São Paulo, terça-feira, 07 de agosto de 2012
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Índice
Comunicar Erros
Deisy Ventura, Flávia Piovesan e Juana Kweitel
TENDÊNCIAS/DEBATES
O ASSUNTO DE HOJE: COMISSÃO DE DIREITOS HUMANOS DA OEA
Sistema interamericano sob forte ataque
Após ser questionado por Belo Monte, o Brasil foi virulento. Ao quer limitar a ação da comissão, o país ainda encoraja Equador e Venezuela a atacarem o sistema
O Sistema Interamericano de Direitos Humanos está sob forte ataque. Um processo de reforma capciosamente batizado de "fortalecimento" esconde a tentativa de limitar sua capacidade de agir de forma autônoma e independente.
Organizações de direitos humanos de todos os países da região apontam o Brasil como um detrator.
A diplomacia brasileira reconhece abertamente que suas relações com o sistema estão estremecidas, mas nega os ataques. Na visão do Itamaraty, o Brasil estaria apenas buscando o seu "aprimoramento". Mas o que realmente está em jogo?
Criado nos anos 1960 no âmbito da Organização dos Estados Americanos (OEA), o sistema têm uma comissão e uma corte independentes, que complementam a ação dos Estados. Por meio de medidas de urgência, tem salvado muitas vidas.
Permitiu a desestabilização dos regimes ditatoriais, exigiu justiça e o fim da impunidade nas transições democráticas e agora demanda o fortalecimento da democracia, contra as violações de direitos e proteção aos grupos mais vulneráveis.
Tem prestado uma extraordinária contribuição para a promoção dos direitos humanos, do Estado de Direito e da democracia na região.
No entanto, quando a comissão fez recomendações no caso da hidroelétrica de Belo Monte, o Brasil não perdoou. Contrariado, desqualificou publicamente a comissão, retirou seu embaixador junto à OEA, decidiu não pagar a sua quota por meses e desistiu da candidatura de um membro brasileiro para a comissão.
Foi a primeira vez que o Brasil reagiu com tal virulência, embora vítimas e organizações sociais brasileiras recorram com frequência ao sistema. Entre 1998 e 2011, o Brasil foi alvo de 27 "medidas cautelares" (recomendações com caráter de urgência) da comissão. Já a corte, desde 1998, proferiu quatro sentenças condenatórias ao Brasil.
Até Belo Monte, o governo brasileiro parecia se esforçar no cumprimento de tais recomendações e sentenças. O caso Maria da Penha -que resultou em uma lei sobre a violência contra a mulher- é um exemplo.
Por causar constrangimento internacional aos Estados, o Sistema Interamericano foi alvo de ataques de diferentes países durante toda a sua história. Os EUA, por exemplo, jamais aceitaram a jurisdição da corte e nunca ratificaram a Convenção Americana de Direitos Humanos.
A propósito, não se pode confundir a OEA com o sistema. A OEA possui 35 membros. Apenas 25 deles são signatários da convenção, dos quais 21 aceitam a jurisdição da corte.
Hoje, entre as maiores ameaças, destacam-se propostas que: restringem o poder da comissão de adotar medidas cautelares (único instrumento previsto para casos de urgência e gravidade), suprimem a possibilidade de analisar detidamente casos de países com violações massivas e limitam as faculdades das relatorias especiais, como a de liberdade de expressão e acesso à informação.
Cada país ou bloco tem interesse particular em um desses pontos. O Brasil tem procurado abertamente limitar as medidas cautelares. Sua atitude tem encorajado posições ainda mais extremas, sobretudo do Equador e da Venezuela, há pouco questionados em casos de direitos políticos e liberdade de expressão.
Se o Brasil, de forma efetiva, deseja o aprimoramento do sistema, o silêncio e a ação de bastidores não podem ser opções. É preciso um sistema interamericano forte, autônomo e independente.
O país não pode carregar na sua história a mácula de ter contribuído para acabar com o mais importante mecanismo para a proteção de direitos humanos da nossa região.
DEISY VENTURA, 44, é professora do Instituto de Relações Internacionais da USP
FLÁVIA PIOVESAN, 43, é professora da PUC-SP e membro do Grupo de Trabalho da OEA sobre o Pacto de San Salvador
JUANA KWEITEL, 39, é diretora de programas da ONG Conectas Direitos Humanos
terça-feira, 7 de agosto de 2012
Valor Economico 7 de agosto de 2012
Para antropólogo, a ideia do "eu" precisa dar lugar à de rede
Por Carla Rodrigues
Para o Valor, do RioPremiado por sua teoria ator-rede, o francês Bruno Latour discute a relação entre seres humanos e não-humanos.
Ele se autodefine como um antropólogo filosófico trabalhando sobre a sociologia. Na prática, o francês Bruno Latour, 65 anos, faz o que ele chama de "antropologia da modernidade", ao voltar seu olhar para os discursos e práticas desse período, principalmente as científicas.
Dessa pesquisa resultou um de seus livros mais famosos, "Jamais Fomos Modernos - Ensaios de Antropologia Simétrica", lançado no Brasil em 1994 (Editora 34).
Latour, que está no Brasil pela terceira vez, apresenta na quinta uma palestra gratuita em São Paulo, no Fronteiras do Pensamento, e acaba de participar do simpósio internacional "A Vida Secreta dos Objetos: Novos Cenários da Comunicação", realizado em São Paulo, Rio e Salvador e que acabou ontem.
Para ele, é aqui que se dará a disputa pelo debate ambiental no século XXI. Hoje empenhado na causa ecológica, Latour é conhecido e premiado por sua teoria ator-rede, uma forma de pensar a relação entre humanos e não-humanos.
Diretor científico da área de pesquisas do Instituto de Estudos Políticos de Paris, integrante de uma geração de franceses formados no pós-guerra, Latour é frequentemente acusado de ser um relativista, crítica que ele rebate com facilidade. "Eu não conheço um ator participante da ciência que não seja um relativista", afirma.
Valor: O senhor acredita que o Brasil ocupa um lugar especial no cenário mundial neste momento em que a Europa vive uma crise?
Bruno Latour: O Brasil faz parte de minha vida desde a minha infância, pois tive três irmãs que moraram no país, por razões diferentes. Acredito que a questão ecológica do século XXI vai ser decidida aqui. Há coisas que podem ser melhoradas na Europa, do ponto de vista ambiental, mas o verdadeiro cenário desse jogo será o Brasil, porque já é muito tarde para a Ásia e a África. A questão é saber se os intelectuais e os políticos brasileiros poderão ir além dos fundamentos da modernidade. Mas a grande questão ecológica se desenrolará aqui.
Valor: Sua teoria ator-rede se refere a seres humanos e não-humanos. É uma crítica ao humanismo? O que o legado humanista nos proporcionou de tão criticável?
Latour: O humanismo é uma forma limitada de pensar o grupo dos humanos, que vejo como dependentes de muitos outros seres que não são humanos. Uma definição que isole o humano dos seres que o fabricam - tanto as divindades religiosas quanto as coisas com as quais os humanos vivem, como as árvores, mas também o alumínio para fazer estes talheres - é uma visão estreia. A perspectiva humanista foi legítima em uma determinada época, se falarmos do humanismo da metade do século XIX até a metade do século XX, antes que os ecologistas tenham chamado nossa atenção para o problema ambiental. Mas hoje não há mais nenhum sentido falar em humanismo. Este tipo de humanismo não tem os elementos necessários para absorver as grandes questões políticas atuais. Não se pode, por exemplo, fazer uma teoria consciente do problema do clima com o pensamento moral de Kant. Precisamos pensar na composição na qual seres humanos e não-humanos se relacionam. O humanismo é uma versão ultrapassada dos problemas políticos que nos dizem respeito. Hoje, trata-se de ser inteiramente humanista, ou seja, incluir todos os seres que são necessários para a existência humana.
Valor: Um dos postulados da teoria ator-rede é que, quando uma pessoa age, mais alguém está agindo junto. O senhor poderia explicar como isso funciona?
Latour: Os humanos são envolvidos por muitos outros seres, e a ideia de que uma pessoa age autonomamente, com seus próprios objetivos, não funciona nem na economia, nem na religião, nem na psicologia nem em nenhuma outra situação. Portanto, a pergunta que a teoria ator-rede coloca é: quais são os outros seres ativos no momento em que alguém age? A antropologia e a sociologia que tento desenvolver se ocupa da pesquisa desses seres. Eu posso colocar a questão de um modo inverso: como, apesar das evidências de todos os numerosos seres que participam de uma ação, continua-se a pensar como se o único ator fosse o humano dotado de uma psicologia, ciente de si mesmo, calculador, autônomo, responsável? A antropologia no Brasil é particularmente capaz de entender que não há esse "eu", esse sujeito individual e autônomo que age no mundo, o que é uma visão muito estreita. Tenho muito contato com outros antropólogos brasileiros, como o Eduardo Viveiros de Castro (UFRJ).
Valor: O senhor veio ao Brasil para participar de um simpósio sobre novas tecnologias de comunicação. Qual é a grande afinidade entre a sua teoria ator-rede e as teorias da comunicação?
Latour: Elas são próximas porque a teoria ator-rede é essencialmente uma teoria da multiplicidade de mediações, e esses pesquisadores estão interessados em discutir o domínio da mídia e das mediações. Aqueles que se interessam por mediação - de modo positivo, e não negativamente - encontram conceitos e métodos para trabalhar com a teoria ator-rede.
Valor: Por que os jornalistas estão sempre mencionados entre os integrantes importantes da teoria ator-rede?
Latour: A formatação de informações desempenha um papel muito importante no espaço público, no qual se situa o espaço político. Não conheço muitos estudos sobre jornalismo que sejam feitos a partir da teoria ator-rede, porque essas pesquisas geralmente são feitas do ponto de vista crítico, e a teoria ator-rede não é uma crítica. Muito frequentemente, os jornalistas são simplesmente acusados de deturpar um ideal de verdade que, se não houvesse a mediação, chegaria ao público a partir de uma transmissão transparente e direta. Cientistas, políticos e economistas gostam de dizer que, se não houvesse os jornalistas, a informação seria mais transparente, mais direta, menos comprometida.
Valor: A teoria ator-rede se transformou em muitas outras coisas - cada um dos pesquisadores do grupo original seguiu por um lado, e houve uma diáspora. O senhor ainda se reconhece como um teórico da ator-rede?
Latour: O grupo original nunca foi muito unido, mas se reuniu em um momento em que a sociologia percebeu que havia negligenciado a técnica, a ciência, e os seres não-humanos. Foi uma tomada de consciência das ciências sociais de que o século XX nos legou uma série de questões - como a da dominação e a da exploração -, mas sempre com uma visão sociocentrada. A teoria ator-rede vem a ser a evidência de que é preciso se interessar pela vida secreta dos objetos.
Valor: Refaço ao senhor uma pergunta que está no livro "A Esperança de Pandora" (Edusc): de onde provém a oposição entre o campo da razão e o campo da força?
Latour: Fiz uma genealogia dessa oposição, que remonta à falsa disputa entre os sofistas e os filósofos e organizou o debate nos países ocidentais. Pretendi suspender essa separação e colocar a questão sobre qual é a força dos dispositivos racionais. Foi assim que comecei minha antropologia da ciência. E há uma segunda pergunta: quais são as razões da relação de força política, religiosa, econômica? A distinção entre força e razão faz parte de um conjunto de antigas dicotomias que não são mais capazes de nos orientar quando falamos da questão científica. Nessa dicotomia, supõe-se que a razão vai unificar a discussão. Mas, se a razão já teve esse poder, atualmente não tem mais, e precisamos encontrar outras ferramentas intelectuais para nos orientar nessa disputa. É o que eu chamo de cartografia da controvérsia. Essa é hoje uma grande questão para a democracia.
Valor: Afirmar que a ciência é social é uma forma de relativizar os resultados científicos?
Latour: Esse é um mal-entendido sobre o significado da palavra social. Evidentemente, dizer que os fatos são sociais não equivale a dizer que esse garfo é uma fabricação social - isso não faria sentido. Eu digo que esse garfo é resultado de um processo industrial que inclui uma legislação, empresas, indústrias - o que é totalmente diferente. A ciência faz parte de um coletivo - estou propositalmente evitando usar a palavra social - do mundo. Há quem acredite que a ciência, particularmente as ciências naturais, é absoluta. Mas esses são os religiosos da ciência, não os participantes da ciência. Não conheço um ator participante da ciência que não seja um relativista ou, melhor dizendo, um relacionista, porque ele sabe que conhecer é estabelecer relações dentro de um quadro de referências. A crítica aos relativistas, feita pelos absolutistas, é frequente, mas essa não é uma discussão produtiva. A discussão que me interessa é: como estabelecer as relações entre os quadros de referência, as culturas, os modos de existência, as formas de vida? Não conheço quem que, desse ponto de vista, critique o relativismo.
Valor: Pode-se resumir seu livro "Jamais Fomos Modernos" como uma crítica à modernidade. O senhor mantém as mesmas críticas em relação aos pós-modernos?
Latour: Sim. Os pós-modernos tiveram a sensibilidade de perceber que havia qualquer coisa de complicada na modernidade, mas é o mesmo movimento. Simplesmente há um retorno a alguns dos problemas que a modernidade não havia tratado, mas não há um retorno às raízes da modernidade.
Fronteiras do Pensamento, palestra com Bruno Latour
Quinta-feira, às 18h, no auditório da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP; entrada franca. Informações: eventfau@usp.br
Carla Rodrigues, professora da Universidade Federal Fluminense (UFF) e da Pontifícia Universidade Católica do Rio (PUC-Rio), é doutora em filosofia e pesquisadora do CNPq
Para antropólogo, a ideia do "eu" precisa dar lugar à de rede
Por Carla Rodrigues
Para o Valor, do RioPremiado por sua teoria ator-rede, o francês Bruno Latour discute a relação entre seres humanos e não-humanos.
Ele se autodefine como um antropólogo filosófico trabalhando sobre a sociologia. Na prática, o francês Bruno Latour, 65 anos, faz o que ele chama de "antropologia da modernidade", ao voltar seu olhar para os discursos e práticas desse período, principalmente as científicas.
Dessa pesquisa resultou um de seus livros mais famosos, "Jamais Fomos Modernos - Ensaios de Antropologia Simétrica", lançado no Brasil em 1994 (Editora 34).
Latour, que está no Brasil pela terceira vez, apresenta na quinta uma palestra gratuita em São Paulo, no Fronteiras do Pensamento, e acaba de participar do simpósio internacional "A Vida Secreta dos Objetos: Novos Cenários da Comunicação", realizado em São Paulo, Rio e Salvador e que acabou ontem.
Para ele, é aqui que se dará a disputa pelo debate ambiental no século XXI. Hoje empenhado na causa ecológica, Latour é conhecido e premiado por sua teoria ator-rede, uma forma de pensar a relação entre humanos e não-humanos.
Diretor científico da área de pesquisas do Instituto de Estudos Políticos de Paris, integrante de uma geração de franceses formados no pós-guerra, Latour é frequentemente acusado de ser um relativista, crítica que ele rebate com facilidade. "Eu não conheço um ator participante da ciência que não seja um relativista", afirma.
Valor: O senhor acredita que o Brasil ocupa um lugar especial no cenário mundial neste momento em que a Europa vive uma crise?
Bruno Latour: O Brasil faz parte de minha vida desde a minha infância, pois tive três irmãs que moraram no país, por razões diferentes. Acredito que a questão ecológica do século XXI vai ser decidida aqui. Há coisas que podem ser melhoradas na Europa, do ponto de vista ambiental, mas o verdadeiro cenário desse jogo será o Brasil, porque já é muito tarde para a Ásia e a África. A questão é saber se os intelectuais e os políticos brasileiros poderão ir além dos fundamentos da modernidade. Mas a grande questão ecológica se desenrolará aqui.
Valor: Sua teoria ator-rede se refere a seres humanos e não-humanos. É uma crítica ao humanismo? O que o legado humanista nos proporcionou de tão criticável?
Latour: O humanismo é uma forma limitada de pensar o grupo dos humanos, que vejo como dependentes de muitos outros seres que não são humanos. Uma definição que isole o humano dos seres que o fabricam - tanto as divindades religiosas quanto as coisas com as quais os humanos vivem, como as árvores, mas também o alumínio para fazer estes talheres - é uma visão estreia. A perspectiva humanista foi legítima em uma determinada época, se falarmos do humanismo da metade do século XIX até a metade do século XX, antes que os ecologistas tenham chamado nossa atenção para o problema ambiental. Mas hoje não há mais nenhum sentido falar em humanismo. Este tipo de humanismo não tem os elementos necessários para absorver as grandes questões políticas atuais. Não se pode, por exemplo, fazer uma teoria consciente do problema do clima com o pensamento moral de Kant. Precisamos pensar na composição na qual seres humanos e não-humanos se relacionam. O humanismo é uma versão ultrapassada dos problemas políticos que nos dizem respeito. Hoje, trata-se de ser inteiramente humanista, ou seja, incluir todos os seres que são necessários para a existência humana.
Valor: Um dos postulados da teoria ator-rede é que, quando uma pessoa age, mais alguém está agindo junto. O senhor poderia explicar como isso funciona?
Latour: Os humanos são envolvidos por muitos outros seres, e a ideia de que uma pessoa age autonomamente, com seus próprios objetivos, não funciona nem na economia, nem na religião, nem na psicologia nem em nenhuma outra situação. Portanto, a pergunta que a teoria ator-rede coloca é: quais são os outros seres ativos no momento em que alguém age? A antropologia e a sociologia que tento desenvolver se ocupa da pesquisa desses seres. Eu posso colocar a questão de um modo inverso: como, apesar das evidências de todos os numerosos seres que participam de uma ação, continua-se a pensar como se o único ator fosse o humano dotado de uma psicologia, ciente de si mesmo, calculador, autônomo, responsável? A antropologia no Brasil é particularmente capaz de entender que não há esse "eu", esse sujeito individual e autônomo que age no mundo, o que é uma visão muito estreita. Tenho muito contato com outros antropólogos brasileiros, como o Eduardo Viveiros de Castro (UFRJ).
Valor: O senhor veio ao Brasil para participar de um simpósio sobre novas tecnologias de comunicação. Qual é a grande afinidade entre a sua teoria ator-rede e as teorias da comunicação?
Latour: Elas são próximas porque a teoria ator-rede é essencialmente uma teoria da multiplicidade de mediações, e esses pesquisadores estão interessados em discutir o domínio da mídia e das mediações. Aqueles que se interessam por mediação - de modo positivo, e não negativamente - encontram conceitos e métodos para trabalhar com a teoria ator-rede.
Valor: Por que os jornalistas estão sempre mencionados entre os integrantes importantes da teoria ator-rede?
Latour: A formatação de informações desempenha um papel muito importante no espaço público, no qual se situa o espaço político. Não conheço muitos estudos sobre jornalismo que sejam feitos a partir da teoria ator-rede, porque essas pesquisas geralmente são feitas do ponto de vista crítico, e a teoria ator-rede não é uma crítica. Muito frequentemente, os jornalistas são simplesmente acusados de deturpar um ideal de verdade que, se não houvesse a mediação, chegaria ao público a partir de uma transmissão transparente e direta. Cientistas, políticos e economistas gostam de dizer que, se não houvesse os jornalistas, a informação seria mais transparente, mais direta, menos comprometida.
Valor: A teoria ator-rede se transformou em muitas outras coisas - cada um dos pesquisadores do grupo original seguiu por um lado, e houve uma diáspora. O senhor ainda se reconhece como um teórico da ator-rede?
Latour: O grupo original nunca foi muito unido, mas se reuniu em um momento em que a sociologia percebeu que havia negligenciado a técnica, a ciência, e os seres não-humanos. Foi uma tomada de consciência das ciências sociais de que o século XX nos legou uma série de questões - como a da dominação e a da exploração -, mas sempre com uma visão sociocentrada. A teoria ator-rede vem a ser a evidência de que é preciso se interessar pela vida secreta dos objetos.
Valor: Refaço ao senhor uma pergunta que está no livro "A Esperança de Pandora" (Edusc): de onde provém a oposição entre o campo da razão e o campo da força?
Latour: Fiz uma genealogia dessa oposição, que remonta à falsa disputa entre os sofistas e os filósofos e organizou o debate nos países ocidentais. Pretendi suspender essa separação e colocar a questão sobre qual é a força dos dispositivos racionais. Foi assim que comecei minha antropologia da ciência. E há uma segunda pergunta: quais são as razões da relação de força política, religiosa, econômica? A distinção entre força e razão faz parte de um conjunto de antigas dicotomias que não são mais capazes de nos orientar quando falamos da questão científica. Nessa dicotomia, supõe-se que a razão vai unificar a discussão. Mas, se a razão já teve esse poder, atualmente não tem mais, e precisamos encontrar outras ferramentas intelectuais para nos orientar nessa disputa. É o que eu chamo de cartografia da controvérsia. Essa é hoje uma grande questão para a democracia.
Valor: Afirmar que a ciência é social é uma forma de relativizar os resultados científicos?
Latour: Esse é um mal-entendido sobre o significado da palavra social. Evidentemente, dizer que os fatos são sociais não equivale a dizer que esse garfo é uma fabricação social - isso não faria sentido. Eu digo que esse garfo é resultado de um processo industrial que inclui uma legislação, empresas, indústrias - o que é totalmente diferente. A ciência faz parte de um coletivo - estou propositalmente evitando usar a palavra social - do mundo. Há quem acredite que a ciência, particularmente as ciências naturais, é absoluta. Mas esses são os religiosos da ciência, não os participantes da ciência. Não conheço um ator participante da ciência que não seja um relativista ou, melhor dizendo, um relacionista, porque ele sabe que conhecer é estabelecer relações dentro de um quadro de referências. A crítica aos relativistas, feita pelos absolutistas, é frequente, mas essa não é uma discussão produtiva. A discussão que me interessa é: como estabelecer as relações entre os quadros de referência, as culturas, os modos de existência, as formas de vida? Não conheço quem que, desse ponto de vista, critique o relativismo.
Valor: Pode-se resumir seu livro "Jamais Fomos Modernos" como uma crítica à modernidade. O senhor mantém as mesmas críticas em relação aos pós-modernos?
Latour: Sim. Os pós-modernos tiveram a sensibilidade de perceber que havia qualquer coisa de complicada na modernidade, mas é o mesmo movimento. Simplesmente há um retorno a alguns dos problemas que a modernidade não havia tratado, mas não há um retorno às raízes da modernidade.
Fronteiras do Pensamento, palestra com Bruno Latour
Quinta-feira, às 18h, no auditório da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP; entrada franca. Informações: eventfau@usp.br
Carla Rodrigues, professora da Universidade Federal Fluminense (UFF) e da Pontifícia Universidade Católica do Rio (PUC-Rio), é doutora em filosofia e pesquisadora do CNPq
quinta-feira, 19 de julho de 2012
terça-feira, 17 de julho de 2012
quarta-feira, 27 de junho de 2012
Pensamento social latino-americano
http://www.iesp.uerj.br/pos-graduacao/arquivos/ementas/2012/Teoria%20Social%20Latino-Americana.pdf
segunda-feira, 25 de junho de 2012
Estado de exceção na Itália
http://www.ijpl.eu/assets/files/pdf/2011_volume_2/IJPL_volume%202_2011.pdf
sexta-feira, 22 de junho de 2012
Entrevista com Rafael Correa
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“Estamos diante de uma guerra não convencional”Em uma entrevista especial
concedida à Carta Maior e aos jornais Página/12, da Argentina, e La
Jornada, do México, o presidente do Equador, Rafael Correa analisa o que
considera ser um dos principais problemas do mundo hoje: o poder das
grandes corporações de mídia que agem como um verdadeiro partido político
contra governos que não rezam pela sua cartilha. “Essa é a luta, não há
luta maior. Estamos diante de uma guerra não convencional, mas guerra, de
conspiração, desestabilização e desgaste”.
Carta Maior, La Jornada e Página/12
*Rio de Janeiro* - Representante de uma nova geração de líderes políticos
da esquerda latinoamericana, o presidente do Equador, Rafael Correa, foi
lançado para a linha de frente do cenário político mundial com o pedido de
asilo político feito, em Londres, pelo fundador do Wikileaks, Julian
Assange. Há poucas semanas, Assange entrevistou Correa e os dois
conversaram, entre coisas, sobre um tema de interesse de ambos: as
operações de manipulação conduzidas pelas grandes corporações midiáticas.
Agora, durante sua passagem pela Rio+20, Rafael Correa voltou com força ao
tema.
Em uma entrevista especial concedida à Carta Maior e aos jornais Página/12,
da Argentina, e La Jornada, do México, analisa este que considera ser um
dos principais problemas do mundo hoje: o poder das grandes corporações de
mídia que, na América Latina, agem como um verdadeiro partido político
contra governos que não rezam pela cartilha desses grupos. “Essa é a luta,
não há luta maior. Estamos diante de uma guerra não convencional, mas
guerra, de conspiração, desestabilização e desgaste”.
Na entrevista, Correa fala sobre o pedido de asilo de Assange, relata o
debate sobre uma nova lei de comunicações no Equador e faz um balanço
pessimista sobre os resultados da Rio+20.
*Há um argumento segundo o qual a liberdade de imprensa é propriedade dos
meios de comunicação empresariais. Imagino que essa não seja a sua opinião.*
*Correa*: Não nos enganemos. Desde que se inventou a impressora a liberdade
de imprensa, entre aspas, responde à vontade, ao capricho e à má fé do dono
da impressora. Devemos lutar para inaugurar a verdadeira liberdade de
imprensa que é parte de um conceito maior e um direito de todos os
cidadãos, que é a liberdade de expressão, que defendemos radicalmente. No
entanto, o poder midiático que faz negócios com o objetivo de ter lucro,
até isso quer privatizar. Então, se eles têm tanta vocação para comunicar,
como dizem, que o façam sem finalidades lucrativas, porque para mim isso é
uma contradição.
Este é um grande problema na América Latina e também em nível planetário.
Tenho tomado conhecimento que existem posições semelhantes às nossas, mas
houve um tempo em que nos sentíamos muito sozinhos, quando fomos vítimas de
um ataque tremendo por não abaixar a cabeça diante de um negócio muitas
vezes corrupto e encoberto sob a capa da liberdade de expressão. Essa é a
luta, não há luta maior.
*Presidente, nestes dias foram divulgados telegramas pelo Wikileaks onde
apareceram jornalistas equatorianos que eram considerados informantes pela
embaixada dos Estados Unidos. Isso confirma as hipóteses levantadas quando
você foi vítima de um golpe de Estado.*
*Correa*: As mentiras deles sempre acabam sendo derrubadas. Entidades que
financiam esses empórios midiáticos, certas organizações que, em nome da
sociedade civil, nos denunciam ante a Comissão Interamericana de Direitos
Humanos, a SIP, ante todos os lados. Agora vemos que esses senhores são
identificados via Wikileaks como informantes da embaixada (estadunidense).
Wikileaks que nunca é publicado pela maioria da imprensa comercial. Não é
só isso. Essa gente é financiada pela USAID, que vocês conhecem. A USAID
financiou com 4,5 milhões de dólares a estes supostos defensores da
liberdade de expressão, supostamente para fortalecer a democracia e a ação
cívica. Na verdade, para fortalecer a oposição aos governos progressistas
da América Latina e os povos da região tem que reagir contra esse tipo de
prática.
Independentemente da solicitação do senhor Assange – ele solicitou asilo
político -, ele disse que quer vir para o Equador para seguir cumprindo sua
missão em defesa da liberdade de expressão sem limites, porque o Equador é
um território de paz comprometido com a justiça e a verdade. Isso que o
senhor Assange disse é mais próximo da realidade do Equador do que as
porcarias que o poder midiático publica todos os dias.
*Sabemos que o senhor ainda não tomou uma decisão sobre a situação que está
atravessando alguém que revelou informações secretas sobre conspirações dos
Estados Unidos e está pagando com a prisão por ter trabalhado pela
liberdade de imprensa.*
*Correa*: Se, no Equador, alguém tivesse passado a centésima parte do que
passou Assange, nós seríamos chamados de ditadores e repressores, mas como
o que Assange divulgou afeta as grandes potências e isso evidencia uma
moral dupla e como os Estados nos tratam por meio de suas embaixadas, então
é preciso aplicar todo o peso da lei contra Assange. E o chamam de violador.
Eu não quero antecipar minha decisão. Recebemos o pedido de asilo,
analisaremos as causas desse pedido e tomaremos uma decisão quando for
pertinente. Ele está em nossa em nossa embaixada em Londres sob a proteção
do Estado equatoriano.
É claro que há aqui uma dupla moral, uma para os poderosos e outra para os
débeis, uma para os que querem manter o status quo e para sua imprensa, e
outra para os governos que querem mudar esse status quo e para a imprensa
alternativa. Todos os dias há julgamentos em países desenvolvidos contra
jornais. Neste caso não há problema, porque isso é civilização, mas,
processar em nosso país um jornal ou um jornalista é qualificado como
barbárie. E não é verdade que nós criminalizamos a opinião, pois em nosso
país todos os dias publicam tudo, todos os dias publicam que há falta de
liberdade de expressão. Qualquer um pode dizer que o governo é bom ou mau,
que é competente ou incompetente. Mas o que não pode se dizer em um meio de
comunicação é que o presidente, ou qualquer cidadão, é um criminoso de lesa
humanidade e que ele disparou sem aviso prévio contra um hospital, porque
isso é difamação, isso é delito em qualquer país.
*O caso Assange pode dar origem a uma tensão diplomática entre Equador e
Grã-Bretanha?*
*Correa*: Isso é a última coisa que queremos, mas nós não vamos pedir
permissão a nenhum país para tomar decisões soberanas. O Equador não tem
mais alma de colônia nem alma de vassalo. Se dar asilo, refúgio ou
residência a fugitivos da justiça provocasse deterioração, a relação da
América Latina com os Estados Unidos estaria deterioradíssima. Porque,
provavelmente, Argentina, Brasil, México e outros países não devem estar de
acordo que qualquer fugitivo que viole a justiça. Esse não é o caso do
senhor Assange, mas sim de corruptos como os banqueiros que quebraram o
Equador em 99 e fugiram para os Estados Unidos, onde gozam hoje de uma vida
bastante cômoda.
*Vocês têm um Murdoch no Equador?*
*Correa*: No Equador, temos seis famílias que representam heranças
familiares, não é propriedade democrática, um capitalismo popular onde há
10 mil acionistas em um empório. Os meios de comunicação no Equador são
manejados por meia dúzia de famílias, que decidem o que os equatorianos
devem saber e conhecer. Vocês se dão conta da vulnerabilidade que temos
como sociedade? A informação depende dos interesses e dos caprichos de meia
dúzia de famílias. Mas se um governo soberano e digno não as chama para
consultar sobre o nome dos ministros ou sobre a indicação de embaixadores,
como ocorria antes, vão com tudo para cima desse governo porque ele não se
submete aos seus caprichos. É um problema mundial, mas em outros países é
atenuado com participação, profissionalismo muito profundo, uma ética muito
forte, tudo o que brilha por sua ausência aqui no Equador.
*Presidente, um funcionário da Usaid acaba de dizer que eles estão ajudando
as oposições a estes governos.*
*Correa*: Franqueza anglo-saxã.
*Impunidade?*
*Correa*: Impunidade e arrogância.
*Essa ideia nos fala de um tempo da informação como arma de guerra e a
América Latina sofre uma verdadeira invasão dessas fundações como a USAID,
a NED, o IRI. Isso não torna muito perigosa a nossa situação? A presença
das ONGs destas fundações não é perigosa para o Equador?*
*Correa*: Oxalá consigamos despertar os povos latino-americanos para essa
situação. As direitas, os grupos de poder, sabem que nas urnas não
conseguirão nos derrotar. Daí as campanhas contínuas de desgastes, de
propaganda, de difamação, de enfraquecimento e desestabilização. Nós
vivemos isso desde os primeiros dias de governo. Desde o primeiro dia de
governo. O mesmo ocorre na Venezuela, na Bolívia, na Argentina e em todos
os governos progressistas da região. Sofremos as campanhas desses meios que
são a vanguarda do capitalismo, do status quo dos partidos tradicionais de
direita que se afundaram por seus próprios erros, para difamar, para
distorcer a verdade com a cumplicidade de veículos da mídia internacional.
Essa é a contradição de que fala Ignacio Ramonet. Na Europa hoje há
desemprego, estagnação, resgate de milionários, resgate de bancos e não de
cidadãos, e os jornais dizem que isso é necessário, que é sério, técnico e
correto. Que as pessoas morram de fome, precisamos salvar o capital!
Enquanto isso, em países como o Equador, que é um dos que mais crescem na
América Latina, que reduziu a pobreza, gerou mais emprego, tem a taxa de
desemprego mais baixa da região e da história, todos os dias nos dizem que
isso é populismo e demagogia, que é preciso mudar de governo.
Estamos ante uma campanha propagandística para defender os poderes fáticos
que sempre dominaram nossos países. A direita perdeu as eleições nos
Estados Unidos e agora chegam essas organizações para financiar esses
grupos na América Latina. Estamos diante de uma guerra não convencional,
mas guerra, de conspiração, desestabilização e desgaste.
*Por isso pergunto sobre o tema da informação como arma de guerra, como a
arma letal antes do primeiro disparo.*
*Correa*: Estou convencido disso. Alguns ainda imaginam a imprensa,
sobretudo na América Latina, como o quarto poder nascente, que floresceu
quando chegaram as democracias, quando ocorreram avanços técnicos e se
multiplicaram as publicações, quando se avançou na alfabetização e as
grandes massas passaram a poder ler. Esse poder impediria que o poder
político, o poder do Estado, ultrapasse certos limites. Assim chegou a
desinformação. Lembremos, por exemplo, do affair Dreyfus na França, quando
por racismo e xenofobia se acusou um capitão judeu, como denunciou Emile
Zola em seu famoso editorial “Eu acuso”. Essa imprensa limitava os excessos
do poder político, mas esse vigoroso e ingênuo cachorrinho, bem
intencionado, que lutava pelos interesses dos cidadãos, converteu-se de
repente em um mastim feroz, com um poder ilimitado, raivoso, que não só
tenta encurralar o Estado como também os próprios cidadãos.
O poder midiático na América Latina, como ocorre no Equador, é
frequentemente superior ao poder político. Precisamos tirar certos
estereótipos de cena ou do ambiente de certa burocracia internacional como
alma de ONG, como a Comissão Interamericana de Direitos Humanos que fala de
pobrezinhos jornalistas e de malvados políticos. Isso não é certo. Os
políticos são, muitas vezes, patrióticos. A antipatia que certos
jornalistas alimentam, desfiando seus ódios e amarguras, acaba fazendo com
que se metam inclusive em questões pessoais, com a família, etc. Então,
vejamos a realidade. Trata-se de tabus e nos ensinaram a ter medo de
criticar esses negócios, como se, criticando-os, estaríamos criticando a
liberdade de expressão. Esses são os negócios da má imprensa.
*Presidente, viremos a página e passemos à crise*
*Correa* – É que esse tema (da mídia) me apaixona. É um tema acadêmico que
me apaixona, ao qual dedicarei meu tempo quando sair da presidência.
Pretendo me dedicar a ele, investigar e escrever porque se trata de um
problema gravíssimo, porque estamos nas mãos de um poder midiático que
superou inclusive o poder financeiro e político, e domina o mundo.
*Você resumiu ontem em uma palavra o documento final da Rio+20,
classificando-o como “lírico”...*
*Correa* – É assim. Não há compromisso concreto. Podem verificar. Onde há
um compromisso em cifras, por exemplo, com o limite de emissões de gases,
compensações, acordos, acordos vinculantes como seria uma declaração de
direitos da natureza em um tribunal internacional do meio ambiente, como
propôs o Equador. Não há nada disso. Fala-se de cuidar melhor do planeta,
mas não há um compromisso concreto. O avanço é muito pequeno.
*A que atribui a ausência dos Estados Unidos e da Alemanha? Elas podem ter
contribuído para essa falta de compromissos concretos?*
*Correa* – Vai mais além. O problema não é técnico. Todo mundo sabe qual é
o problema, todo o mundo sabe quais são as respostas. O problema é
político. Quem gera os bens ambientais e quem consome esses bens
ambientais? Se os países ricos ou os países em desenvolvimento podem
consumir gratuitamente um bem que outros geram por que é que vão se
comprometer a compensar e cuidar. Não farão isso a não ser que esteja em
perigo evidente sua própria existência ou seus próprios interesses.
Então, o problema é político, é a relação de poder. Imagine que a situação
fosse a inversa, que a Floresta Amazônica, por exemplo, estivesse nos
Estados Unidos e que eles fossem geradores de bens ambientais e que nós dos
países em desenvolvimento fôssemos os consumidores. Já teriam nos invadido
em nome dos direitos humanos, da justiça, da liberdade, etc., para exigir
compensações. Então, esse é um problema de poder. Enquanto não mudarem as
relações de poder, muito pouco se irá avançar.
*Considera então que o saldo provisório da Rio+20 é um fracasso?*
*Correa* – Sim. Não se conseguiu avançar quase nada. Não há compromisso
concreto, nada concreto. Nem sequer dinheiro. Houve uma reunião do G-20 no
México e a maioria, 80% dos que estavam lá, regressaram para suas casas.
Não vieram para a Rio+20. Não interessa. Apenas alguns poucos vieram para a
Cúpula, sobretudo latino-americanos.
*Houve também a Cúpula dos Povos, um encontro muito interessante.*
*Correa* – Quisemos participar, mas não foi possível, estava muito longe.
Infelizmente foi um problema de logística. Mas vamos ter um evento de
direitos da natureza, paralelo à Cúpula, nos mesmos locais da Cúpula, para
o qual convidamos 400 dirigentes de organizações sociais alternativas,
progressistas de esquerda que buscam a justiça de nossa América e do mundo
inteiro. O presidente Evo Morales também participará dessa conferência.
*Eu queria perguntar-lhe sobre o que representam estas alianças como a do
Pacífico (Colômbia, Chile, Peru e México) e o anúncio feito pelo presidente
Felipe Calderón do Transpacífico, que é algo novo. Isso pode ser visto como
uma ameaça à integração e à unidade da América Latina?*
*Correa* – Bom, o maior problema em essência sobre o tema do cuidado com o
meio ambiente e que também está na base da crise da Europa e dos Estados
Unidos é que tudo foi mercantilizado. Eles não querem ver isso porque afeta
os interesses dominantes. O mercado é uma realidade econômica que não
podemos negar, mas o grande desafio da humanidade é que a sociedade deve
conseguir dominar o mercado. O que temos hoje é o mercado dominando a
sociedade e as pessoas, mercantilizando tudo. Como o mercado só se
interessa pelo que é mercadoria, pelo que tem preços explícitos, não
administra adequadamente bens públicos como o meio ambiente. Por isso pode
consumir irresponsavelmente bens ambientais, bens públicos globais,
depredar a natureza, etc., porque não têm preços explícitos, porque não são
mercadoria.
Então, quanto mais se ampliar essa lógica do mercado, mais esses problemas
se agravarão e os perigos serão ainda maiores para a conservação do
planeta. Eu diria que nós somos muito críticos destes tratados de livre
comércio, somos muito críticos da mercantilização da vida e da humanidade
em geral. Esse é um dos grandes desafios que enfrentamos. Insisto, o
mercado é um fenômeno econômico irrefutável, mas o grande desafio é fazer
com que as sociedades dominem o mercado e não o contrário.
*Senhor presidente, que medidas os países da América Latina deveriam tomar
para não perder o rumo da histórica na direção de uma integração regional
soberana e progressista. Como vê os avanços no Mercosul, na Unasul e na
Comunidade Andina de Nações (CAN)?*
*Correa* – Avançou-se como nunca antes. Isso não quer dizer que estejamos
bem. Teremos que avançar muito mais rápido. Creio que há uma vocação
concreta e uma posição integracionista sincera, não uma integração
mercantilista como havia antes. O Mercosul nasceu na noite neoliberal dos
anos 90. A CAN nasceu a todo vapor e depois diminuiu. A integração
mercantilista não quer fazer grandes sociedades de nações, mas sim grandes
mercados, não fazer cidadãos de nossa América, mas sim consumidores. A
concepção da Unasul é diferente. Nós temos uma concepção integral, onde uma
parte é comercial, que sempre é importante, mas não é o mais importante, e
as outras partes tem a ver com conectividade, nova arquitetura financeira
regional, harmonização de políticas, políticas de defesa. Oxalá consigamos
avançar também em políticas trabalhistas para que nunca mais caiamos na
América Latina na armadilha de competir para atrair investimentos,
deteriorando e precarizando as forças de trabalho. Ao invés de atrair
capitais na base do suor e das lágrimas de nossos trabalhadores, pensamos
em outro mundo. Como disse, creio que avançamos, mas precisamos ir muito
mais rápido.
*O senhor tocou de passagem o tema do Conselho de Defesa Sulamericano, que
está objetivamente estancado, e seu país sofreu um ataque estrangeiro em
2008. Na sua avaliação, com a chegada do presidente Santos na Colômbia, a
hipótese de tensões entre Colômbia e Equador está completamente dissipada?*
*Correa *- As relações bilaterais entre Equador e Colômbia gozam de um
extraordinário momento. Há uma grande coordenação com o governo do
presidente Santos. A Colômbia sempre foi o vizinho com o qual tivemos a
melhor relação em nossa história. Infelizmente, essa história, séculos de
irmandade, foi rompida pela traição de um presidente como Uribe. Mas,
graças a deus, com o governo do presidente Santos isso foi superado e creio
que ele também tem uma vocação integracionista muito profunda e apoia – de
fato, tem apoiado – a proposta do Conselho de Defesa.
*O Conselho de Defesa teve seus primeiros estremecimentos com o anúncio da
radicação de tropas dos Estados Unidos na Colômbia. Essa possível radicação
de tropas norte-americanas na Colômbia está definitivamente abortada?*
*Correa* – Não tenho maiores conhecimentos a respeito desse assunto. Até
onde sei há uma estreita colaboração norteamericana com o pretexto da luta
antidrogas e oxalá que a ajuda se concentre aí. Mas temos que fazer um
esforço de bastante ingenuidade para nos convencermos disso porque muitas
vezes se fazem outras coisas com essas supostas ajudas, sobretudo com
governos que não sigam a linha de Washington.
*A pergunta anterior está associada a outras situações graves como a
remilitarização com novas bases no Panamá e outros três centros
operacionais do comando Sul , uma base nova no Chile e nas Malvinas o
grande problema é a base britânica ali instalada. Toda esta expansão dos
Estados Unidos não é ameaçadora para a região?*
*Correa* - Nós queremos nos convencer que com Barack Obama, que acreditamos
ser uma boa pessoa, a política internacional dos EUA mudou, mas as
evidências nos mostram que não é assim, que tudo continua lamentavelmente
igual, sobretudo no que diz respeito à América Latina, cujos governos
comprometidos com justiça, dignidade e soberania passaram a ser vistos como
uma ameaça para seus interesses. Devemos estar muito atentos a essa
presença das forças armadas norte-americanas em nossa América e a esse
processo de rearmamentismo que está ocorrendo nesta época tão difícil e
complexa.
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