sexta-feira, 30 de abril de 2010

Direitos Humanos no Espirito Santo

Mestranda em Direito da Puc-rio Tamara Mello envia o seguinte informe:

* OEA: Brasil deve proteger a vida de presos no ES *

30/04/2010
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos
Estados Americanos (OEA) determinou ao governo brasileiro a adoção de
medidas cautelares que protejam a vida e a integridade dos presos do
Departamento de Polícia Judiciária (DPJ) de Vila Velha, no Espírito Santo. A
unidade está entre as que já haviam sido denunciadas à ONU no dia 15 de
março, no caso que ficou conhecido na imprensa como “As Masmorras do
Espírito Santo”.

A decisão da OEA, divulgada nesta sexta-feira, dia 30 de abril, reconhece
que a situação de extremo risco vivenciada pelos presos do DPJ de Vila Velha
e afirma que o Governo deve “adotar todas as medidas necessárias para
proteger a vida, integridade pessoal e saúde das pessoas privadas da
liberdade” na unidade. Requer ainda a adoção de medidas que reduzam
substancialmente a superlotação, evitem a transmissão de doenças contagiosas
dentro das carceragens, e garantam aos internos o acesso a assistência
médica. Esclarecimentos sobre a não separação entre presos condenados e
provisórios também foram pedidos. O Governo brasileiro tem até 20 dias para
informar à Comissão Interamericana sobre o cumprimento das medidas
cautelares.

*Homicídios, tortura, insalubridade e presos algemados no corredor*

Ligado à Secretaria de Segurança Pública do Espírito Santo, o DPJ de Vila
Velha não deveria ter mais de 36 presos provisórios. No entanto, em diversas
visitas realizadas pelas organizações de direitos humanos constatou-se que a
superlotação chegou a superar 256 pessoas (em 5 de novembro de 2009). Após
as denúncias sobre as condições carcerárias do estado feitas na ONU em
março, a população do DPJ foi reduzida e no último dia 6 de abril havia 157
presos (31 já condenados): uma superpopulação que ainda significa um número
quatro vezes maior que a capacidade.

O Centro de Defesa dos Direitos Humanos da Serra, o Centro de Apoio aos
Direitos Humanos Valdicio Barbosa dos Santos, a Justiça Global e a Conectas
Direitos Humanos, autores da denúncia à OEA, verificaram em visitas ao local
que presos eram mantidos algemados pelos pés durante semanas nos corredores
do DPJ. Foi encontrada uma situação de total insalubridade, com casos de
presos com doenças contagiosas como tuberculose sendo mantidos encarcerados
junto com os demais, todos sem acesso a assistência médica.

Casos de violência são comuns nas carceragens do DPJ. Brigas, tentativas de
homicídio, princípios de rebeliões e tentativas de fuga acontecem com
regularidade. Apenas em 2009, pelo menos cinco homens foram assassinados no
interior da unidade. Além disso, são frequentes as denúncias de tortura e
maus-tratos por parte de agentes da Polícia Militar.

Em menos de seis meses, este é o segundo caso em que a OEA defere medidas
cautelares referentes ao sistema de privação de liberdade no ES. Em novembro
de 2009, a CIDH já havia determinado que o Brasil deveria proteger a vida e
a integridade física dos adolescentes internos da UNIS – Unidade de
Atendimento Socioeducativo em Serra. As duas determinações acontecem no
momento em que a Procuradoria Geral da República aprecia um pedido de
intervenção federal no Espírito Santo justamente pelas condições das pessoas
privadas de liberdade no estado.




-

domingo, 25 de abril de 2010

Comparações

Estado de São Paulo Julgamento do último ditador da Argentina lembra que
por lá a autoanistia não funcionou
24 de abril de 2010

Anthony W. Pereira*

*Pessoa segura cartaz de Enrique Juarez Diaz Ramos, que desapareceu durante
regime militar, durante julgamento de Reynaldo Bignone Na
última terça-feira, Reynaldo Benito Bignone, o último presidente do regime
militar que governou a Argentina de 1976 a 1983, foi sentenciado por um
tribunal especial a 25 anos de prisão. Bignone esteve encarregado do Campo
de Mayo, nos arredores de Buenos Aires, onde milhares de prisioneiros
políticos foram torturados e mortos. Sob sua presidência ainda se tentou a
fracassada autoanistia da liderança militar. Apesar da condenação, Bignone
não se arrependeu de sua participação na ditadura, declarando que aquilo foi
"uma guerra irregular na qual as Forças Armadas tiverem de intervir para
derrotar o terrorismo".

O julgamento de Bignone é um forte lembrete das diferenças entre o último
regime militar argentino e a ditadura brasileira. Em 1976, os militares
argentinos derrubaram um governo eleito com considerável apoio e enfrentaram
uma esquerda armada, provavelmente a mais forte da América Latina na época.
Sua repressão contra a esquerda, que começou antes do golpe, foi um dos
capítulos mais sangrentos da história recente da Argentina, reclamando
estimadas 20 mil a 30 mil vidas. As vítimas eram geralmente arrancadas de
casa por membros à paisana da polícia e das forças militares, levadas para
lugares secretos como o Campo de Mayo, torturadas e "desaparecidas", mortas
sem explicação oficial. Os tribunais não representaram nenhum papel exceto
negar pedidos de habeas-corpus e servir de camuflagem para a "guerra suja".
A margem para os visados se protegerem era mínima. Em termos institucionais,
o regime militar argentino foi mais inovador e certamente mais letal que seu
congênere mais conservador brasileiro.

Uma segunda diferença importante em relação ao Brasil foi que a tentativa de
autoanistia dos militares argentinos fracassou. Os militares argentinos, que
haviam iniciado a Guerra das Malvinas e decretado uma reforma econômica que
resultou em severa recessão, saíram do poder em desgraça, sem o controle da
transição para o regime civil. Isso contrasta com a persistência da anistia
no Brasil e o controle considerável que os militares tiveram sobre a
liberalização que conduziu a um presidente civil em 1985.

Uma terceira diferença é que, após a anistia ser anulada, os julgamentos dos
perpetradores de violência sob o regime militar foram uma marca da
democracia argentina. Isso pôde ser visto nos primeiros dois anos da
presidência de Alfonsín, quando o Grande Julgamento levou à prisão de cinco
dos nove ex-líderes do regime militar em 1985. Embora esses criminosos
condenados tivessem sido perdoados posteriormente por Menem, os julgamentos
de outros perpetradores, entre os quais Bignone, foram uma característica
das presidências dos Kirchners. Apesar das controvérsias, esses julgamentos
receberam apoio de alguns argentinos como garantia contra a impunidade de
crimes sancionados pelo Estado e a amnésia sobre abusos dos direitos
humanos. Os julgamentos também tiveram repercussão internacional. Um dos
promotores do Grande Julgamento, Luis Moreno-Ocampo, é hoje promotor do
Tribunal Penal Internacional em Haia. No Brasil, porém, não foi reportado
nenhum julgamento de perpetradores de violência durante o regime, embora
pelo menos uma ação civil contra um alegado torturador tenha sido movida em
São Paulo.

A comparação entre Argentina e Brasil não abarca apenas as diferenças. Os
regimes foram ambos ditatoriais no sentido constitucional clássico definido
pelo cientista político Carl Friedrich. Cada um teve um "direito do Estado"
e não um "Estado de Direito", significando que o governante supremo podia
isentar-se das regras anteriores e exercer o poder por intermédio da força
direta.

A falta de arrependimento de Bignone pelas violações dos direitos humanos
pelo regime militar se repete no Brasil. Em entrevista recente, o general
Leônidas Pires Gonçalves, ministro do Exército no governo de José Sarney,
admitiu que o regime militar brasileiro praticou a tortura, mas defendeu a
prática como "pontual", declarou que ninguém foi preso injustamente sob o
regime militar e defendeu a emboscada e massacre dos líderes do PC do B
pelas forças de segurança em 1976 com a frase "Guerra é guerra... Na guerra
não há nada bonito, a não ser a vitória" (Eugênio Bucci, O Passado como
Cárcere, O Estado, 22 de abril de 2010).

Finalmente, uma reconciliação após a violência da ditadura foi tão ilusória
no Brasil como na Argentina. A filósofa Hannah Arendt escreveu que a
"possibilidade de redenção (de violências passadas) é a faculdade de
perdoar". Embora não se peça às vítimas que perdoem, um espírito de
abertura, honestidade e busca da verdade pode criar condições nas quais o
perdão ao menos se torne possível.

TRADUÇÃO DE CELSO M. PACIORNIK

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Estado de exceção no Paraguai

Valor Economico 23 de abril de 2010
Senado paraguaio aprova estado de exceção contra crime
O Senado do Paraguai aprovou ontem a aplicação de um estado de exceção no norte do país para ajudar o presidente da República, Fernando Lugo, a combater um grupo armado acusado de assassinatos e sequestros e de ligações com guerrilheiros da Colômbia.

A medida, solicitada pelo Executivo, deve ser votada hoje pela Câmara dos Deputados.

Lugo já enviou reforço policial e soldados para o norte do país, onde seis civis e um policial foram assassinados na quarta-feira. Eles teriam morrido numa emboscada armada por combatentes do Exército do Povo Paraguaio (EPP). Dois deles seriam brasileiros que trabalhavam como capatazes em fazendas da região. A polícia e os trabalhadores das fazendas estavam investigando a morte de gado, quando foram emboscados.

Se for confirmado pelos deputados, o Estado de exceção dará a Lugo poderes para ordenar prisões e proibir encontros públicos e protestos nos Estados de San Pedro, Concepción, Amambay, Alto Paraguay e Presidente Hayes, na fronteira com o Brasil e com a Bolívia. Os senadores aprovaram a medida pelo período de 30 dias, metade do que o governo queria.

Lugo, um ex-bispo católico de inclinação socialista, disse que as medidas foram solicitadas para que o governo possa agir com urgência e para que as Forças Armadas "tenham a liberdade de que precisam para agir".

Autoridades paraguaias dizem que o EPP tem cerca de 100 membros e que opera em áreas remotas no norte do país, onde há um concentração de plantações de maconha.

O governo suspeita que o grupo tenha ligações com os guerrilheiros das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc). O EPP é acusado por pelo menos quatro sequestros desde 2001 e por ataques a edifícios do governo e a delegacias.

Três dos integrantes do EPP vivem no Brasil como asilados políticos. No início do ano, o governo Lugo solicitou a Brasília que revisse o asilo e entregasse os três.

"Temos uma crise de segurança em nossas mãos", disse o presidente do Congresso, Miguel Carrizosa, justificando a aprovação das medidas de exceção pelos senadores.

A última vez que um estado de exceção foi imposto no Paraguai foi em 2002, por conta dos protestos contra o governo do então presidente, Luis Gonzalez Macchi. Durante os 35 anos da ditadura do general Alfredo Stroessner, encerrada em 1989, esse recurso foi usado com frequência.

A decisão do Senado ontem foi bem recebida pelos governadores cujos Estados são alvo das medidas. Juan Bartolomé, governador de Amambay, elogiou a medida do Executivo contra o EPP como recurso importante "para eliminar esta célula criminosa" que , segundo ele, "não passam de uns vulgares delinquentes".

Mas para o ex-senador Hermes Rafael Saguier, um dos figurões do Partido Liberal, que faz críticas ao governo Lugo, o estado de exceção "é um recurso político muito pobre para tratar de compensar a ineficiência do governo". Segundo ele, a medida só se justifica quando há um estado de comoção, com manifestações, algo que não se vê nas regiões submetidas à medida.

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Cumrpimento de decisão da Corte Interamericana

- DECRETO No - 7.158, DE 20 DE ABRIL DE 2010



- Autoriza a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República a dar
cumprimento a sentença exarada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.



- O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no uso da atribuição que lhe confere o art. 84, inciso
IV, da Constituição, e Considerando a sentença da Corte Interamericana de Direitos
Humanos no caso Arley José Escher e outros; Considerando a existência de previsão
orçamentária para pagamento de indenização a vítimas de violação das obrigações
contraídas pela União por meio da adesão a tratados internacionais de proteção dos
direitos humanos;



- D E C R E T A :



- Art. 1o Fica a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República
autorizada a promover as gestões necessárias ao cumprimento da sentença da Corte
Interamericana de Direitos Humanos, expedida em 6 de julho de 2009, referente ao
caso Arley José Escher e outros, em especial a indenização pelas violações dos
direitos humanos às vítimas ou a quem de direito couber, na forma do Anexo a este
Decreto.

Art. 2o Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação.

Brasília, 20 de abril de 2010; 189o da Independência e 122º da República.

LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA

Paulo de Tarso Vannuchi

Ex-chanceler condenado no Uruguai

Folha de São Paulo, quinta-feira, 22 de abril de 2010




Ex-chanceler é condenado por homicídio de 1976 no Uruguai
DA EFE

O ex-chanceler uruguaio Juan Carlos Blanco, que foi ministro durante parte da ditadura militar do país (1973-1985), foi condenado ontem a 20 anos de prisão pelo desaparecimento e a morte da professora Elena Quinteros, em 1976, segundo fontes judiciais.
A professora e militante desapareceu em 28 de junho de 1976 após ter sido detida por forças de segurança no jardim da Embaixada da Venezuela em Montevidéu, onde visava pedir asilo. Por isso, o caso resultou na ruptura das relações diplomáticas entre Venezuela e Uruguai, que só reataram em 1985, com a volta da democracia ao país e a posse do presidente Julio María Sanguinetti.
O ex-ministro de Relações Exteriores foi condenado ontem pelo juiz Juan Carlos Fernández Lecchini por coautoria de "homicídio especialmente agravado" e não por "desaparecimento forçado", pedido inicial da promotora Mirtha Guianze em 2008.
Blanco foi a primeira pessoa a ser processada no Uruguai por crimes contra a humanidade. Ele está na prisão desde 2006, quando foi detido junto com o ex-ditador Juan María Bordaberry (eleito democraticamente em 1971, mas que deu golpe de Estado em 1973 e governou até 1976), ambos acusados do assassinato de dois parlamentares uruguaios e dois militantes Tupamaros, em Buenos Aires, também em 1976 e dentro da Operação Condor, política de colaboração entre as ditaduras sul-americanas.
Bordaberry está hoje em prisão domiciliar, cumprindo outra condenação, de 30 anos, por responsabilidade no homicídio de dez pessoas desaparecidas durante seu governo.

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Condenado ditador argentino

Folha de São Paulo 21 de abril de 2010


Justiça argentina condena ex-ditador
Reynaldo Bignone, 82, recebe sentença de 25 anos de prisão por crimes contra a humanidade cometidos em centro de tortura clandestino

Tribunal determina ainda que militar não pode cumprir a pena em prisão domiciliar; revogação de leis de anistia possibilitou o julgamento


Reynaldo Bignone, último general a presidir a Argentina durante a mais recente ditadura militar do país (1976-1983), foi condenado ontem a 25 anos de prisão, por crimes contra a humanidade cometidos no Campo de Maio, centro clandestino de tortura do regime.
O tribunal federal que julgou Bignone, 82, determinou que ele cumpra a pena em prisão comum, revogando a prisão domiciliar à qual estava submetido por outros crimes pelos quais já havia sido condenado.
A decisão foi saudada pelo secretário de Direitos Humanos do governo Cristina Kirchner, Eduardo Luis Duhalde, como "exemplar" e demonstrativa de "um novo avanço na luta contra a impunidade".
A punição dos responsáveis por violações de direitos humanos durante a ditadura é uma bandeira do casal Kirchner -no governo de Néstor, antecessor de Cristina, foram revogadas as leis de anistia promulgadas durante a gestão de Raúl Alfonsín, primeiro presidente eleito após a ditadura. Desde a revogação, em 2005, já foram reabertos mais de mil processos contra repressores.
A leitura da sentença contra Bignone, transmitida ao vivo por rádios e TVs, foi acompanhada por diversos representantes de associações que reivindicam a punição dos responsáveis pelos crimes da ditadura, como as Avós da Praça de Maio, que festejaram a decisão.
Em seu depoimento, Bignone classificou o período da ditadura como uma "guerra irregular" na qual as Forças Armadas "tiveram que intervir, para derrotar o terrorismo".
Ele denominou como "legítimas" as ordens de repressão que deu durante o período, negando tratar-se de crimes.
O ex-ditador questionou as cifras que apontam 30 mil civis argentinos desaparecidos pelo regime militar e 500 bebês de militantes políticos nascidos sob a guarda do Estado e apropriados ilegalmente pelas Forças Armadas.
Bignone afirmou que "nunca se demonstrou [ter havido] mais de 8.000 desaparecidos" pelo regime e disse que a apropriação de bebês "não chegou a 30, nenhuma delas cometida por contingente militar".
Diversas vezes vaiado pela plateia, o ex-ditador rechaçou o tratamento de genocida. "Rotulam-nos de repressores e genocidas. Em princípio, o termo repressão não é uma desqualificação. A autoridade tem o dever de reprimir delitos de qualquer natureza. [O termo] genocida não resiste à menor análise, porque o que houve em nosso país não se enquadra minimamente na definição internacional de delito de genocídio. Somente porta-vozes do ódio podem defender isso", afirmou.
Além de Bignone, também receberam a pena de 25 anos de prisão, por crimes cometidos entre 1976 e 1978 no Campo de Maio, os militares Santiago Riveros e Fernando Verplaetsen. O processo condenou ainda os repressores Carlos Alberto Tepedino (a 20 anos de detenção), Jorge García (18 anos) e Eugenio Guañabens (17 anos).

domingo, 18 de abril de 2010

A pesquisa de Toharia e o caso Garzón na Espanha

Juan Toharia é grande sociólogo sobre pode judiciário na Espanha Trabalha muito o perfil do Judiciário e a questão da opinião púlica.


Domingo, 18/4/2010


ELPAIS. El acoso al juez Garzón
La Justicia como dolencia, el 'caso Garzón' como síntoma
JOSÉ JUAN TOHARIA 18/04/2010


Vota Resultado 69 votos
Los datos de encuestas recientes de Metroscopia publicados a lo largo de las últimas semanas en estas páginas revelan el desolador diagnóstico que sobre la situación actual de su justicia realizan los españoles. Dos de cada tres (el 65%) creen que la Administración de justicia española está politizada, y lo piensa la misma proporción de votantes socialistas (69%) que populares (71%). En los términos del sondeo del que estos datos proceden (y que aquí sólo resumo) cabe interpretar que esta respuesta va referida más al "aparato judicial" en su conjunto que a los jueces en concreto. Sabemos, por estudios recurrentes anteriores, que al ciudadano medio no le inquieta ni escandaliza que los jueces tengan ideas o preferencias políticas: lo da por supuesto, de puro obvio. Lo que le resulta inaceptable es que pueda intentarse (y no digamos conseguirse) que en algún caso un juez o un órgano jurisdiccional actúe (o parezca actuar) no según sus propios criterios y convicciones -que en eso consiste la independencia judicial- sino al dictado de consignas partidistas y sectarias externas, del color que sean. Sencillamente, lo que a nuestra ciudadanía escandaliza no es que quienes integran cualquiera de los distintos órganos del sistema judicial sean, personalmente, progresistas o conservadores, de izquierda, de centro o de derecha, sino que entre ellos pueda haber personas que acepten convertirse en meras terminales mecánicas de los partidos o sindicatos de jueces (dejémonos a este respecto de eufemismos) y resulten así infaliblemente predecibles en sus comportamientos y actuaciones. Eso es sin duda lo que intenta expresar ese alarmante 65% que considera que nuestra justicia está politizada.


Los jueces del punto final

La polémica sobre Garzón moviliza a los electores de PSOE y PP más que ningún otro asunto

El principal daño colateral es un mayor deterioro de la imagen de nuestra justicia
Pero hay más: tres de cada cuatro españoles (el 73%, sin que esta proporción varíe entre los votantes populares o socialistas) tiene la impresión de que el Consejo General del Poder Judicial decide los nombramientos de cargos judiciales no en función de los méritos y de la cualificación profesional de los candidatos, sino por criterios de amiguismo y/o ideológicos. Esta generalizada idea no sólo es de gravedad extrema sino que resulta doblemente nociva para la buena salud de nuestra democracia: por un lado, porque supone una descalificación profunda y difícil de ignorar del órgano constitucionalmente encargado, precisamente, de velar por la buena (es decir, honesta, independiente y objetiva) gestión de las carreras profesionales de los jueces; de otro, porque proyecta una sombra de sospecha, tan indiscriminada como por ello mismo las más de las veces injusta, sobre todo nombramiento efectuado. No es así de extrañar que el 72% de la ciudadanía concluya que nuestra justicia necesita una reforma profunda.

Para complicar aún más el panorama, sobre el marco de base que proporciona este desazonante clima de opinión, viene ahora a insertarse lo que cabe etiquetar como caso Garzón. Vaya por delante que la figura de este mediático juez ha suscitado siempre reacciones encontradas entre la ciudadanía. Por ejemplo, hace ya un año el 41% de los españoles decía estar de acuerdo, en general, con las decisiones adoptadas a lo largo de su carrera por el juez Garzón; un 36%, en cambio, decía haber estado usualmente en desacuerdo con ellas. Pues bien, incluso desde esta controvertida valoración de su figura, una amplia mayoría absoluta (61%) consideraba hace unas semanas que los procesamientos abiertos contra Garzón no eran algo que debiera tomarse como algo natural, sino que "obedecían a una persecución personal contra un juez que con sus investigaciones se ha creado muchos enemigos". Esta idea de la "persecución personal" estaba ampliamente extendida entre los votantes socialistas (71%) pero era expresada también por el 55% de los votantes populares: es decir, era una sensación sustancialmente compartida en los dos principales electorados. En el concreto caso de la admisión a trámite por el Tribunal Supremo de la querella referida a una supuesta actuación prevaricadora en la investigación de crímenes cometidos por el bando franquista durante la Guerra Civil, el desacuerdo de la ciudadanía fue asimismo mayoritario, en proporción de dos a uno (58% frente a 30%). Ahora bien, con una clara bifurcación de las actitudes de los votantes socialistas y populares: entre los primeros, el 79% se mostró en desacuerdo con dicha admisión a trámite; el 58% de los segundos se declaró, en cambio, de acuerdo.

Por último, ahora que esa admisión a trámite ha desembocado en la decisión de sentar a Garzón en el banquillo, la mayoría de los españoles (51%) sigue mostrándose en desacuerdo, si bien sube ya hasta un 39% quienes aprueban la medida. Y se intensifica la polarización de actitudes de los votantes socialistas y populares, que pasan a ser justamente inversas: el 68% de los primeros está en desacuerdo con que se juzgue a Garzón por este asunto, mientras que el 68% de los segundos está de acuerdo.

A esta altura de los acontecimientos, y a la espera de cómo pueda verse afectada en adelante la opinión ciudadana por la espiral de crispación ambiental en torno a este tema, cabe extraer al menos dos conclusiones de esta secuencia de datos. La primera, que el caso Garzón parece estar sirviendo para movilizar y galvanizar a los votantes de los dos principales partidos y encresparlos entre sí en mucha mayor medida que cualquiera de los otros múltiples posibles temas de enfrentamiento que les ofrece nuestra actual situación, que ya es decir. La segunda, que el principal daño colateral que pueda originar todo este turbio, sorprendente y desagradable asunto sea un mayor deterioro (y no sólo dentro sino también fuera de nuestras fronteras) de la imagen de nuestra Justicia, ya de por sí suficientemente maltrecha.


José Juan Toharia es catedrático de Sociología y presidente de Metroscopia.

A pesquisa de Toharia e o caso Garzón na Espanha

Juan Toharia é grande sociólogo sobre pode judiciário na Espanha Trabalha muito o perfil do Judiciário e a questão da opinião púlica.


Domingo, 18/4/2010


ELPAIS. El acoso al juez Garzón
La Justicia como dolencia, el 'caso Garzón' como síntoma
JOSÉ JUAN TOHARIA 18/04/2010


Vota Resultado 69 votos
Los datos de encuestas recientes de Metroscopia publicados a lo largo de las últimas semanas en estas páginas revelan el desolador diagnóstico que sobre la situación actual de su justicia realizan los españoles. Dos de cada tres (el 65%) creen que la Administración de justicia española está politizada, y lo piensa la misma proporción de votantes socialistas (69%) que populares (71%). En los términos del sondeo del que estos datos proceden (y que aquí sólo resumo) cabe interpretar que esta respuesta va referida más al "aparato judicial" en su conjunto que a los jueces en concreto. Sabemos, por estudios recurrentes anteriores, que al ciudadano medio no le inquieta ni escandaliza que los jueces tengan ideas o preferencias políticas: lo da por supuesto, de puro obvio. Lo que le resulta inaceptable es que pueda intentarse (y no digamos conseguirse) que en algún caso un juez o un órgano jurisdiccional actúe (o parezca actuar) no según sus propios criterios y convicciones -que en eso consiste la independencia judicial- sino al dictado de consignas partidistas y sectarias externas, del color que sean. Sencillamente, lo que a nuestra ciudadanía escandaliza no es que quienes integran cualquiera de los distintos órganos del sistema judicial sean, personalmente, progresistas o conservadores, de izquierda, de centro o de derecha, sino que entre ellos pueda haber personas que acepten convertirse en meras terminales mecánicas de los partidos o sindicatos de jueces (dejémonos a este respecto de eufemismos) y resulten así infaliblemente predecibles en sus comportamientos y actuaciones. Eso es sin duda lo que intenta expresar ese alarmante 65% que considera que nuestra justicia está politizada.


Los jueces del punto final

La polémica sobre Garzón moviliza a los electores de PSOE y PP más que ningún otro asunto

El principal daño colateral es un mayor deterioro de la imagen de nuestra justicia
Pero hay más: tres de cada cuatro españoles (el 73%, sin que esta proporción varíe entre los votantes populares o socialistas) tiene la impresión de que el Consejo General del Poder Judicial decide los nombramientos de cargos judiciales no en función de los méritos y de la cualificación profesional de los candidatos, sino por criterios de amiguismo y/o ideológicos. Esta generalizada idea no sólo es de gravedad extrema sino que resulta doblemente nociva para la buena salud de nuestra democracia: por un lado, porque supone una descalificación profunda y difícil de ignorar del órgano constitucionalmente encargado, precisamente, de velar por la buena (es decir, honesta, independiente y objetiva) gestión de las carreras profesionales de los jueces; de otro, porque proyecta una sombra de sospecha, tan indiscriminada como por ello mismo las más de las veces injusta, sobre todo nombramiento efectuado. No es así de extrañar que el 72% de la ciudadanía concluya que nuestra justicia necesita una reforma profunda.

Para complicar aún más el panorama, sobre el marco de base que proporciona este desazonante clima de opinión, viene ahora a insertarse lo que cabe etiquetar como caso Garzón. Vaya por delante que la figura de este mediático juez ha suscitado siempre reacciones encontradas entre la ciudadanía. Por ejemplo, hace ya un año el 41% de los españoles decía estar de acuerdo, en general, con las decisiones adoptadas a lo largo de su carrera por el juez Garzón; un 36%, en cambio, decía haber estado usualmente en desacuerdo con ellas. Pues bien, incluso desde esta controvertida valoración de su figura, una amplia mayoría absoluta (61%) consideraba hace unas semanas que los procesamientos abiertos contra Garzón no eran algo que debiera tomarse como algo natural, sino que "obedecían a una persecución personal contra un juez que con sus investigaciones se ha creado muchos enemigos". Esta idea de la "persecución personal" estaba ampliamente extendida entre los votantes socialistas (71%) pero era expresada también por el 55% de los votantes populares: es decir, era una sensación sustancialmente compartida en los dos principales electorados. En el concreto caso de la admisión a trámite por el Tribunal Supremo de la querella referida a una supuesta actuación prevaricadora en la investigación de crímenes cometidos por el bando franquista durante la Guerra Civil, el desacuerdo de la ciudadanía fue asimismo mayoritario, en proporción de dos a uno (58% frente a 30%). Ahora bien, con una clara bifurcación de las actitudes de los votantes socialistas y populares: entre los primeros, el 79% se mostró en desacuerdo con dicha admisión a trámite; el 58% de los segundos se declaró, en cambio, de acuerdo.

Por último, ahora que esa admisión a trámite ha desembocado en la decisión de sentar a Garzón en el banquillo, la mayoría de los españoles (51%) sigue mostrándose en desacuerdo, si bien sube ya hasta un 39% quienes aprueban la medida. Y se intensifica la polarización de actitudes de los votantes socialistas y populares, que pasan a ser justamente inversas: el 68% de los primeros está en desacuerdo con que se juzgue a Garzón por este asunto, mientras que el 68% de los segundos está de acuerdo.

A esta altura de los acontecimientos, y a la espera de cómo pueda verse afectada en adelante la opinión ciudadana por la espiral de crispación ambiental en torno a este tema, cabe extraer al menos dos conclusiones de esta secuencia de datos. La primera, que el caso Garzón parece estar sirviendo para movilizar y galvanizar a los votantes de los dos principales partidos y encresparlos entre sí en mucha mayor medida que cualquiera de los otros múltiples posibles temas de enfrentamiento que les ofrece nuestra actual situación, que ya es decir. La segunda, que el principal daño colateral que pueda originar todo este turbio, sorprendente y desagradable asunto sea un mayor deterioro (y no sólo dentro sino también fuera de nuestras fronteras) de la imagen de nuestra Justicia, ya de por sí suficientemente maltrecha.


José Juan Toharia es catedrático de Sociología y presidente de Metroscopia.

Constitucionalismo latino-americano

, 18 de abril de 2010 Folha de São Paulo
Crise de futuro reitera heróis do passado, diz historiador venezuelano
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FLÁVIA MARREIRO
em Caracas

O historiador e antropólogo venezuelano Fernando Coronil, professor da Universidade da Cidade de Nova York, é autor "The Magic State: Nature, Money and Modernity in Venezuela" (The University of Chicago Press, 1997), considerado um clássico moderno sobre o Estado venezuelano, a relação com o petróleo e a tradição de presidentes fortes.

Na entrevista abaixo, ele comenta as comemorações do bicentenário de independência da América Hispânica e seu significado para os governos esquerdistas da região, a o momento difícil do chavismo e os rumos --ou a falta deles-- no projeto do "socialismo do século 21".

Coronil prepara um livro sobre o golpe fracassado contra Chávez em 2002.

FOLHA - De todos os governos "refundacionistas" da região, que mencionam como meta a "segunda e definitiva independência", Chávez é quem dedica mais tempo à operação para se vincular à imagem de um Bolívar, líder de uma rebeldia popular, e não o patrício unificador. Bolívar tem essa força no imaginário venezuelano que justifique tanto investimento?

FERNANDO CORONIL -Bolívar tem indiscutivelmente muita força no imaginário venezuelano. Basta revisar a nossa história e observar que Bolívar é o modelo exemplar de líder nacional de todos os nossos presidentes, desde Guzmán Blanco nos século 19 até Chávez. Mas o interessante é como é usado e qual a razão. Sempre nas Américas as elites usaram a independência como um momento fundacional de nação e tipicamente viram seus próprios projetos como "segunda independência".

Agora, há duas coisas novas. Em primeiro lugar, os governos que se apresentam como "esquerdistas" também anunciam uma segunda independência, mas os momentos fundacionais já não são só as guerras de independência: para Evo Morales são 500 anos de luta anticolonianista; para os Kirchner são as lutas do peronismo progressista; para Michelle Bachelet a empreitada allendista. Para Chávez é fundamentalmente a guerra da independência porque isso lhe permite se apresentar como um "segundo Bolívar". Mas até Chávez expandiu a genealogia da Revolução: ontem, falou de 200 anos de luta, mas também de 500 anos, uniu Bolívar com a lutas de Guaicaipuro, o cacique conhecido por sua resistência aos colonizadores espanhóis.

Para o povo, Chávez representa o mestiço, Bolívar, mas também Guaicaipuro. Mas como bem sugere a pergunta, o Bolívar de Chávez não é o Bolívar patrício das elites caraquenhas, mas o Bolívar popular tão brilhantemente analisado por Yolanda Salas.

É o Bolívar redentor do povo comum que encontramos no imaginário popular venezuelano, tanto secular como religioso --como por exemplo, na religião de Maria Lionza, onde Bolívar é, junto com Maria Lionza, o espírito mais elevado [religião sincrética boliviana com característica comuns com as religiões afro-brasileiras].

Em segundo lugar, essa reiteração de heróis do passado ocorre porque há uma crise de futuro. Nenhum sistema oferece um futuro confiável, viável: nem o futuro capitalista, porque o capitalismo não traz bem-estar a toda a humanidade e destrói o planeta, nem o futuro do socialismo, porque todos os socialismos reais ficaram muito distantes da utopia prometida. Então, todos os presidentes esquerdistas, sem modelos de futuro, tem de negociar no presente com o capitalismo, prometendo um futuro vago, e buscar modelos sólidos no passado. A constante repetição e celebração do heroico passado revela a necessidade de ter um fundamento sólido quando o horizonte de futuro parece falso.

FOLHA - O sr. já disse que Chávez "produz" história o tempo todo, que essa "verborragia" é parte importante do governo. Com a crise energética e a inflação, há um risco de que essa "magia das palavras", e especialmente da tão repetida "revolução" se acabe? Como avalia esse momento do chavismo?

CORONIL - Evidentemente, Chávez é um grande encantador. Esse é um momento difícil para o chavismo. Todo o encanto tem de se basear em conquistas, não só em palavras. O desencanto cresce no abismo entre as conquistas e as promessas.

A crise energética, a inflação, a insegurança, a crise produtiva, a corrupção estão minando seu projeto. Contra o desencanto, Chávez propôs intensificar a polarização do país entre revolucionários e "burgueses pitiyanquis". Na minha opinião, a única estratégia que pode ter êxito agora é o encanto da eficiência. As palavras, inclusive as vibrantes deles, não são suficientes para evitar o desencanto. Agora são necessárias obras.

FOLHA - Chávez insiste que é necessário "avançar" e "aprofundar" o socialismo. Disse também, nessa semana, que, se o derrubam, haverá anarquia. Ao mesmo tempo, não há --ou ele não deixa que exista_ nenhuma liderança que se destaque hoje no chavismo além de Chávez. Qual a sua avaliação?

CORONIL - É evidente que Chávez está preocupado --pela vida de seu projeto e por sua própria vida. Para assegura a vida da revolução, propõe aprofundar o socialismo. Para evitar o magnicídio, ameaça a com a radicalização da revolução. Creio que se evita a morte da revolução criando condições que levem a um bem-estar coletivo. E se evita o magnicídio criando as condições para que sua liderança não seja indispensável --não ameaçando a oposição como se fosse um castigo. Se o socialismo é participativo, então o aprofundamento do socialismo deveria significar a participação de todos na política e por tanto, o surgimento de múltiplas lideranças e da diminuição de um clima de polarização.

FOLHA - O que esperar das eleições legislativas de setembro?

CORONIL - Creio que as eleições de setembro vão provocar uma mudança saudável na Assembleia: ela vai representar melhor a situação do país, a existência de um forte setor chavista, mas também uma variada oposição. Embora Chávez não pense assim, é bom para o país e bom para o aprofundamento da democracia, especialmente a socialista.

FOLHA - O senhor fala do "Estado mágico" venezuelano, da tradição personalista dos presidentes do petroestado venezuelano, o que mostra que o modelo de liderança de Chávez não é exatamente novo. Qual o lugar de Chávez na história Venezuelana?

CORONI - Chávez representa a apoteose de toda uma tradição de Estados mágicos. Todos os petroestados anteriores prometeram harmonia e bem-estar. O novo é que Chávez promete Justiça: é um Estado justiceiro. Promete bem-estar para as maiorias excluídas, castigo para os oligarcas exploradores. Creio que Venezuela é um dos poucos países do mundo onde se poderia ter produzido um Estado justiceiro menos polarizado. Mas ainda que tomássemos essa opção como válida, creio que seu lugar na história dependerá de sua capacidade ser efetivamente justiceiro: reduzir as desigualdades e da exclusão social. Já é uma conquista Chávez ter dado às maiorias um sentido de pertencimento ao país e ao sistema político. Mas seu grande desafio é transformar esse sentimento em uma participação real. Ainda tem até 2012 para responder a esse desafio. A história está escapando-lhe das mãos, mas talvez ainda haja tempo de melhorar seu caminho e encontrar seu lugar na história.

Para melhorar seu caminho, porém, penso que não deve encolhê-lo, com está fazendo, mas ampliar-lo. Não deve polarizar ou militarizar, mas integrar. Deve incluir gente competente, capaz paz de ser crítica --e escutá-los. Venezuela tem milhares de engenheiros elétricos muito capacitados. É incrível que estejamos sofrendo uma crise energética. É um momento para mudanças. Se não mudar o passo, não encontrará melhor caminho.

FOLHA - Nesta semana, Chávez fez uma grande manifestação para comemorar a reversão do golpe em 2002. Levou para a avenida Bolívar, no centro de Caracas, 35 mil integrantes da Milícia Nacional Bolivariana. Essa militarização deve ser motivo de preocupação?

CORONIL - Esse ano me pareceu mais importante. Nos primeiros anos após o golpe, eram comemorações mais discretas. Esse ano, Chávez falou na avenida Bolívar, e não me lembro de ele ter feito isso antes. Não tenho certeza do que motivou a manifestação. Mas imagino que tenha a ver com as eleições, com a queda de popularidade de Chávez. Como dizia antes, quando se fala de 200 anos de luta, de 500 anos de luta, é porque não se tem certeza quanto ao futuro. Havia umas 30 mil pessoas que estavam, de alguma maneira, obrigadas a estar lá. Não foi uma manifestação popular maciça, como já houve outras no chavismo. Foi restrita --o tom era o verde-oliva militar, não uma manifestação cívica.

Sempre tive preocupação com a militarização num projeto que se apresenta como aprofundamento da democracia, que deveria abarcar todos os setores e orientações. Quando se fala de militarização, fala-se de uma única voz.

FOLHA - Quando Chávez fala de socialismo, para que está convidando os venezuelanos? O sr. crê que há um plano? Quanto da economia deve estar na mão do Estado, quanto devem ser cooperativas?

CORONIL - Tenho tentado seguir a pista do que seria o "socialismo do século 21", mas não há nada muito claro. A experiência de propriedades sociais, de cooperativas não têm tido muito êxito no país, e ainda são marginais. O que tem ocorrido tem muito mais a ver com o socialismo do século 20. As nacionalizações de empresas e bens privados tem acontecido arbitrariamente, sem um plano maior. Ao que se sabe as fazendas que foram nacionalizadas, as indústrias nacionalizadas no Estado de Guayana não estão rendendo bem. Paradoxalmente, o curioso é que o coração da economia --a indústria petroleira-- tudo acontece sem grande discussão, aí onde precisamente deveria haver. Paradoxalmente, enquanto se nacionaliza empresas menores, o edifício A França, no centro de Caracas, o Estado fecha as negociações petroleiras sem debate. Pode ser que o modelo de empresas mistas de exploração seja a mais justa ou melhor, mas não se discute. É um tema delicado, onde não há consenso. E deveria haver um consenso nacional. Discutir o que convém e o que não convém ao Estado, a questão tecnológica, a questão das empresas estrangeiras como coproprietárias das reservas...

Entrevista de Eric Hobsbawn - leiam!

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Folha de São Paulo, domingo, 18 de abril de 2010



POLÍTICA EXTREMA

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UM DOS MAIS INFLUENTES HISTORIADORES VIVOS, ERIC HOBSBAWM DIZ QUE A CRISE ECONÔMICA LEVOU À REDESCOBERTA DE MARX E QUE O EQUILÍBRIO MUNDIAL DEPENDE DAS POTÊNCIAS EMERGENTES
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Aos 92 anos, o historiador britânico Eric Hobsbawm continua um feroz crítico da prevalência do modelo político-econômico dos EUA. Para ele, o presidente americano Barack Obama, ao lidar com as consequências da crise econômica, desperdiçou a chance de construir maneiras mais eficazes de superá-la.
"Podemos desejar sucesso a Obama, mas acho que as perspectivas não são tremendamente encorajadoras", diz, na entrevista abaixo. "A tentativa dos EUA de exercer a hegemonia global vem fracassando de modo muito visível."
Hobsbawm discute ainda questões globais contemporâneas -como as tentativas de criar Estados supranacionais, a xenofobia e o crescimento econômico chinês- à luz do que expressou em livros como "Era dos Extremos" e "Tempos Interessantes" (ambos publicados pela Cia. das Letras).




PERGUNTA - "Era dos Extremos" termina em 1991, com um panorama de avalanche global -o colapso das esperanças de avanços sociais da era de ouro [para Hobsbawm, 1949-73]. Quais são as mudanças mais importantes desde então?
ERIC HOBSBAWM - Vejo quatro mudanças principais. Primeiro, o deslocamento do centro econômico do mundo do Atlântico Norte para o sul e o leste da Ásia. Isso já estava começando no Japão nas décadas de 1970 e 80, mas a ascensão da China desde os anos 1990 vem fazendo uma diferença real.
Em segundo lugar, é claro, a crise mundial do capitalismo, que vínhamos prevendo, mas que, mesmo assim, levou muito tempo para ocorrer. Em terceiro, a derrota retumbante da tentativa dos EUA de exercer a hegemonia global solo a partir de 2001.
Em quarto lugar, a emergência de um novo bloco de países em desenvolvimento, como entidade política -os Brics [Brasil, Rússia, Índia e China]-, não tinha acontecido quando escrevi "Era dos Extremos".
E, em quinto lugar, a erosão e o enfraquecimento sistemático da autoridade dos Estados: dos Estados nacionais no interior de seus territórios e, em grandes regiões do mundo, de qualquer tipo de autoridade de Estado efetiva. Isso se acelerou em um grau que eu não teria previsto.
PERGUNTA - O que mais o surpreendeu desde então?
HOBSBAWM - Nunca deixo de me espantar com a pura e simples insensatez do projeto neoconservador, que não apenas fez de conta que a América fosse o futuro, mas chegou a pensar que tivesse formulado uma estratégia e uma tática para alcançar esse objetivo. Pelo que consigo enxergar, ele não tinha uma estratégia coerente, em termos racionais.
Em segundo lugar -fato muito menor, mas significativo-, o ressurgimento da pirataria, algo que já tínhamos em grande medida esquecido; isso é novo.
E a terceira coisa, que é ainda mais local: a derrocada do Partido Comunista da Índia (Marxista) em Bengala Ocidental [no leste da Índia], algo que eu realmente não teria previsto.

PERGUNTA - O sr. visualiza uma recomposição política daquilo que foi no passado a classe trabalhadora?
HOBSBAWM - Não em sua forma tradicional. Marx [1818-83] acertou, sem dúvida, quando previu a formação de grandes partidos de classe em determinado estágio da industrialização. Mas esses partidos, quando foram bem-sucedidos, não operaram puramente como partidos da classe trabalhadora: se queriam estender-se para além de uma classe estreita, o faziam como partidos do povo, estruturados em torno de uma organização inventada pela classe trabalhadora e voltada a alcançar os objetivos dela.
Mesmo assim, havia limites à consciência de classe. No Reino Unido, o Partido Trabalhista nunca conquistou mais de 50% dos votos. O mesmo se aplica à Itália, onde o Partido Comunista era muito mais um partido do povo.
Na França, a esquerda era baseada sobre uma classe trabalhadora relativamente fraca, mas que conseguiu se reforçar como sucessora essencial da tradição revolucionária.
O declínio da classe operária manual na indústria parece, de fato, ter atingido seu estágio terminal.
Houve três outras mudanças negativas importantes. Uma delas, é claro, é a xenofobia -que, para a maior parte da classe trabalhadora é, nas palavras usadas certa vez por [August] Bebel, "o socialismo dos tolos": proteja meu emprego contra pessoas que estão competindo comigo.
Em segundo lugar, boa parte da mão de obra e do trabalho nos setores que a administração pública britânica qualificava no passado como "graus menores e manipulativos" não é permanente, mas temporária. Assim, não é fácil enxergá-la como tendo potencial de ser organizada.
A terceira e mais importante mudança é, a meu ver, a divisão crescente gerada por um novo critério de classe: a saber, a aprovação em exames de escolas e universidades como critério de acesso a empregos. Pode-se dizer que se trata de uma meritocracia, mas ela é medida, institucionalizada e mediada por sistemas de ensino.
O que isso fez foi desviar a consciência de classe da oposição aos patrões para a oposição a representantes de alguma elite: intelectuais, elites liberais, pessoas que se erguem como superiores a nós.

PERGUNTA - Que comparações o sr. traçaria entre a crise atual e a Grande Depressão?
HOBSBAWM - [A crise de] 1929 não começou com os bancos -eles só caíram dois anos mais tarde. O que aconteceu, na verdade, foi que a Bolsa de Valores desencadeou uma queda na produção, com um índice muito mais alto de desemprego e um declínio real muito maior na produção do que havia ocorrido em qualquer momento até então.
A depressão atual levou mais tempo sendo preparada que a de 1929, que pegou quase todos de surpresa. Deveria ter sido claro desde cedo que o fundamentalismo neoliberal gerou uma instabilidade enorme nas operações do capitalismo. Até 2008, isso pareceu afetar apenas as áreas periféricas -a América Latina nos anos 1990 e no início da década de 2000; o Sudeste Asiático e a Rússia.
Parece-me que o verdadeiro indício de algo grave acontecendo deveria ter sido o colapso da Long-Term Capital Management [fundo de investimentos sediado nos EUA], em 1998, que provou como estava errado o modelo inteiro de crescimento. Mas o incidente não foi visto como tal. Paradoxalmente, a crise levou vários empresários e jornalistas a redescobrirem Karl Marx como alguém que tinha escrito algo interessante sobre uma economia globalizada moderna.
A economia mundial em 1929 era menos global do que é hoje. Isso exerceu algum efeito, é claro. A existência da União Soviética não exerceu efeito concreto sobre a Depressão, mas seu efeito ideológico foi enorme: significava que havia uma alternativa.
Desde os anos 1990, temos assistido à ascensão da China e das economias emergentes, fato que vem realmente exercendo um efeito concreto sobre a depressão atual, na medida em que esses países vêm ajudando a manter a economia mundial muito mais equilibrada do que ela estaria sem eles.

PERGUNTA - E o que dizer das consequências políticas?
HOBSBAWM - A Depressão de 1929 levou a um desvio avassalador para a direita, com a exceção notável da América do Norte, incluindo o México, e da Escandinávia.
O efeito da crise atual não é tão nítido. Podemos imaginar que grandes mudanças políticas devem ocorrer não apenas nos EUA ou no Ocidente, mas quase certamente na China.

PERGUNTA - O sr. antevê que a China continue a resistir ao declínio?
HOBSBAWM - Não há nenhuma razão em especial para prever que a China pare de crescer de uma hora para outra. A depressão causou um choque grave ao governo chinês, na medida em que paralisou muitas indústrias, temporariamente. Mas o país ainda se encontra nos estágios iniciais do desenvolvimento econômico, e há espaço enorme para expansão.
É claro que o país ainda enfrenta grandes problemas; sempre há pessoas que se perguntam se a China vai conseguir continuar unida. Mas acho que as razões reais e ideológicas para que as pessoas desejem que a China se mantenha unida continuam muito fortes.

PERGUNTA - Que avaliação o sr. faz da administração Obama?
HOBSBAWM - As pessoas ficaram tão satisfeitas com a eleição de um homem como ele, especialmente em um momento de crise, que pensaram que certamente seria um grande reformador, que faria o que Roosevelt [1933-45, responsável pelo New Deal, série de programas econômicos e sociais contra a Grande Depressão] fez.
Mas Obama não o fez. Ele começou mal. Se compararmos os primeiros cem dias de Roosevelt aos primeiros cem dias de Obama, o que salta à vista é a disposição de Roosevelt em aceitar assessores não oficiais, em experimentar algo novo, comparada à insistência de Obama em se conservar no centro. Acho que ele desperdiçou sua chance.

PERGUNTA - A solução de dois Estados, conforme visualizada no momento, é uma perspectiva digna de crédito para a Palestina?
HOBSBAWM - Pessoalmente, duvido que ela exista no momento. Seja qual for a solução possível, nada vai acontecer enquanto os americanos não decidirem mudar totalmente de posição e aplicar pressão sobre Israel.

PERGUNTA - Existem lugares do mundo nos quais o sr. acha que projetos positivos e progressistas ainda estejam vivos ou tenham chances de ser reativados?
HOBSBAWM - Na América Latina, com certeza, a política e o discurso público geral ainda são conduzidos nos velhos termos do iluminismo -liberais, socialistas, comunistas.
Esses são os lugares onde se encontram militaristas que falam como socialistas -que "são" socialistas. Encontram-se fenômenos como [o presidente] Lula, baseado em um movimento da classe trabalhadora, e [o presidente boliviano Evo] Morales.
Para onde isso vai levar é outra questão, mas a velha linguagem ainda pode ser falada, e os velhos modos políticos ainda estão disponíveis.
Não estou inteiramente certo quanto à América Central, embora existam indícios de um ligeiro "revival" da tradição da revolução no próprio México -não que isso vá muito longe, na medida em que o México já foi virtualmente integrado à economia americana.
É possível que projetos progressistas possam renascer na Índia, devido à força institucional da tradição secular de Nehru [que se tornou premiê após a independência do país, em 1947]. Mas isso não parece penetrar muito entre as massas.
Além disso, o legado dos velhos movimentos trabalhistas, socialistas e comunistas na Europa continua bastante forte.
Desconfio que, em algum momento, a herança do comunismo, por exemplo nos Bálcãs ou até mesmo em parte da Rússia, possa se manifestar de maneiras que não podemos prever. O que vai acontecer na China eu não sei. Mas não há dúvida de que eles [os chineses] estão pensando em termos diferentes, não em termos maoístas ou marxistas modificados.

PERGUNTA - O sr. sempre foi crítico do nacionalismo como força política. Também se manifestou contra violações de soberania nacional cometidas em nome de intervenções humanitárias. Após a falência do internacionalismo nascido do movimento trabalhista, que tipos são desejáveis hoje?
HOBSBAWM - Em primeiro lugar, o humanitarismo, o imperialismo dos direitos humanos, não tem muito a ver com internacionalismo. É indicativo ou de um imperialismo renascido, que encontra nele uma desculpa adequada para cometer violações de soberania de Estados -podem ser desculpas absolutamente sinceras-, ou então, o que é mais perigoso, é uma reafirmação da crença na superioridade permanente da região que dominou o planeta do século 16 até o final do século 20.
O internacionalismo, que é a alternativa ao nacionalismo, é uma coisa espinhosa. Ou é um slogan politicamente vazio, como foi, concretamente falando, no movimento trabalhista internacional -não queria dizer nada específico-, ou é uma maneira de assegurar uniformidade para organizações centralizadas e poderosas como a Igreja Católica ou a Internacional Comunista.
O internacionalismo significava que, como católico, você acreditava nos mesmos dogmas e participava das mesmas práticas, não importa quem você fosse ou onde vivesse. O mesmo acontecia, teoricamente, com os partidos comunistas. Não é realmente isso o que queríamos dizer com "internacionalismo".
O Estado-nação foi e continua a ser o quadro em que são tomadas todas as decisões políticas, domésticas e externas. É possível que o islã missionário e fundamentalista constitua uma exceção a essa regra, abarcando Estados, mas isso ainda não foi demonstrado concretamente.

PERGUNTA - Há obstáculos inerentes a qualquer tentativa de extrapolar as fronteiras do Estado-nação?
HOBSBAWM - Economicamente e na maioria dos outros aspectos -inclusive culturalmente, até certo ponto-, a revolução das comunicações criou um mundo genuinamente internacional, no qual há poderes de decisão que se transnacionalizam, atividades que são transnacionais e, é claro, movimentos de ideias, comunicações e pessoas que são mais facilmente transnacionais do que antes.
Na política, contudo, não se vê nenhum sinal de que isso esteja acontecendo, e é essa a contradição básica no momento. Uma das razões pelas quais não vem acontecendo é que, no século 20, a política foi democratizada em grau muito grande -a massa da população comum se envolveu nela. Para essa massa, o Estado é essencial para suas operações cotidianas normais e para suas possibilidades de vida.
Tentativas de fragmentar o Estado internamente, pela descentralização, foram empreendidas, em sua maioria nos últimos 30 ou 40 anos, e algumas delas não deixaram de ter algum sucesso -na Alemanha, com certeza, a descentralização vem tendo alguma medida de sucesso e, na Itália, a regionalização vem sendo benéfica.
Mas as tentativas de criar Estados supranacionais não têm funcionado. A União Europeia é o exemplo mais óbvio disso.
Ela foi prejudicada, até certo ponto, pelo fato de seus fundadores terem pensado precisamente em termos de um Superestado análogo a um Estado nacional, apenas maior -sendo que essa não era uma possibilidade, creio, e hoje com certeza não é.

PERGUNTA - O nacionalismo foi uma das grandes forças motrizes da política no século 19 e em boa parte do século 20. Que o sr. diz da situação atual?
HOBSBAWM - Não há dúvida alguma de que o nacionalismo foi, em grande medida, parte do processo de formação dos Estados modernos, que exigiu uma forma de legitimação diferente da do Estado tradicional teocrático ou dinástico. A ideia original do nacionalismo era a criação de Estados maiores, e me parece que essa função unificadora e de expansão foi muito importante.
Um exemplo típico foi o da Revolução Francesa, na qual, em 1790, pessoas apareceram dizendo: "Não somos mais delfineses ou sulistas -somos todos franceses".
Em uma etapa posterior, dos anos 1870 em diante, vemos movimentos de grupos no interior desses Estados impulsionando a criação de seus Estados independentes.
Era reconhecido, mesmo que não pelos próprios nacionalistas, que nenhum desses novos Estados-nações era, de fato, étnica ou linguisticamente homogêneo.
Mas, depois da Segunda Guerra [1939-45], os pontos fracos das situações existentes foram enfrentados, não apenas pelos vermelhos, mas por todos, pela criação proposital e forçada da homogeneidade étnica. Isso provocou uma quantidade enorme de sofrimento e crueldade e, no longo prazo, também não funcionou.
Não posso deixar de pensar que a função dos Estados separatistas pequenos, que se multiplicaram tremendamente desde 1945, mudou. Para começo de conversa, eles são reconhecidos como existentes.
Antes da Segunda Guerra, os Miniestados -como Andorra, Luxemburgo e todos os outros- nem sequer eram vistos como parte do sistema internacional, exceto pelos colecionadores de selos. A ideia de que tudo, até a Cidade do Vaticano, hoje é um Estado, potencialmente membro das Nações Unidas, é nova.
A função histórica de criar uma nação como Estado-nação deixou de ser a base do nacionalismo. Pode-se dizer que não é mais um slogan muito convincente.
Hoje, porém, o fator xenofóbico do nacionalismo é cada vez mais importante. Quanto mais a política foi democratizada, maior foi o potencial para isso. Trata-se de algo muito mais cultural que político -basta pensar na ascensão do nacionalismo inglês ou escocês nos últimos anos-, mas nem por isso menos perigoso.

PERGUNTA - O fascismo não incluía essas formas de xenofobia?
HOBSBAWM - O fascismo ainda foi, até certo ponto, parte da investida para criar nações maiores. Não há dúvida de que o fascismo italiano foi um grande passo à frente na conversão de calabreses e úmbrios em italianos; mesmo na Alemanha, foi apenas em 1934 que os alemães puderam ser definidos como alemães, e não alemães pelo fato de serem suábios, francos ou saxões.
É verdade que os fascismos alemão e europeu central e oriental foram acirradamente contrários a outsiders -judeus, em grande medida, mas não apenas eles.
E, é claro, o fascismo forneceu uma garantia menor contra os instintos xenofóbicos.

PERGUNTA - As dinâmicas separatistas e xenofóbicas do nacionalismo atuam hoje nas margens da política mundial?
HOBSBAWM - Sim, embora existam regiões em que o nacionalismo causou danos enormes, como no sudeste da Europa.
Ainda é verdade, é evidente, que o nacionalismo -ou o patriotismo, ou a identificação com um povo específico, que não precisa necessariamente ser definido por critérios étnicos- seja um enorme fator de legitimação dos governos.
Isso é claramente o caso na China. Um dos problemas da Índia, hoje, é que não existe nada exatamente assim por lá.

PERGUNTA - Como o sr. prevê a dinâmica social da imigração contemporânea hoje? Haverá a emergência gradual de outro caldeirão cultural na Europa, não dessemelhante ao americano?
HOBSBAWM - Mas o caldeirão cultural nos EUA deixou de sê-lo desde os anos 1960. Ademais, no final do século 20, a migração já era algo realmente muito diferente das migrações de períodos anteriores, em grande medida porque, ao emigrar, as pessoas já não rompem os vínculos com o passado no mesmo grau em que o faziam antes.
É possível continuar a ser guatemalteco mesmo vivendo nos EUA. Também há situações como as da UE, nas quais, concretamente, a imigração não gera a possibilidade de assimilação. Um polonês que vem para o Reino Unido não é visto como nada além de um polonês que vem trabalhar no país.
Isso é claramente novo e muito diferente da experiência de pessoas da minha geração, por exemplo -a geração dos emigrados políticos, não que eu tenha sido um-, na qual nossa família era britânica, porém culturalmente nunca deixávamos de ser austríacos ou alemães; mas, apesar disso, acreditávamos realmente que deveríamos ser ingleses.
Acredito realmente que é essencial conservar as regras básicas da assimilação -que os cidadãos de um país particular devem comportar-se de determinada maneira e gozar de determinados direitos, que esses comportamentos e direitos devem defini-los e que isso não deve ser enfraquecido por argumentos multiculturais.
A França integrou, apesar de tudo, mais ou menos tantos de seus imigrantes estrangeiros quanto os EUA, relativamente falando, e, mesmo assim, o relacionamento entre os locais e os ex-imigrantes é quase certamente melhor lá. Isso acontece porque os valores da República Francesa continuam a ser essencialmente igualitários e não fazem nenhuma concessão pública real.
Seja o que for que você faça no âmbito pessoal -era também esse o caso nos EUA no século 19-, publicamente esse é um país que fala francês. A dificuldade real não será tanto com os imigrantes quanto com os locais. É em lugares como Itália e Escandinávia, que não tinham tradições xenofóbicas prévias, que a nova imigração vem criando problemas sérios.

PERGUNTA - Hoje é amplamente disseminada a ideia de que a religião tenha retornado como força imensamente poderosa. O sr. vê isso como um fenômeno fundamental ou mais passageiro?
HOBSBAWM - Está claro que a religião -entendida como a ritualização da vida, a crença em espíritos ou entidades não materiais que influenciariam a vida e, o que não é menos importante, como um elo comum entre comunidades- está tão amplamente presente ao longo da história que seria um equívoco enxergá-la como fenômeno superficial ou que esteja destinado a desaparecer, pelo menos entre os pobres e fracos, que provavelmente sentem mais necessidade de seu consolo e também de suas potenciais explicações do porquê de as coisas serem como são.
Existem sistemas de governo, como o chinês, que não possuem concretamente qualquer coisa que corresponda ao que nós consideraríamos ser religião. Eles demonstram que isso é possível, mas acho que um dos erros do movimento socialista e comunista tradicional foi optar pela extirpação violenta da religião em épocas em que poderia ter sido melhor não o fazer.
É verdade que a religião deixou de ser a linguagem universal do discurso público; e, nessa medida, a secularização vem sendo um fenômeno global, embora apenas em algumas partes do mundo ela tenha enfraquecido gravemente a religião organizada.
Para as pessoas que continuam a ser religiosas, o fato de hoje existirem duas linguagens do discurso religioso gera uma espécie de esquizofrenia, algo que pode ser visto com bastante frequência entre, por exemplo, os judeus fundamentalistas na Cisjordânia -eles acreditam em algo que é evidentemente tolice, mas trabalham como especialistas nisso.
O declínio das ideologias do iluminismo deixou um espaço político muito maior para a política religiosa e as versões religiosas de nacionalismo. Mas muitas religiões estão claramente em declínio.
O catolicismo está lutando arduamente, mesmo na América Latina, contra a ascensão de seitas evangélicas protestantes, e tenho certeza de que está se mantendo na África apenas graças a concessões aos hábitos e costumes sociais que eu duvido que tivessem sido feitas no século 19.
As seitas evangélicas protestantes estão em ascensão, mas não está claro até que ponto são mais que uma minoria entre os setores sociais com mobilidade ascendente, como era o caso antigamente com os não conformistas na Inglaterra.
A única exceção é o islã, que vem continuando a se expandir sem nenhuma atividade missionária efetiva nos últimos dois séculos.
Parece-me que o islã possui grandes trunfos que favorecem sua expansão contínua -em grande medida, porque confere às pessoas pobres o sentimento de que valem tanto quanto todas as outras e que todos os muçulmanos são iguais.

PERGUNTA - Não se poderia dizer o mesmo do cristianismo?
HOBSBAWM - Mas um cristão não crê que vale tanto quanto qualquer outro cristão. Duvido que os cristãos negros acreditem que valham tanto quanto os colonizadores cristãos, enquanto alguns muçulmanos negros acreditam nisso, sim. A estrutura do islã é mais igualitária, e o elemento militante é mais forte no islã.
Recordo-me de ter lido que os mercadores de escravos no Brasil deixaram de importar escravos muçulmanos porque eles insistiam em rebelar-se sempre. Esse apelo encerra perigos consideráveis -em certa medida, o islã deixa os pobres menos receptivos a outros apelos por igualdade.
Os progressistas no mundo muçulmano sabiam desde o início que não haveria maneira de afastar as massas do islã; mesmo na Turquia, tiveram que encontrar alguma forma de convivência -aliás, esse foi provavelmente o único lugar onde isso foi feito com êxito.

PERGUNTA - A ciência foi uma parte central da cultura da esquerda antes da Segunda Guerra. O sr. acha que o destaque crescente das questões ambientais deverá reaproximar a ciência da política radical?
HOBSBAWM - Tenho certeza de que os movimentos radicais vão se interessar pela ciência. O ambiente e outras preocupações geram razões fundamentadas para combater a fuga da ciência e da abordagem racional aos problemas, fuga que se tornou bastante ampla a partir dos anos 1970 e 80. Mas, com relação aos próprios cientistas, não creio que isso vá acontecer.
Diferentemente dos cientistas sociais, não há nada que leve os cientistas naturais a se aproximarem da política. Historicamente falando, eles, na maioria dos casos, têm sido apolíticos ou seguiram a política padrão de sua classe.

PERGUNTA - Em "Tempos Interessantes" [publicado em 2002], o sr. expressou reservas ao que eram, na época, modismos históricos recentes. O sr. acha que o cenário historiográfico continua relativamente inalterado?
HOBSBAWM - Minha geração de historiadores, que de modo geral transformou o ensino da história, além de muitas outras coisas, procurou essencialmente estabelecer um vínculo permanente, uma fertilização mútua, entre a história e as ciências sociais; era um esforço que datava dos anos 1890.
A disciplina econômica seguiu uma trajetória diferente. Dávamos como certo que estávamos falando de algo real: de realidades objetivas, embora, desde Marx e a sociologia do conhecimento, soubéssemos que as pessoas não registram a verdade simplesmente como ela é.
Mas o que era realmente interessante eram as transformações sociais. A Grande Depressão foi instrumental nesse aspecto, porque reapresentou o papel exercido por grandes crises nas transformações históricas -a crise do século 14, a transição ao capitalismo.
Éramos um grupo que procurava resolver problemas, que se preocupava com as grandes questões. Havia outras coisas cuja importância diminuíamos: éramos tão contrários à história tradicionalista, à história dos governantes e figuras importantes, ou mesmo à história das ideias, que rejeitávamos isso tudo.
Em algum momento da década de 1970, ocorreu uma mudança acentuada. Em 1979-80 a [revista de história] "Past & Present" publicou uma troca de ideias entre Lawrence Stone e mim sobre o "revival da narrativa" -"o que está acontecendo com as grandes perguntas "por quê'?".
Os historiadores oriundos de 1968 não se interessavam mais pelas grandes perguntas -pensavam que todas já tinham sido respondidas. Estavam muito mais interessados nos aspectos voluntários ou pessoais. O [periódico] "History Workshop" foi um desenvolvimento tardio desse tipo.
Por outro lado, houve alguns avanços positivos. O mais positivo destes foi a história cultural, que todos nós, inegavelmente, tínhamos deixado de lado. Não prestamos atenção suficiente à história do modo como ela de fato se apresenta a seus atores.

PERGUNTA - Se o sr. tivesse que escolher tópicos ou campos ainda inexplorados e que representam desafios importantes para historiadores futuros, quais seriam?
HOBSBAWM - O grande problema é um problema muito geral. Segundo padrões paleontológicos, a espécie humana transformou sua existência com velocidade espantosa, mas o ritmo das transformações tem variado tremendamente.
Os marxistas focaram, com razão, as transformações no modo de produção e em suas relações sociais como sendo geradoras de transformações históricas.
Contudo, se pensarmos em termos de como "os homens fazem sua própria história", a grande questão é a seguinte: historicamente, comunidades e sistemas sociais buscaram a estabilização e a reprodução, criando mecanismos para prevenir-se contra saltos perturbadores no desconhecido. Como, então, humanos e sociedades estruturados para resistir a transformações dinâmicas se adaptam a um modo de produção cuja essência é o desenvolvimento dinâmico interminável e imprevisível?
Os historiadores marxistas poderiam beneficiar-se da pesquisa das operações dessa contradição fundamental entre os mecanismos que promovem transformações e aqueles que são voltados a opor resistência a elas.


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Esta entrevista foi publicada originalmente na edição de janeiro/fevereiro da revista britânica "New Left Review".
Tradução de Clara Allain.

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Texto nosso publicado no segundo número da Revista Anistia do Ministério da Justiça - Leiam e divulguem!

Prezados Colegas,

Apenas para informar a todos que a segunda edição da Revista Anistia Política e
Justiça de Transição já encontra-se disponível no site da Comissão de Anistia na
internet, podendo ainda ser acessada diretamente no link abaixo:

http://portal.mj.gov.br/anistia/data/Pages/MJD59503A9ITEMID46B25A9C93394F1B9C87BCEF71C19589PTBRIE conta com artigo de autoria de Alexandre Garrido UFU e de José Ribas Vieira, acesse esse endereço eletrônico e leia o texto de nossa autoria

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Pensamento latino-americano

http://www.iphi.org.br/sites/filosofia_brasil/

A ordem internacional hoje

Folha de São Paulo, segunda-feira, 12 de abril de 2010




ENTREVISTA DA 2ª - ZBIGNIEW BRZEZINSKI

"Não tenho ilusão sobre fim rápido da bomba atômica"
Estrategista veterano da política externa dos EUA diz que negociação com Irã deve ser mais ampla

GRANDE estrategista da política externa americana no século 20, Zbigniew Brzezinski defende negociações amplas sobre o programa nuclear do Irã, em que o país receba garantias de que não será atacado ao abrir mão da bomba. Ele afirma que os EUA devem tomar a frente de um plano para a criação do Estado palestino, porque o conflito ameaça a segurança americana, e demonstra ceticismo sobre a meta, expressa pelo presidente Barack Obama, de pôr fim aos arsenais atômicos. Brzezinski diz que os EUA não pretendem abdicar de sua hegemonia: "Se a atual proeminência da América entrasse em declínio rápido, todo o mundo seria lançado no caos político e econômico".

CLAUDIA ANTUNES
DA SUCURSAL DO RIO

Como assessor de Segurança Nacional do presidente democrata Jimmy Carter (1977-1981), Zbigniew Brzezinski contabilizou uma vitória importante e um grande revés no Oriente Médio: o acordo de paz Israel-Egito, o primeiro entre o Estado judeu e um vizinho árabe, em 1978; e a Revolução Islâmica de 1979 no Irã, com a tomada de reféns na Embaixada dos EUA, que teve peso decisivo para a vitória do republicano Ronald Reagan na eleição presidencial de 1980.
A região e os dois países, Israel e Irã, continuam nos cálculos de Brzezinski, que em março esteve na Casa Branca, com outros antigos assessores presidenciais, para tratar do assunto com o atual conselheiro de Segurança Nacional, general James Jones, e Barack Obama. A urgência de um acordo de paz na Palestina e o programa nuclear iraniano foram os principais temas desta entrevista à Folha de um Brzezinski de voz firme, aos 82 anos.




FOLHA - O sr. é um dos veteranos da política externa americana que propuseram que Obama apresente um plano pronto para a solução de dois Estados do conflito israelense-palestino. Acredita que ele fará isso?
ZBIGNIEW BRZEZINSKI - Eu não sei.

FOLHA - Por que defende essa abordagem?
BRZEZINSKI - Porque acho que um arranjo de paz no Oriente Médio é de interesse de todas as partes envolvidas. Os EUA estão cada vez mais ameaçados pelo radicalismo e o extremismo na região, e parte disso é provocada pelo conflito contínuo entre Israel e os palestinos. Israel precisa de paz para se tornar uma parte aceita do Oriente Médio, no qual viva em segurança e prospere e possa até mesmo se tornar a Cingapura da região. E os palestinos têm direito à dignidade política, à independência política e a um território nacional.

FOLHA - E os dois lados, sozinhos, não poderiam alcançar um acordo?
BRZEZINSKI - Isso é absolutamente certo. A questão é que esse conflito agora se prolonga por várias décadas, e todo esforço de paz baseado apenas na negociação entre os dois lados fracassou.

FOLHA - Faz sentido negociar sem incluir o Hamas?
BRZEZINSKI - De uma forma ou de outra, os elementos extremistas dos dois lados terão de ser envolvidos, e, se a acomodação proposta responder aos interesses básicos tanto de Israel quanto do público árabe, os extremistas acabarão isolados politicamente.

FOLHA - Acredita na chance de o Hamas aderir a um acordo?
BRZEZINSKI - Se o acordo parecer justo e atraente para uma porção significativa dos palestinos, e se ele trouxer benefícios tangíveis, acredito que o Hamas pode muito bem evoluir. Mas é algo que nunca saberemos se acontecerá se não tentarmos fazer acontecer.

FOLHA - Houve esse choque recente entre Obama e o premiê Netanyahu após o anúncio de construções em Jerusalém Oriental. Não está claro, no entanto, se Israel vai suspender as construções. Qual deve ser o próximo passo dos EUA?
BRZEZINSKI - Em geral, eu apoio a posição que Obama adotou até agora, e veremos como Israel responde às propostas americanas mais recentes.

FOLHA - O balanço de forças dentro dos EUA favorece que haja mais pressão sobre Israel?
BRZEZINSKI - Eu acho que o povo americano em geral é a favor de uma solução pacífica, mas apoiar uma solução pacífica não é a mesma coisa que pressionar Israel. Uma solução requer compromissos tanto de Israel quanto dos palestinos. O problema é que nenhum dos dois lados parece disposto a dar o primeiro passo. A equipe de Obama está penosamente consciente desse fato.

FOLHA - As últimas iniciativas de Obama na questão nuclear contêm uma mensagem para o Irã suspender seu programa atômico. Ele será bem-sucedido?
BRZEZINSKI - Não tenho certeza de que estamos pedindo ao Irã que suspenda seu programa nuclear [o país tem o direito a tê-lo, como signatário do Tratado de Não Proliferação]. Acho que pedimos ao Irã provas convincentes e que concorde com acordos com credibilidade para dar à comunidade internacional a confiança de que seu programa não está destinado à produção de armas atômicas.

FOLHA - O sr. já disse que o programa nuclear do Irã deveria ser negociado num quadro em que os iranianos receberiam garantias de segurança. Obama não encampou essa iniciativa. Sustenta essa proposta?
BRZEZINSKI - Eu apoio a inclinação de Obama de negociar com o Irã, mas eu era a favor no passado e sou ainda hoje de negociações de maior amplitude, nas quais várias grandes questões, incluindo a segurança regional e as relações econômicas, sejam tratadas simultaneamente às discussões específicas sobre a questão nuclear.

FOLHA - O que está impedindo o governo Obama de fazer isso?
BRZEZINSKI - Em parte, a falta de uma resposta palpável do Irã.

FOLHA - Existem outros fatores? BRZEZINSKI - Pode haver alguma hesitação em ampliar de modo prematuro a pauta de negociações, mas minha opinião sobre isso é diferente da do governo.

FOLHA - O Itamaraty tem insistido em que há espaço para um pacto no qual o Irã entregaria parte de seu estoque de urânio pouco enriquecido em troca de combustível para seu reator de uso médico. A Turquia seria intermediária dessa troca. A posição brasileira é ingênua?
BRZEZINSKI - Eu não conheço a posição brasileira precisamente. Mas do que eu já ouvi sobre ela, e, pela sua descrição, me parece que representa um ponto de vista que deveria ser levado em consideração.

FOLHA - Brasil e Turquia, com cadeiras não permanentes no Conselho de Segurança, dizem que gostariam de ver mais negociações antes de novas sanções ao Irã. Se aprovadas, as sanções darão resultado?
BRZEZINSKI - Não tenho como saber que tipo de sanções será aprovado. Haverá negociações, e certamente haverá diferentes posições sobre a questão. Também sabemos que sanções demoram bastante tempo para ter efeito, e que é melhor que sejam acompanhadas por negociações sérias.

FOLHA - Alguns analistas nos EUA dizem que é inevitável que o Irã obtenha arma atômica e que será preciso conviver com isso. Concorda?
BRZEZINSKI - Eu espero que isso não aconteça, porque acho que seria desafortunado, e poderia criar tensões muito sérias nas relações internacionais. Ao mesmo tempo, tenho confiança em que poderemos conter qualquer nova potência nuclear, assim como contivemos por muitos anos potências perigosas e poderosas como a União Soviética stalinista e a China de Mao Tsé-tung. [ele se refere ao conceito de contenção, da Guerra Fria, em que o poderio bélico é usado não em conflitos, mas para dissuadir o oponente de atacar].

FOLHA- Como o senhor avalia a nova estratégia nuclear de Obama? É otimista em relação ao objetivo de pôr fim aos arsenais atômicos?
BRZEZINSKI - Eu acredito que as iniciativas adotadas recentemente são uma contribuição positiva para um mundo que se torne cada vez menos dependente, por um período prolongado, de armas nucleares. Mas não tenho nenhuma ilusão de que o movimento nessa direção será rápido e não tenho meios de prever quando as armas atômicas desaparecerão de todo, se é que isso acontecerá, e de qualquer forma com certeza não será em pouco tempo.

FOLHA - China e EUA são interdependentes na economia. Mas setores nos EUA demonstram preocupação de que a China ameace o domínio militar americano no Pacífico. O sr. teme o desafio militar chinês?
BRZEZINSKI - Não há dúvida de que a relação entre os EUA e a China tem importância enorme, talvez central, para os dois países. E eu sei que a China, em longo prazo, está destinada a ter uma corporação militar cada vez mais poderosa. No entanto, acho que, neste estágio, análises alarmistas não são acuradas nem propiciam a manutenção de uma relação bilateral estável e responsavelmente cooperativa.

FOLHA- O século 20 foi o século americano. O sr. acredita que os EUA terão a capacidade de manter seu papel proeminente nas questões internacionais no futuro próximo?
BRZEZINSKI - No futuro próximo, com certeza. Os EUA não estão se preparando para abdicar. Mas o futuro próximo são no máximo 20 anos. O que virá depois é impossível prever com confiança. Mas uma coisa é clara para mim: se a atual proeminência da América entrasse em declínio rápido, todo o mundo seria lançado no caos político e econômico.

domingo, 11 de abril de 2010

Constitucionalismo latino-americano

Deutsche Welle, 09.04.2010 enviado pelo Prof Farlei Martins Ucam


Só descolonização da subjetividade trará mudança à América Latina, diz Walter
Mignolo

Para o pesquisador argentino, a criação de Estados nacionais após os movimentos de
independência apenas abalou a ordem mundial moderna/colonial, mas só a
descolonização do ser e do saber levará a uma mudança.
Deutsche Welle: Os movimentos de independência na América Latina completam 200
anos. Mas até que ponto é historicamente correto falar em independência? Seria
possível unificar os movimentos de independência na América Latina em uma única
corrente ou foram eles causados por fen??menos históricos distintos?
Walter Mignolo: Seria equivocado limitar a análise dos "movimentos de
independência" apenas à América Latina. Pois a "América Latina" não existia no
momento em que ocorreu a assim chamada independência. O que houve foi o
desmembramento dos vice-reinados espanhóis nas Índias Ocidentais sob o ponto de
vista dos espanhóis e da população crioula que buscava a independência da Espanha.
Acho que é hora de deixar para trás o imaginário nacional e ver o que aconteceu
como o primeiro abalo da ordem mundial moderna/colonial, quando anglo-crioulos
formaram os Estados Unidos na América do Norte, afro-crioulos fundaram a República
do Haiti e crioulos hispânicos fundaram diversas repúblicas de Argentina e Chile a
Estados Unidos do México.
Como você avalia o caso do Brasil, único dos países latino-americanos a permanecer
uma monarquia após a independência?
O Brasil não é necessariamente uma anomalia, mas uma consequência de conflitos
imperiais, de diferenças internas entre impérios europeus. No final do século 18,
Inglaterra, Alemanha e França assumiram a liderança global, enquanto Portugal e
Espanha perderam poder. Portugal transferiu a administração monárquica para o
Brasil a fim de escapar dos avanços da França imperial no sul da Europa, antes de
colonizar a norte da África.
O Brasil é uma anomalia apenas se os Estados Unidos da América do Norte, o Haiti e
as formações republicanas da América espanhola forem tomadas como modelo. Mas não
se observarmos a totalidade da formação atlântica desde o século 16, incluindo
tanto a formação das col??nias quanto os conflitos entre as nações imperiais –
Espanha, Portugal, Inglaterra e França.
Alemanha e Itália não são países atlânticos e sua expansão colonial é mínima em
relação a eles. Curiosamente, Alemanha e Itália – países sem forte dominação
colonial – e Espanha – país imperial que perdeu seu último domínio em 1898 – foram
os três países que engendraram Hitler, Mussolini e Franco.
Historicamente, é correto dizer que os movimentos de independência na América
Latina foram consequência da Revolução Francesa, da Revolução Gloriosa e da
independência dos Estados Unidos?
Pode ser. Mas não acho isso relevante, a menos que ainda estejamos presos na
análise moderna, que procura quem influenciou quem, em vez de observar as
turbulências do sistema mundial moderno/colonial. Tais revoluções devem ser vistas
como parte de um abalo que alterou a formação do mundo atlântico.
A Revolução Inglesa de 1647-1649 e a Revolução Gloriosa nem poderiam ter acontecido
sem os alcances extraordinários que a Inglaterra obteve do tráfico negreiro e das
plantações no Caribe. Daí se deu a formação de uma burguesia comercial e financeira
em Londres, Liverpool e Manchester.
Agora, é preciso fazer uma distinção fundamental entre as revoluções modernas na
Europa e as revoluções modernas/coloniais nas col??nias. Antes de uma questão de
influência, precisamos entender o campo sistêmico de forças. A diferença básica é
que a revolução britânica e a francesa colocaram a burguesia no poder em
substituição à monarquia.
Nas Américas, as revoluções não engendraram uma burguesia, mas uma elite colonial
que assumiu o controle da economia, da autoridade, do conhecimento, do sexo e da
sexualidade, dando continuidade à política imperial com relação aos
afro-descendentes e à população indígena.
Enquanto, na Europa, a burguesia subiu ao poder, nas col??nias, a elite colonial era
basicamente uma elite de proprietários de terras e minas dependente dos efeitos
crescentes da Revolução Industrial. Trata-se de uma elite ao serviço da burguesia
européia, que fornecia recursos naturais para a Revolução Industrial.
O que definiu o desenvolvimento completamente diferente tomado pelos Estados
Unidos após sua independência do destino dos países latino-americanos?
Os EUA, ao contrário dos vice-reinados hispano-americanos e da monarquia brasileira
que ocupa quase todo o século 19, eram col??nias da Inglaterra, país que estava
assumindo a liderança imperial. Nas col??nias inglesas que comporão os EUA, surgiu
não só uma forte elite comercial mas também política, o que não foi o caso nas
col??nias inglesas no Caribe insular, por exemplo.
Os EUA se formaram sobre a base da elite política dos dissidentes crioulos,
preconizados pelos founding fathers. Em contrapartida, as demais col??nias inglesas
eram controladas por plantation owners com interesses estritamente econ??micos, e não
políticos.
Já as independências nas col??nias ibéricas (mais cedo na América hispânica
continental e mais tardias no Brasil e na América hispânica caribenha, como em
Cuba, Porto Rico e República Dominicana) são independências de países imperiais
que, ao final do século 18, haviam perdido a segunda era moderna.
Como se vê, não se trata de influências de causas e efeitos, mas da complexidade
dos vínculos histórico-estruturais na formação do sistema-mundo moderno-colonial
em seus primeiros 300 anos de existência. Lembre-se que, enquanto isso ocorria na
Europa e na América, a Holanda e a Inglaterra começavam já suas incursões na Índia
e logo a França o faria no Sudeste Asiático e na África.
Além disso, nas col??nias inglesas no chamado Novo Mundo, conquistadores chegaram ao
sul e ao Caribe, e peregrinos ao norte. Estes últimos não buscavam conquistas, mas
liberdade, eram dissidentes da monarquia inglesa que, até a metade do século 17,
não se diferenciava muito da castelhana.
Os peregrinos trouxeram consigo a energia política que os levara a deixar a
Inglaterra e os fará construir politicamente o Novo Mundo. Dessa linha provém a
formação dos EUA. Na América Ibérica, nada disso aconteceu. Nenhum contingente da
coroa castelhana emigrou da península e se refugiou na América.
Até que ponto a América Latina é realmente "latina"? O nome "América Latina" está
condenado a desaparecer?
Se observar bem, cada vez menos se usa América Latina, dando preferência a América
do Sul. Como expliquei em meu livro La idea de América Latina, a latinidade diz
respeito apenas à população "branca" de ascendência europeia. Não vejo por que a
população de ascendência africana teria que aceitar sua latinidade, em vez de sua
africanidade. Da mesma forma, poderíamos falar em América Africana em vez de
Latina. E de América Indígena, em vez de Africana ou Latina.
A latinidade foi um projeto imperial francês, quando o país, a partir do século 19,
tentou recuperar a liderança dos países latinos do sul da Europa (Itália,
Portugal, Espanha), a fim de enfrentar a liga anglo-sax??nica da Inglaterra e da
Alemanha. Esta divisão da Europa entre a Europa do Norte e do Sul, a anglo-sax??nica
e a latina, a protestante e a católica, se reproduz nas Américas: a América de
Jefferson e a de Bolívar.
Pois esta história está chegando ao fim, o termo América Latina "incomoda" muita
gente. Não só aqueles cujas memórias não são greco-romanas, e sim africanas ou
indígenas, mas também os de ascendência europeia que consideram um atropelo impor a
"latinidade" como um marco subcontinental. Tudo está mudando hoje, principalmente
no Caribe insular (francês, inglês, holandês e espanhol) e continental. Aí a
latinidade se reduz a um mínimo sustentável.
Além disso, é preciso perguntar quão "anglos" são os EUA, com 45 milhões de
"latinos". Enquanto, na América do Sul e no Caribe, a latinidade se confunde com um
termo hegem??nico, nos EUA ela se converte em um desafio para a hegemonia da
"anglicidade".
E por que os Estados Unidos reivindicam para si o nome América?
Durante o século 16 e todo o 17, a demografia das Américas era composta de
habitantes nativos, europeus principalmente ibéricos e africanos escravizados.
Durante quase todo o século 16, não se encontrava um inglês nem por casualidade.
Walter Raleigh fundou uma col??nia em Ronaoke em 1584, onde hoje é a Carolina do
Norte. Os peregrinos chegaram à costa do que seria a Nova Inglaterra no começo do
século 17.
Eles escaparam do absolutismo da coroa inglesa e, se não eram revolucionários,
atuavam em dissensão. Isso não houve nem na Espanha nem em Portugal. Na
Inglaterra, a situação política no século 17 foi acompanhada pelo crescimento
econ??mico das plantações, principalmente no Caribe. Foi aí que a linha da teoria
política de Maquiavel a Locke se afirmou na propriedade privada como critério
fundamental do indivíduo soberano.
É isso que legitima Locke com relação à Revolução Gloriosa: seu tratado de governo
reafirma os direitos da nascente burguesia, da soberania individual em relação à
propriedade privada. Nada disso existiu na Península Ibérica, nem nas col??nias
luso-hispânicas.
Quem explicou o que quero dizer com clareza e erudição foi o venezuelano Enzo del
Bufalo, num livro intitulado Americanismos y democracia (2002). Sua tese é de que
o sujeito moderno, que já anunciava Cervantes na literatura e Descartes na
filosofia, se concretizou politicamente na revolução colonial que gerou os Estados
Unidos. Del Bufalo acerta ao distinguir entre americanismo e EUA. O americanismo é
um projeto político que levou à formação do sujeito moderno e soberano,
fundamentado na propriedade privada e que surge precisamente na América.
Esse projeto culminou com a formação do primeiro Estado moderno, os Estados Unidos
da América do Norte (antes mesmo da Revolução Francesa). A historiografia europeia
contou a história relegando a revolução americana a segundo plano. O sonho
americano não são os Estados Unidos, mas o americanismo que os precede e funda. E
esse mesmo Estado pode trair o sonho americano, como aconteceu no governo do
segundo Bush. Uma das tarefas de Obama é precisamente restaurar esse americanismo.
Como disse Del Bufalo: "Os Estados Unidos da América são como a prática da América,
que não é exatamente igual à América como projeto. Por sua vez, a América como
utopia pode ser assumida por outros Estados sem nunca realmente se converter em uma
prática, como ocorreu com os Estados latino-americanos".
O fim da Guerra Fria altera o significado e a predominância ideológica e econ??mica
dos Estados Unidos na América Latina (e no mundo)?
Sim, muda muitas coisas, que eu resumiria em dois aspectos. Em primeiro lugar, a
euforia e o senso de vitória da Europa Ocidental e dos EUA criaram as condições
para os dois pilares da administração Bush: a invasão do Iraque e o colapso de Wall
Street. Ou seja, o colapso do controle da autoridade e da economia pelos EUA.
Em consequência disso e do crescimento principalmente da China, mas também de
outros países produtores de petróleo (Irã, Venezuela, Rússia), entramos em uma
ordem policêntrica interconectada por um tipo de economia, a capitalista.
Quatro trajetórias dominarão o futuro global:
A primeira delas é o fim do ciclo de 500 anos de hegemonia e dominação ocidental,
com a qual a administração Bush conseguiu acabar. A segunda é a deswesternização,
que está sendo articulada no Leste e no Sudeste Asiático e consiste em aceitar a
economia capitalista, mas disputar o controle da autoridade, do conhecimento, dos
direitos humanos, das relações internacionais etc.
A terceira é a reorientação da esquerda, que tem várias caras: a esquerda europeia
clássica, a esquerda europeia dos países do Sul, ligada ao Fórum Social Mundial, e
a esquerda colonial, como é o caso da Bolívia, por exemplo.
E, por último, vem o descolonialismo, que começou durante a Guerra Fria com os
movimentos de libertação nas col??nias inglesas e francesas na África e na Ásia, mas
que tem hoje outra cara, tanto epistêmica quanto política, na América do Sul e no
Caribe.
Evo Morales é a primeira concretização desta tendência, enquanto os zapatistas
foram o primeiro movimento social a aplicar o descolonialismo. Por mais que não
tenham usado o termo, seus dizeres e ações eram descoloniais. Estas quatro
tendências serão analisadas mais detalhadamente no meu próximo livro, The darker
side of Western Modernity.
Como o senhor avalia o surgimento de uma nova esquerda pós-Guerra Fria no
continente? Trata-se de uma ruptura ou é possível observá-la como um
desenvolvimento político contínuo desde as independências?
Depois do fim da Guerra Fria, e talvez até o ano 2000, a esquerda boliviana foi,
sem dúvida, a que mais contribuiu para a reorientação da esquerda moderno-colonial
(que os europeus chamam apenas de esquerda moderna) e que se abriu para a
compreensão histórica e as demandas indígenas propostas pelos escritos de José
Carlos Mariátegui no Peru. Ela é, ao mesmo tempo, continuidade e câmbio com a
esquerda nacionalista.
No entanto, a diferença colonial com projetos indígenas e afros persiste. A
esquerda é um projeto "branco", para quem o fen??meno de classe é fundamental,
enquanto que projetos indígenas e afros partem da raça como categoria fundamental.
Além disso, existe a questão do patriarcado, mais fácil de relacionar com a questão
racial do que com a esquerda que mantém o fen??meno das classes como fundamento.
Creio que, no futuro, os movimentos feministas, junto com projetos indígenas e
afros, ganharão terreno sobre a primazia do marxismo e a Teologia da Libertação, as
duas opções dissidentes que indígenas, afros e mulheres possuíam antes de iniciar
seus próprios projetos.
Pode-se dizer que a estrutura colonial mantida desde a vigência do Colonialismo
provoca a violação dos direitos humanos, a concentração de renda e a marginalização
política de grupos inteiros da sociedade. Será possível superar essa ordem política
e social sem uma nova revolução material?
Não se muda o mundo, mas sim as pessoas que fazem, controlam e desfazem o mundo.
Uma "revolução" material sem a descolonização do conhecimento e da subjetividade
só leva a mudanças de conteúdo, mas não dos termos na organização do mundo. Para
isso, falta uma perspectiva que não seja nem o capitalismo nem o marxismo, mas
descolonial. Ou seja, que as instituições (governo, economia, educação, saúde,
alimentação) sejam postas a serviço da vida e não a vida a serviço das
instituições.
Hoje a instituição que se procura salvar é o capitalismo. Nos dizem numa mesma
notícia, com frequência, que a economia cresce, mas o desemprego também. A conexão
que os jornais não fazem é que o que importa é a instituição, não a vida.
O projeto descolonial do qual faço parte inverte este processo: só a descolonização
do ser e do saber levará a um câmbio do horizonte econ??mico e político.
Precisamos concretizar o "sonho descolonial", segundo o qual as instituições estão
a serviço da vida, em vez de por as pessoas a serviço das instituições. Esta
fórmula é a base da retórica moderna e da lógica do colonialismo (duas caras da
mesma moeda), da qual precisamos nos desprender a fim de permitir mudanças
radicais.
Revoluções materiais guiadas pela esquerda não nos levam muito longe, pois mantêm
os termos do discurso, mudando apenas os conteúdos, com resultados desastrosos até
então.
Entrevista: Rodrigo Abdelmalack
Revisão: Roselaine Wandscheer

Guantanamo

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São Paulo, domingo, 11 de abril de 2010


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Folha de São Paulo 11 de abril de 2010
Sem regras, Guantánamo julga seus presos
Desde que Obama reinstituiu comissões militares e anunciou mudanças, ainda não foi definido um novo manual de procedimento

Folha acompanhou audiência de caso de sudanês detido em 2002 na qual ficou claro que advogados ainda tateiam para se adequar a mudança

Soldado americano em torre de vigilância da prisão de Guantánamo, cujo prazo de fechamento prometido por Obama já expirou

ANDREA MURTA
ENVIADA ESPECIAL A GUANTÁNAMO

Mais de dois meses após expirar o prazo inicial do presidente Barack Obama para o fechamento da prisão de Guantánamo, não são apenas os mais de 180 suspeitos de terrorismo ainda detidos na base americana que mostram que pouco mudou. As polêmicas comissões militares já retomaram atividades na ilha, funcionando praticamente no mesmo sistema que um dia o democrata chamou de "uma bagunça".
Na última quarta-feira, a Folha acompanhou a audiência inaugural desses tribunais de exceção em 2010, que analisou o caso do sudanês Noor Uthamn Muhammed.
Em vários momentos, advogados dos dois lados, e mesmo a juíza, deixavam transparecer dúvidas sobre como proceder. Desde que Obama fez mudanças nos procedimentos em maio de 2009, não foi criado novo manual de regras para as comissões, que funcionam basicamente pelos regulamentos do manual de 2006, editado ainda sob o governo de George W. Bush, com algumas intervenções quase intuitivas que indicam novos limites.
Para completar o fardo, a sessão de Noor ocorreu em um tribunal secreto originalmente construído na ilha para abrigar os julgamentos dos acusados pelo 11 de Setembro. Em novembro, o secretário da Justiça americano, Eric Holder, anunciou que eles ocorreriam num tribunal federal de Nova York, mas a Casa Branca vem dando sinais de recuo diante da forte oposição e não há palavra final.
Nessa sala sofisticada e moderna, o sudanês, um negro franzino, de cabeça raspada e barba grisalha pontiaguda, permaneceu praticamente imóvel por duas horas. Ele chegou sem algemas e com uniforme branco, o que indica que é considerado cooperante. Não reagiu nem mesmo quando a juíza afirmou que há tanto material confidencial a ser revisto que um julgamento não será possível antes de 2011 -ele está preso desde que foi capturado no Afeganistão em 2002.
"A audiência foi mais uma manifestação de tudo o que está errado com as comissões desde sua criação", completou Michael Berrigan, vice-conselheiro-chefe de defesa de réus das comissões militares dos EUA. "A verdade é que não há regras. Já estamos na versão 4.0 das comissões, e daqui a pouco virá a 4.1."
"O problema é que não sabemos o que esperar", afirmou um advogado civil que visitava seu cliente em Guantámo e falou sob condição de anonimato. "Trabalho com acusados em comissões há dois anos e já vi as regras mudarem três vezes."

Nomenclatura
Quando abandonou sua intenção inicial de extinguir as comissões militares, Obama instituiu mudanças como uma maior possibilidade de escolha de advogados pelos acusados e limites mais rígidos na utilização de testemunhos indiretos. Também mudou a nomenclatura -acusados eram "combatentes inimigos ilegais" e agora são "inimigos beligerantes não privilegiados".
Informações podem ser resumidas e censuradas pela acusação antes de serem entregues à defesa, desde que revistas por um juiz para garantir precisão.
"A autoridade que está em vigor é o estatuto de 2009. Realmente é preciso promulgar um manual, e esperamos que isso ocorra em breve. Mas, enquanto isso, os juízes seguem atuando como podem", afirmou John Murphy, promotor-chefe das comissões militares.
"Algumas mudanças são cosméticas, outras reais", disse Berrigan. "Ainda estamos longe de um julgamento realmente justo. Mas as exigências para admissão de provas obtidas sob coerção melhoraram."
Com ou sem mudança, a manutenção do sistema em si e a enorme liberdade de acusações que ele permite oferecem motivo suficiente para críticas de grupos de direitos humanos.
O sudanês Noor, por exemplo, deverá ser julgado por conspiração e apoio material ao terrorismo -supostamente liderou um campo de treinamento para terroristas no Afeganistão e entregou um aparelho de fax ao líder terrorista Osama bin Laden. Mas "apoio material não deveria ser crime de guerra", afirmou à Folha Andrea Prasow, analista sênior da ONG Human Rights Watch para terrorismo que já defendeu acusados nas comissões. "E mesmo que fosse, deveria ser julgado em tribunais civis. Comissões não têm credibilidade nem legitimidade."
O promotor Murphy contesta. "A decisão de usar comissões ou tribunais civis é política. Se nossos líderes creem que é mais apropriado julgar os acusados em tribunais de guerra, que refletem a realidade de sua captura em campos de batalha e não são criminosos comuns, então faremos isso."
Prasow não esconde a decepção com Obama pela demora em cumprir as promessas. "Imprimi um cópia da ordem executiva para o fechamento do centro de detenção e a colei na porta do meu escritório no ano passado. É muito frustrante me ver ainda em Guantánamo em abril de 2010."