há um presidente de fato, porque o outro foi destituído pelo Congresso. Agora querem dizer que as eleições não são a saída. Como resolver o problema institucional se não assim?
E te digo, o único país com ditadura feroz que não fez uma Comissão da Verdade foi o Brasil. Qual a estatura moral brasileira? Não se pode ter dupla moral na política exterior.

“O Brasil teme se aproximar dos EUA” - Entrevista

Época

21/09/2009

Juliano Machado
Não há mais como fugir do debate de uma parceria diplomática ativa com Washington, diz o especialista

As declarações de amizade dos presidentes Barack Obama e Luiz Inácio Lula da Silva, na prática, não melhoraram nada as relações entre Brasil e Estados Unidos. É o que pensa o especialista em relações internacionais Matias Spektor, autor do recém-lançado Kissinger e o Brasil. Para Spektor, a política de aproximação com o Brasil planejada pelo ex-secretário de Estado americano Henry Kissinger nos anos 70 foi “o único momento de nossa história em que houve a intenção de uma parceria ativa com os americanos”. A experiência de Kissinger fracassou, mas abre uma reflexão sobre os prejuízos da visão de que é preciso escolher entre alinhamento automático e distanciamento para lidar com os EUA, afirma Spektor.

O QUE FAZ
Doutor em relações internacionais pela Universidade de Oxford, é coordenador do Centro de Estudos sobre Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas

O QUE PUBLICOU
Kissinger e o Brasil (Editora Zahar, 2009). Seu segundo livro será uma análise comparativa de países emergentes entre 1961 e 1981

ÉPOCA – O que levou Henry Kissinger a buscar uma aproximação com o Brasil?
Matias Spektor – Os anos 70 marcaram um ciclo de expansão de países periféricos, como se fossem os Brics antes dos Brics (termo cunhado em 2001 para designar as economias do Brasil, da Índia, da China e da Rússia). O papel de Kissinger foi perceber, contra a opinião dominante nos Estados Unidos, que o Brasil não só crescia a passos acelerados, como também tinha uma política externa ambiciosa. Portanto, convinha trazê-lo para perto e transformá-lo em parte do pilar do projeto americano de governança global. Era um visionário, mas ao mesmo tempo a maioria de suas apostas foi errada.

ÉPOCA – Por quê?
Spektor – Kissinger apostou na ditadura brasileira, implodida pela crise econômica. Defendeu o apartheid na África do Sul. No Irã, apoiou o xá Reza Pahlevi, expulso pela revolução islâmica. Ele detectou um mundo emergente que devia ser integrado, mas quase sempre errou na maneira de fazer essa integração.

ÉPOCA – Qual foi o significado da assinatura, em 1976, do Memorando de Entendimento entre Brasil e EUA?
Spektor – Foi a primeira vez em que os EUA se comprometeram a manter encontros diplomáticos regulares com um país em desenvolvimento. Reconheceram que o Brasil importava para o cenário mundial. Essa iniciativa de Kissinger, costurada com (Antônio Francisco Azeredo da) Silveira (chanceler brasileiro de 1974 a 1979, durante o governo de Ernesto Geisel), foi o único momento da nossa história em que houve a intenção de uma parceria ativa com os americanos. A expectativa americana era que o Brasil fosse um aliado na Guerra Fria e coordenasse as políticas dos EUA na América do Sul. Mas a cooperação nunca decolou.

ÉPOCA – Quais eram os entraves?
Spektor – Do lado americano, vários oficiais do Departamento de Estado eram contra nomear um país da América do Sul como nação-chave. Eles temiam uma reação negativa de outros países, como a Argentina, que então rivalizava conosco no continente. E recusavam o apoio a uma ditadura brutal, que torturava seus presos. Do lado do Itamaraty, fazer negócio com os americanos parecia arriscado. Engajar-se com os EUA implicava se expor a novas “áreas de conflito” com a superpotência e assumir responsabilidades no continente que o Brasil não queria. O plano de aproximação era um esforço pessoal de Kissinger, que sabia das hesitações do Brasil. Quando Kissinger deixou o poder, com a chegada à Casa Branca do democrata Jimmy Carter (1977-1981), a iniciativa chegou ao fim.

ÉPOCA – Como se relacionam hoje o Brasil e os EUA?
Spektor – Muitas das dinâmicas daquele período continuam vigentes, entre elas a percepção, sintetizada numa frase do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, de que “quanto menos a gente entrar no radar dos EUA, melhor”. O chanceler Silveira dizia na época das negociações com Kissinger que havia o risco de aumentar os “acidentes de rota”. Exceção a essa tentativa de parceria ativa, nossa relação com os EUA é regida por duas situações básicas: alinhamento automático, que é o Brasil seguir os EUA a reboque, como ocorreu no pós-Segunda Guerra Mundial e logo depois do golpe de 1964, ou o distanciamento, que é a visão dominante. Isso foi a tônica na Guerra Fria e perdura até hoje. O Brasil tem relações mais distantes com os EUA que qualquer um dos outros Brics.

Se o Brasil quiser ser potência emergente de fato,
vai ser forçado a entrar no radar dos EUA

ÉPOCA – Obama disse que o presidente Lula era “o cara”. Essa afeição entre os presidentes pode melhorar a relação?
Spektor – Não. É uma percepção fora de lugar. O fato de dois chefes de Estado terem empatia mútua não se traduz, necessariamente, em programas de cooperação. Nos principais pontos da agenda, seja comércio, proliferação nuclear, promoção da democracia ou segurança internacional, Brasil e EUA têm interesses conflitantes. Sorrisos em fotos e o fato de Obama ter usado com Lula uma expressão corriqueira nos EUA não têm relevância estratégica nenhuma. O que existe é uma expectativa americana de o Brasil se tornar um país disposto a pagar os custos de gerir a ordem internacional. E o Brasil tem sido muito relutante.

ÉPOCA – Isso frustra os EUA?
Spektor – De certa forma, sim. Na percepção americana, o Brasil está jogando numa liga menor que seu peso sugere. O Brasil é relativamente tímido, na visão de Washington. Contrariamente ao que se acredita por aqui, os EUA querem que o Brasil se fortaleça. É como me disse Kissinger, quando o entrevistei em 2006 para escrever o livro: “Eu queria muito que o Brasil fosse mais poderoso. Queria acelerar sua ascensão”.

ÉPOCA – Qual foi o envolvimento de Kissinger na Operação Condor, uma aliança entre ditaduras do Cone Sul nos anos 1970 para caçar opositores?
Spektor – Não há dúvidas de que Kissinger apoiou ostensivamente a repressão no Cone Sul. É por isso que ele não viaja para países como o Brasil, pois pode ser chamado por um juiz local a depor em processos de violação de direitos humanos. No entanto, em relação à Operação Condor, não há até agora evidências documentais de que nem o Brasil, muito menos Kissinger, tivesse uma posição proeminente. Há uma diferença entre Kissinger conhecer essas estratégias e ter participado delas ativamente.

ÉPOCA – Qual é o legado de Kissinger para as relações entre Brasil e EUA?
Spektor – Kissinger foi um tom destoante da norma diplomática entre os dois países. Se foi bom ou ruim, é difícil dizer, porque durou pouco. Nossa geração ainda vive um dilema enorme: como fazer para lidar com a maior potência do mundo? A decisão não pode se restringir a uma falsa escolha entre alinhamento automático e distanciamento. Se o Brasil quiser ser potência emergente de fato, vai ser forçado a entrar no radar dos EUA. Não adianta fazer a política do pato, que é enfiar a cabeça embaixo d’água na hora que passa o gavião. Kissinger nos faz refletir sobre o que ganharíamos com uma parceria ativa com os EUA. Não estou advogando pela aproximação, mas isso deveria ser debatido na sociedade. Por que ninguém fala numa possibilidade de acordo comercial bilateral? O Brasil tem medo de se aproximar dos EUA. Isso não é necessariamente errôneo, mas não podemos ficar presos a uma dicotomia do passado.

'Chávez tem uma queixa legítima contra EUA' - Entrevista

O Globo

21/09/2009

Ricardo Ávila

Ex-presidente admite que o governo americano tinha conhecimento do golpe de Estado na Venezuela em 2002

ATLANTA, Geórgia. Perto de completar 85 anos, James Earl Carter, ou Jimmy Carter, continua gerando manchetes na imprensa. Presidente dos Estados Unidos entre 1977 e 1981, Prêmio Nobel da Paz em 2002, este ex-governador de seu estado natal (Geórgia) e antigo plantador de amendoim mantém um ritmo de atividades de causar inveja aos mais jovens. Por meio do Centro Carter, com sede em Atlanta, ele promove iniciativas dirigidas à defesa dos direitos humanos e ao entendimento entre diferentes povos e nações. Nesta entrevista ao jornal colombiano "El Tiempo", ele analisa a situação do Brasil, da Venezuela e dos EUA com relação à América Latina, entre outros temas.

Ricardo Ávila

Por que o senhor continua acompanhando de perto os assuntos da América Latina?

JIMMY CARTER: A motivação começou na época em que fui governador e tive que viajar pela América Latina para promover o comércio com o meu estado, a Geórgia. Quando assumi a Presidência, a situação era preocupante, pois a maioria dos países vizinhos, particularmente na América do Sul, era comandada por ditaduras. Desde então, assumi um compromisso com a causa dos direitos humanos no mundo todo e, por isso, comecei a ter conflitos sobre o tema com meus predecessores na Casa Branca e com a comunidade financeira.

Concorda com a afirmação de que as tensões na região aumentaram recentemente?

CARTER: Acho que sim. Na época em que eu era presidente, houve um sério confronto entre Chile e Argentina devido às fronteiras, enquanto a Bolívia defendia o direito a uma saída para o mar. As tensões são antigas. Mas acho que as tensões internas estão mais evidentes agora. É preciso registrar que pessoas antes excluídas conseguiram um nível crescente de influência e autoridade, graças às eleições. Isso ocorreu no Brasil, por exemplo, onde grupos que antes tinham papel menor na estrutura política agora estão na vanguarda.

O que pensa do presidente venezuelano, Hugo Chávez?

CARTER: Eu o conheço bem. O Centro Carter esteve envolvido em quatro ou cinco eleições na Venezuela, algumas delas complicadas. Mas afirmo que cada resultado eleitoral foi basicamente compatível com a vontade do povo venezuelano. Chávez saiu na frente numa eleição honesta, com quase 62% dos votos. Dito isso, acho que sua popularidade no país caiu e que sua influência sobre outros países também decresceu. Chávez conseguiu uma transformação que era necessária na Venezuela, ao deixar que os excluídos tivessem uma participação mais igualitária na riqueza nacional. Mas, agora que os recursos do petróleo diminuíram, estou preocupado com sua tendência de concentrar todo o poder político, em vez de contar com um Judiciário independente e com órgãos autônomos em sua administração, que controla o Poder Legislativo. Pessoalmente, me decepcionei ao vê-lo se afastar do que considero uma oportunidade justa e honesta, que foi o resultado de eleições legítimas, para uma dominação crescente de sua parte, que o levou a ter um governo mais autoritário.

O que acha das críticas de Chávez aos EUA?


CARTER: Não há dúvidas de que, em 2002, os EUA tinham conhecimento ou estiveram envolvidos diretamente no golpe que o derrubou. De forma que ele tem uma queixa legítima contra o governo americano. Agora temos outro presidente e Chávez também mudou. Creio que tanto a Venezuela e Chávez, como as relações internacionais, ficariam melhores se seus ataques contra os EUA, agora fortuitos e injustificados, parassem.

Qual sua opinião sobre o uso de bases aéreas colombianas por militares americanos?

CARTER: Começou mal, com críticas de todos os lados. Antes de anunciá-la publicamente, o presidente Álvaro Uribe deveria ter explicado que não haveria aumento nas forças militares dos EUA e que o propósito seria restrito à luta contra as drogas. É natural, devido à ampla história de intervenções americanas na região, supor que este seria um assunto polêmico.

Mas a ideia é boa ou má?

CARTER: Não sei. Nunca me explicaram bem nem o propósito nem os detalhes do acordo.

Como vê o relevante papel do Brasil na América Latina?

CARTER: É gratificante que o Brasil exerça uma influência maior, que é legítima. É uma grande nação, dedicada à liberdade e à democracia, com um compromisso com os direitos humanos, e que está capitalizando suas possibilidades econômicas. Fico feliz em ver que na próxima reunião do G-20 o Brasil estará ali, junto com outras nações importantes do mundo.

Como vê a situação dos direitos humanos na região?

CARTER: Sempre me preocupei com o assunto, em qualquer parte do mundo. Mesmo nos EUA, nos últimos oito anos, durante o governo Bush, com a tortura de prisioneiros e a violação dos direitos civis, além do mal que fez a acordos internacionais sobre o tema. Quando vejo algum tipo de violação em outras nações, sempre me inquieto.

Há críticas crescentes à política dos EUA na América Latina. O senhor conversa sobre o assunto com Barack Obama?

CARTER: Não foi dada a devida atenção à região no governo passado nem é dada no atual, sobretudo quanto às oportunidades que os EUA têm de desempenhar um papel igualitário e de respeito mútuo. Um dos caminhos seria aumentar nossa participação na OEA.

domingo, 20 de setembro de 2009

O centenário de nascimento de Bobbio

Prof Farlei Martins Ucam e doutorando de direito da Puc-rio nos envia a seguinte matéria




O Estado de S. Paulo, 20/09/2009
Celebrando Bobbio no seu centenário

Celso Lafer



O próximo mês de outubro assinala o centenário de nascimento de Norberto
Bobbio, o grande pensador italiano falecido em 2004, cuja obra há muito
tempo vem sendo discutida e apreciada em seu país e em tantos quadrantes
culturais do mundo. No Brasil, que visitou em 1983 e onde deu conferências e
participou de debates na Universidade de Brasília e na Faculdade de Direito
da USP, ele se tornou uma referência, não só para um diversificado espectro
do campo político brasileiro que vai da esquerda ao centro liberal, como
também para os estudiosos das áreas do conhecimento a que se dedicou ao
longo de uma vida voltada para o ensino e a pesquisa.

O rigor e a profundidade dos conhecimentos, o espírito público, a inteireza
do caráter, a altiva independência, o empenho no diálogo, o combate ao
arbítrio e aos fanatismos, a dedicação à preservação da liberdade e a
permanente preocupação com a igualdade são características do percurso de
Norberto Bobbio e do seu "socialismo liberal". Foram, no correr da sua vida,
explicitadas e articuladas como professor e intelectual que militou no
espaço público da palavra e da ação e são componentes substantivos do seu
magistério.

O que singulariza o magistério de Bobbio é a clareza. San Tiago Dantas
observou que "a tarefa da inteligência humana é tirar o valor das coisas da
obscuridade para a luz". A essa tarefa da inteligência humana Bobbio se
dedicou com resultados exemplares. Por isso, foi considerado o grande
clarificador dos problemas e desafios da teoria jurídica e da teoria
política, da paz e da guerra, da tutela dos direitos humanos, da relação
entre os intelectuais e o poder, das especificidades da cultura italiana e
europeia e de seus autores clássicos, para mencionar grandes e
significativos blocos da sua notável obra - da qual grande parte dos títulos
mais conhecidos está disponível em edições brasileiras. Bobbio esclarece os
seus leitores graças às virtudes do seu estilo de pensamento - e estilo,
como a cor para o pintor, é uma qualidade da visão, como dizia Proust.

O estilo de Bobbio é de índole analítica. Analisar significa dividir,
distinguir, decompor, que é o que ele faz no trato dos conceitos. Nas suas
análises opera com uma multiplicidade de dicotomias voltadas para apontar
diferenças e semelhanças e, dessa maneira, lidar com uma realidade complexa
e desordenada. Levando em conta a "lição dos clássicos" e os seus temas
recorrentes, reaglutina os conceitos, numa arte combinatória de grande
originalidade, na qual a linguagem ilumina o entendimento dos contextos e
das situações. É isso que faz dele um raro caso de pensador analítico com
agudo senso da História. Daí a qualidade e pertinência dos seus juízos.

O ponto de partida de Bobbio, como diz em Política e Cultura, é o da
"inquietação da pesquisa, o aguilhão da dúvida, a vontade do diálogo, o
espírito crítico, a medida no julgar, o escrúpulo filológico, o senso de
complexidade das coisas". O pano de fundo da sua obra, como a de Isaiah
Berlin, Raymond Aron, Hannah Arendt - o centenário destes também celebrei
nesta página -, é uma resposta às rupturas e descontinuidades do século 20,
cujas vicissitudes enfrentaram com a sensibilidade comum que,
independentemente das posições, caracteriza uma geração, como salienta
Ortega y Gasset.

Bobbio viveu os seus anos de formação no período fascista, regime político
que é parte integrante da dinâmica da "era dos extremos", que historicamente
moldou o século 20. O fascismo, como ele observou, "trazia a violência no
corpo. A violência era a sua ideologia". Caracterizou-se pela exaltação da
guerra e a estatolatria e o seu ímpeto motivador foi o combate à democracia.

A obra de Bobbio, em função da sua vivência e da sua oposição ao fascismo, a
isso se contrapôs. Por isso, como observa Pier Paolo Portinaro, tem como um
dos seus elementos constitutivos a contestação à fúria dos extremos, voltada
para a destruição da razão, que caracterizou o contexto político italiano e
europeu, com irradiação mundial antes, mas também depois da 2ª Guerra
Mundial. É, assim, um percurso intelectual muito voltado para a pesquisa e a
análise de alternativas medularmente distintas daquelas que o fascismo, como
regime de vocação totalitária, emblematizou, em especial a destruição da
democracia e a glorificação do belicismo e do papel salvador do "Duce".

É nessa moldura que se configuraram temas recorrentes e interligados da
reflexão de Bobbio. Entre eles, o da domesticação do poder pelo Estado de
Direito, a defesa da perspectiva dos governados pela abrangente tutela das
várias gerações de direitos humanos, a razão de ser da democracia e das suas
regras, que "conta cabeças e não corta cabeças". É nesse contexto, voltado
para eliminar ou limitar, da melhor maneira possível, a violência como meio
para resolver conflitos, que se insere a sua análise das relações
internacionais e o seu empenho em prol da paz, direcionado para conter o
caso mais clamoroso da violência coletiva, que é a guerra entre os Estados
que, na era nuclear, tem o potencial de destruição da própria humanidade.

A violência, que se caracteriza pela desproporção entre meios e objetivos e
pela falta de medida, destrói, exaure e não cria. Permeia este século 21,
que continua carregando no seu bojo a herança da "era dos extremos" que
moldou o século passado. A atualidade e a autoridade do legado de Bobbio
residem na lúcida busca que, com o realismo de um olhar hobbesiano e a
dimensão ética de um coração kantiano, empreende de caminhos jurídicos e
políticos alternativos à violência no labirinto da convivência coletiva. Tem
como lastro a conjetura de que o único possível e plausível salto
qualitativo na História é o da passagem do reino da violência para o da
não-violência.

Celso Lafer, professor titular da Faculdade de Direito da USP, membro da
Academia Brasileira de Ciências e da Academia Brasileira de Letras, foi
ministro das Relações Exteriores no governo FHC