segunda-feira, 31 de agosto de 2009

A falência do Direito Penal

Folha de São Paulo, segunda-feira, 31 de agosto de 2009



ENTREVISTA DA 2ª - MASSIMO PAVARINI

Punir mais só piora crime e agrava a insegurança
Castigo mais duro, herança dos EUA de Reagan, transforma criminoso leve em profissional, diz professor de Bolonha

"É UM PECADO , uma ideia louca" a noção de que penas maiores de prisão aumentem a segurança. "Acontece o contrário. Penas maiores produzem mais insegurança", diz o italiano Massimo Pavarini, 62, professor da Universidade de Bolonha e considerado um dos maiores penalistas da Europa. Ele dá um exemplo: "Quanto mais se castiga um criminoso leve, mais profissional ele será quando voltar ao crime".

Eduardo Knapp/Folha Imagem

O pesquisador Massimo Pavarini, em São Paulo
Ligado ao pensamento de esquerda, Massimo Pavarini diz que essa ideia de punir mais teve como origem os EUA de Ronald Reagan, nos anos 80, e difundiu-se pelo mundo "como uma doença". A eleição de Barack Obama à Presidência dos EUA pode ser um sinal de que esse ideário se esgotou, acredita. Pavarini esteve em São Paulo na última semana para participar do congresso do IBCCRIM (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), onde deu a seguinte entrevista:

FOLHA - O sr. diz que o direito penal está em crise porque o discurso pró-punição está desacreditado e a ideia de ressocialização não funciona. O que fazer?
MASSIMO PAVARINI - O cárcere parecia um invento bom no final de 1700, quando foi criado, mas hoje não demonstra mais êxito positivo. O que significa êxito positivo? Significa que o Estado moderno pode justificar a pena privativa de liberdade. Sempre se fala que o direito penal tem quatro finalidades:
serve para educar, produzir medo, neutralizar os mais perigosos e tem uma função simbólica, no sentido de falar para as pessoas honestas o que é o bem, o que é o mal e castigar o mal.
Após dois séculos de investigação, todas as pesquisas dizem que não temos provas de que a prisão efetivamente seja capaz de reabilitar. Isso acontece em todos os lugares do mundo.

FOLHA - O que fazer, então?
PAVARINI - As prisões já não produzem suficientemente medo para limitar a criminalidade. Todos os criminólogos são céticos. O direito penal fracassou em todas as suas finalidades. Não conheço nenhum teórico otimista. Isso não significa que não possa haver alternativas. Há um movimento internacional em busca de penas alternativas. O que se imagina é que, se a prisão fracassou, a pena alternativa pode ter êxito punitivo. Há penas alternativas há três décadas e, se alguma pode surtir efeito, foi em algum momento específico, que não pode ser reproduzido em um lugar com história e recursos econômicos diferentes.

FOLHA - Numa conferência, o sr. disse que o Estado neoliberal, que começou na Inglaterra e nos EUA, não pensa mais em ressocializar o preso, mas em neutralizá-lo. Por que morreu a ideia de recuperar o preso?
PAVARINI - Já se sabia que não dá para ressocializar o preso. O problema é outro. Existe uma obra bem famosa dos anos 70, chamada "Nothing Works" [nada funciona]. O livro foi escrito quando [Ronald] Reagan era governador da Califórnia [1967-1975]. Ele criou uma equipe de cientistas, de todas as cores políticas, e deu-lhes um montão de dinheiro. A pergunta era muito simples: você pode mostrar que o modelo de ressocialização dos presos tem um êxito positivo? Os cientistas pesquisaram muito e no final escreveram "nothing works". A prisão não funciona nos EUA, na Europa nem na América Latina. Nada funciona se você pensa que a prisão pode reabilitar. Não pode. O cárcere tem o papel de neutralizar seletivamente quem comete crimes.

FOLHA - Ele cumpre esse papel?
PAVARINI - Pode cumprir. O problema é que a neutralização do inimigo, a forma como o neoliberal vê o delinquente, significa o fim do Estado de direito. O primeiro problema é que você não sabe quantos são os inimigos. Essa é a loucura.
Os EUA prendem 2,75 milhões todos os dias. Mais de 5% da população vive nas prisões. São 750 presos por 100 mil habitantes. Há ainda os que cumprem penas alternativas. Esses são 5 milhões. Portanto, são 7,5 milhões na América os que estão penalmente controlados. Aqui no Brasil são 300 presos por 100 mil habitantes.

FOLHA - Há teóricos que dizem que nos EUA as prisões se converteram em um sistema de controle social.
PAVARINI - Sim, isso ocorre. O setor carcerário nos EUA é quase tão forte quanto as fábricas de armas. Muitas prisões são privadas. É um bom negócio. O paradoxo dos EUA é que em 75, quando Reagan começa a buscar a Presidência, os EUA tinham 100 presos por 100 mil habitantes. Após 30 anos, a taxa multiplicou-se por oito. Os EUA não tinham uma tradição de prender muito. Prendiam menos do que a Inglaterra.

FOLHA - O senso comum diz que os presos crescem exponencialmente porque aumentou a violência.
PAVARINI - Isso é muito complicado. Se a pergunta é "existe uma relação direta entre aumento da criminalidade e aumento da população presa?", qualquer criminólogo do mundo, eu creio, vai dizer não. Os EUA não têm uma criminalidade brutal. Ela é comparável à criminalidade europeia. Eles têm um problema específico: o número elevado de casas com armas de fogo curtas. Um assalto vira homicídio.

FOLHA - Por que prendem tanto?
PAVARINI - Os EUA prendem não tanto pelo crime, mas por medo social. Essa é a questão. A origem do medo social é bastante complexa, mas para mim tem uma relação mais forte com a crise do Estado de bem-estar social do que com o aumento da criminalidade. É um problema de inclusão social. Os neoliberais dizem que não dá para incluir todas as pessoas que não têm trabalho, os inválidos, os que estão fora do mercado. Os criminosos são os primeiros dessa categoria. Uma regra que ajudou a aumentar a população carcerária foi retirada do beisebol: três faltas e você está fora. Em direito penal isso significa que após três delitos, que podem ser pequenos, você está preso. Você está fora porque não temos paciência para tratá-lo. Vamos eliminá-lo.

FOLHA - Eliminar é o papel principal das prisões, então?
PAVARINI - É um dos papéis. O direito penal é cada vez mais duro, as sentenças são mais longas, "life sentence" [prisão perpétua] é mais frequente, aplica-se a pena de morte.

FOLHA - Como essa ideia neoliberal funciona onde há muita exclusão?
PAVARINI - Vou dizer algo que parece piada: quando os EUA dizem uma coisa, essa coisa é muito importante. Podem ser coisas brutais, grosseiras, mas quem diz são os EUA. Como imaginar que na Itália e na França, que têm ótimos vinhos, os jovens preferem Coca-Cola?
Não se entende. É o poder dos EUA que explica isso. A ideia de como castigar, porque castigar e quem castigar faz parte de uma visão de mundo. Se a América tem essa visão de mundo, isso se reproduz no mundo.

FOLHA - É por essa razão que cresce o número de presos no mundo?
PAVARINI - Isso é um absurdo.
Dos 180 e poucos países do mundo, não passam de 10, 15 os que têm reduzido o número de presos. Na Itália, temos 100 presos por 100 mil habitantes.
Há 30 anos, porém, eram 25 por 100 mil. Aumentou quatro vezes em três décadas. Isso acontece na Ásia, na África, em países que não se pode comparar com os EUA e a Europa.
Creio que é uma onda do pensamento neoliberal, que se converte em políticas de direito penal mais severo. É engraçado que os EUA, nos anos 50 e 60, eram os mais progressistas em política penal, gastavam um montão de dinheiro com penas alternativas. Mas hoje as pessoas acham que o direito penal que castiga mais tem mais eficiência. Isso é desastroso. Nos EUA, o número de presos cresce também porque há um negócio penitenciário.

FOLHA - O que há de errado com esse tipo de negócio?
PAVARINI - Os EUA têm cerca de 15% dos presos em cárceres privatizados. É uma ótima solução para a empresa que dirige a prisão. Ela sempre vai querer ter um montão de presos, é claro, para ganhar mais dinheiro, e isso nem sempre é a melhor política. É um negócio perverso.
Os empresários financiam lobistas que vão difundir o medo.
É um desastre. Mas pode ser que tudo isso mude. Obama parece ter uma visão oposta à dos neoliberais e já demonstra isso na saúde pública, um tema ligado à inclusão social. O difícil é que não há uma ideia suficientemente forte para se opor ao pensamento neoliberal sobre as penas. A esquerda não tem uma ideia para contrapor. Os políticos sabem que, se não têm um discurso duro contra o crime, eles perdem votos.

FOLHA - No Brasil, os políticos e a população defendem o aumento das penas. Penas maiores significam mais segurança?
PAVARINI - Isso é um pecado, uma ideia louca, absurda. Acontece o contrário. Penas maiores produzem mais insegurança. É claro, um país não pode neutralizar todos os criminosos. Nos EUA, eles podem colocar na prisão o garoto que vende maconha. Prende por um, dois, cinco anos, e ele vai virar um criminoso profissional. Quanto mais se castiga um criminoso leve, mais profissional ele será quando voltar ao crime. Há mais de um século se diz que a prisão é a universidade do crime. É verdade. Mas, se um político diz "vamos buscar trabalho para esse garoto", ele não ganha nada.

FOLHA - No Estado de São Paulo, o mais rico do país, faltam 55 mil vagas nos presídios e as prisões são muito precárias. Por que um Estado rico tem presídios tão ruins?
PAVARINI - Há uma regra econômica que diz que a prisão, em qualquer lugar do mundo, deve ter uma qualidade de sobrevivência inferior à pior qualidade de vida em liberdade. Como aqui há favelas, as prisões têm de ser piores do que as piores favelas. A prisão tem de oferecer uma diferenciação social entre o pobre bom e o pobre delinquente. Claro que São Paulo poderia oferecer um presídio que é uma universidade, mas isso seria intolerável. O presídio ruim tem função simbólica.

FOLHA - Em São Paulo, o número de presos cresce à razão de 6.000 por mês. Faz sentido construir um presídio novo por mês?
PAVARINI - Mais cárceres significam mais presos. Se você tem mais presídios, você castiga mais. Por isso os países promovem moratórias, decidem não construir mais presídios.

FOLHA - Políticos dizem que mais presídios melhoram a segurança.
PAVARINI - A única coisa que você pode dizer é que mais presídios significa mais população presa. Há milhões de pessoas que delinqúem diariamente, e os presos são uma minoria. O sistema penal é seletivo, não pode castigar todos. As pessoas dizem que o crime não compensa, mas o crime compensa muito. O sistema não tem eficiência para castigar todos.
Quando você aumenta muito a população carcerária, algo precisa ser feito. Na Itália, há cada cada quatro, cinco anos há anistia. Entre os nórdicos, quando um juiz condena um preso, ele precisa saber a quantidade de vagas na prisão. Se não há vaga, outro preso precisa sair. O juiz indica quem sai. Porque é preciso responsabilizar o Poder Judiciário e a polícia pelos presídios. O cárcere tem de ser destinado aos mais perigosos. Uma prisão de merda custa 250 por dia na Itália. Não faz sentido usar algo tão caro para qualquer criminoso

sábado, 29 de agosto de 2009

Fundamentos da ciência - ceticismo

Valor Econômico Caderno EU & Fim de semana
Filosofia: O ceticismo tem muita coisa a dizer sobre a onda de desesperança gerada pelos escândalos políticos no Brasil, diz Oswaldo Porchat.Antes de tudo, um o Valor, de São Paulo
28/08/2009

Porchat: "A filosofia é artefato produzido pelos homens, em sua busca da felicidade. O ceticismo humaniza a razão, pensando-a a serviço dos seres humanos"
Um dos filósofos brasileiros mais interessantes e mais discretos raramente sai à rua do bairro de Santa Cecília, onde mora, em São Paulo. Em seu apartamento, Oswaldo Porchat Pereira exercita muito mais a mente do que as pernas apoiadas pela bengala lhe permitem. Aos 76 anos, o ex-professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP) e do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) - um advogado do ceticismo grego em pleno século XXI - inspira alunos, orienta pesquisas e teses e atrai cada vez mais a atenção dos estudiosos. Mas é com grande desconforto que assiste à crise de valores e à onda de ceticismo difuso gerada pela atual sequência de escândalos de corrupção política no país.

"O homem é naturalmente um amante da verdade, diz o filósofo cético Sexto Empírico. As pessoas comuns têm uma necessidade natural de crer e de acreditar", afirma Porchat. "Dá grande conforto ao homem pensar que tem certezas e valores absolutos. Quando esses valores são postos em xeque de maneira tão radical pelo comportamento de personagens políticos, é natural que essa necessidade de crer seja abalada. É claro que o ceticismo filosófico faz uma crítica dessa propensão à crença e procura explicá-la. Mas nem por isso o cético deixará de reconhecer o papel histórico e social que as crenças representam."

Em tempo de desesperança, é bom lembrar duas coisas: primeiro, os momentos de crise moral na sociedade fazem parte da história da civilização; segundo, o ceticismo possui uma experiência milenar de crítica ao dogmatismo e à certeza dos detentores transitórios da "Verdade". "Quando lemos textos gregos antigos e romanos sobre os eventos políticos daquela época, é com enorme frequência que encontramos referências precisas à terrível corrupção no meio político das cidades, na Grécia, em Roma e em suas colônias", ressalta. "Sabemos que isso aconteceu em variados países e em variadas épocas. Mesmo quando não havia imprensa as populações acabavam mais ou menos cientes do que se passava, o que gerou protestos e revoltas populares."

Ailton Cruz / Gazeta de Alagoas / Folha Imagem

Lula cumprimenta Collor: "Dá grande conforto ao homem pensar que tem certezas e valores absolutos. Quando esses valores são postos em xeque de maneira tão radical pelo comportamento de personagens políticos, é natural que essa necessidade de crer seja abalada", afirma Porchat
No sentido vulgar do termo, a imprensa brasileira tem contribuído - e muito - para fomentar o "ceticismo" da população, acredita Porchat. Essa contribuição é salutar na medida em que enseja uma necessária demanda por mudança no estado de coisas. "Graças à imprensa, a classe média que tem acesso a ela pode inteirar-se do que está acontecendo. Infelizmente, as classes populares não têm acesso. A consciência estimula uma reação sadia. Temo, entretanto, que algumas vezes, ao menos, essa denúncia legítima de fatos de corrupção se exerça de maneira parcial, privilegiando certos grupos que não se censuram e focalizando mais outros em que porventura se tem interesse maior, no momento, em denunciar."

Especialista em Aristóteles, sobre quem defendeu sua tese de doutoramento, "Ciência e Dialética em Aristóteles" (publicada pela Unesp em 2000), Porchat acabou por render-se ao ceticismo grego e tornar-se um filósofo neopirrônico, termo derivado do nome de Pirro de Élida (365-275 a.C.), o fundador do ceticismo. Sistematizada nos séculos II e III pelo médico e filósofo grego Sexto Empírico, o pirronismo influenciou vários pensadores, como Montaigne (1533-1592) e David Hume (1711-1776).

Os principais artigos de Porchat sobre o ceticismo encontram-se no livro "Rumo ao Ceticismo" (Unesp, 2004), que tem suscitado seminários e cursos em universidades brasileiras e na Argentina. "Em 40 anos publiquei dois livros. Minha escrita é muito policiada. Reescrevo muitas vezes. Isso me torna pouco produtivo", explica o autor. O zelo com as palavras já virou lenda e levou o filósofo José Arthur Giannotti a observar, no prefácio de "Ciência e Dialética em Aristóteles", que o amigo "de costume recusa-se a mudar uma vírgula do texto que lhe aparece acabado".

Para Porchat o ceticismo não teve importância pequena na história do pensamento. "Penso que teve uma importância enorme. Grandes nomes da filosofia moderna, tais como Descartes, Berkeley, Kant e Hegel, se deram como missão combater o ceticismo e declararam sempre que suas respectivas filosofias eram as únicas capazes de afastar a ameaça cética", explica. "É verdade que, com a exceção de Hume, não houve, depois do ceticismo antigo, grandes filósofos céticos. A influência do ceticismo foi mais difusa, mas nem por isso marcou menos a história do pensamento filosófico. A evolução das ciências humanas e naturais contribuiu bastante para eclosão de uma atitude que eu diria predominantemente 'cética' na filosofia contemporânea da ciência, ainda que, curiosamente, os filósofos da ciência ignorem o fato, por desconhecerem o pensamento cético."

Os céticos criaram uma escola de crítica ao dogmatismo e de valorização da vida comum. Para eles, a sabedoria não estava no conhecimento teórico especulativo, mas, sim, no conhecimento derivado da experiência e das artes inventadas pelos homens para transformar as coisas em seu benefício. Sexto Empírico e os filósofos gregos céticos do século II, entre os quais muitos eram médicos, deram uma contribuição considerável para a evolução da medicina na Grécia. Para Porchat os céticos ajudaram a introduzir o vocabulário da casualidade e a racionalidade científica no pensamento da Antiguidade, muito antes do iluminismo. Isso explica o renascimento do interesse pelo ceticismo grego, em curso na Europa e nos Estados Unidos desde os anos 70 e no Brasil desde os anos 90.

Contudo, paira sobre os céticos uma visão caricatural, alimentada pela ideia de que, por rejeitar toda e qualquer pretensão a um conhecimento absoluto ou à verdade de qualquer opinião, o ceticismo tornaria impossível para o cético viver a vida comum, já que toda ação pressupõe juízo e crenças.

"Alguns dicionários de filosofia evidenciam uma grande ignorância do ceticismo. Os céticos se atribuíram a missão de combater as crenças dogmáticas nas filosofias, nas ciências e também nas pessoas comuns. O senso comum, que é eminentemente relativo e varia de acordo com a época, a comunidade e as classes sociais, sempre esteve carregado de crenças dogmáticas. Assim, o ceticismo não o endossa e, em verdade, o critica acerbamente. O que os céticos pensam é que, não podendo optar por verdades dogmáticas, lhes resta suspender o juízo e viver a vida comum, sem crenças dogmáticas. Ao primado da razão dogmática sucede o primado da vida comum, que os céticos vivem de modo aparentemente igual a todos os homens, mas tendo, perante ela, uma atitude totalmente diferente da que eles comumente têm", diz Porchat.

A calúnia sobre o ceticismo seria outro caso de vitória da versão sobre o fato, uma deturpação destinada a neutralizar a crítica cética. Num artigo famoso, "O conflito das filosofias", Porchat mostra que "a história da filosofia brinda-nos com o desfile quase ininterrupto de grandes sistemas que, uns com os outros sempre incompatíveis, se apresentam animados, todos e cada um, da mesma pretensão de representar a verdadeira solução dos problemas do ser e do conhecer, a edição nova e definitiva da realidade". A filosofia tende a se alimentar continuamente de si mesma e da própria história e não somente das coisas e fatos do mundo exterior. Por isso, corre o risco de transformar-se em um grande jogo de palavras.

"O cético teme que a filosofia se converta num prodigioso e sublime jogo de palavras se embarca na produção de sistemas e doutrinas dogmáticas e não leva até o extremo o espírito crítico que, por outro lado, sempre explicitamente professou", explica. "O ceticismo se pretende, ao contrário, ser o legatário coerente da racionalidade crítica da filosofia ocidental". Para o cético, o objetivo da filosofia é servir a vida cotidiana e comum que todos os seres humanos vivem. "Sempre entendi que a filosofia é coisa do mundo, artefato produzido pelos homens, em sua busca da felicidade. O ceticismo humaniza a razão, descobrindo sua vocação eminentemente mundana, pensando-a a serviço dos seres humanos."

A atração da filosofia pelo dogmatismo não seria exceção, mas a regra. As filosofias estão todas identicamente empenhadas na elucidação da própria noção de filosofia. "Essa pretensão, que lhes é essencial, leva-as necessariamente a uma mútua e recíproca excomunhão e exclusão, na mesma medida em que pertence a cada filosofia o dever de impor-se como única e verdadeira." Não são poucos os espectadores que terminam por desencantar-se com a validade da tarefa filosófica, quando descobrem que a história da filosofia é a história do desacordo entre filósofos. "Constrange-os constatar que os filósofos, na verdade, nunca dialogam, apenas polemizam. Não se espera da discussão entre filósofos mais do que uma mútua benevolência na clarificação dos fundamentos e raízes da sua opinião irredutível."

E por que tanto desprezo pelo diálogo e o consenso? "Essa é uma questão difícil. O desacordo entre os filósofos provém da pretensão, que quase todos exibem, de oferecer-nos a única resposta correta à pergunta humana pelo 'Saber'. Parece-me que só a psicologia pode sugerir uma explicação, que teria a ver com problemas de autoafirmação, de ambição intelectual e de vaidade humana. Um desejo de ocupar, de alguma maneira, o lugar de Deus, uma necessidade de ser e aparecer como o único oráculo confiável dos deuses. Não são apenas as pessoas comuns que têm necessidade de crer", pondera o filósofo.

A soberba e a alienação de tantos intelectuais causa espécie. Cegos de não ver o mundo dos homens, surdos de não ouvir o discurso que proferem, muitos se perdem na verborragia. A propósito, Porchat lembra uma historieta antiga: "O filósofo Tales observava os astros e, olhos no céu, acabou por cair num poço, provocando o riso de uma jovem trácia, que zombou de sua preocupação pelas coisas celestes, quando o que estava a seus pés lhe escapava. Os filósofos converteram Tales em pai da filosofia e, desde Platão, fizeram desse cômico incidente o símbolo da sublime altanaria do espírito filosófico, que se ergue acima das vicissitudes da vida e cuja profundidade escapa à compreensão do vulgo. Mas cabe outra interpretação. O episódio serve como prenúncio daquela trágica alienação que levou a filosofia ao esquecimento do mundo. Por isso, a sabedoria da pequena trácia merece a minha simpatia."

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

O concurso de monografias da UFF de Direito

O concurso de monografias em relação as inscriçoes o prazo final ficou para o dia primeiro de outubro de 2009. Participe e prestigie o concurso de monografias da UFF de direito

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Visão desfocada

O Estado de S. Paulo

27/08/2009


Luiz Eduardo Rocha Paiva

O acordo para a utilização de bases na Colômbia pelos EUA ganhou espaço nas últimas semanas, pela repercussão nas relações internacionais no continente. Em termos de ameaça ao Brasil, o governo incomodou-se com a visão apenas da ponta do iceberg. Um acordo que estabelece o limite de 800 militares e 600 civis para a presença norte-americana em sete bases colombianas, distantes da fronteira com o Brasil, seria uma real ameaça? Ou apenas parte dela? Existem campos de pouso em outros vizinhos, inclusive no Paraguai, onde os EUA têm condições de montar bases de operações em poucos dias.

Por que o governo não vê ameaça na existência de dezenas de imensas terras indígenas na faixa de fronteiras, criadas pelo Brasil sob pressão internacional e onde o índio é liderado por ONGs estrangeiras financiadas por potências alienígenas, inclusive os EUA? Organismos internacionais, ONGs e líderes mundiais não veem o índio como cidadão brasileiro e defendem a autonomia de suas terras com base na Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas, aprovada pela ONU com voto favorável do Brasil.

A pressão internacional no âmbito político, econômico e psicossocial é que concretiza a verdadeira ameaça que, aos poucos, vai nos impondo a soberania limitada na Amazônia. A Nação e suas lideranças assistem passivamente a esse processo, demonstrando não estar à altura das gerações que nos legaram, com inteligência e sacrifício, o país-continente que herdamos. A soberania limitada será exercida pela imposição de diretrizes e pelo uso privilegiado dos recursos da Amazônia, deixando-nos o ônus da administração sob fiscalização estrangeira. Não implica a conquista militar de toda a região, basta controlar uma área de capital importância, em qualquer parte do Brasil, e usá-la como moeda de troca caso o País desperte e passe a resistir àquela pressão.

Segurança nacional não é calcada apenas no poder militar, como ficou provado na desintegração da URSS. Se o Brasil insistir em suas equivocadas políticas e estratégias de ocupação, desenvolvimento, preservação e integração da Amazônia, não adiantará dispor de Forças Armadas potentes, pois as condições objetivas para a imposição da soberania limitada estarão concretizadas em alguns anos. Quem analisar a perda do Acre pela Bolívia e a comparar com a evolução da questão indígena no Brasil, desde o início dos anos 90, perceberá a analogia entre os dois históricos. A China, ao contrário da Bolívia no Acre e do Brasil nas terras indígenas, neutralizou o separatismo da etnia uigur, na província Xinjiang, mediante sua ocupação com a etnia han (chinesa), hoje predominante na região.

Quanto às bases, do ponto de vista militar, as direções estratégicas que partem da Colômbia não são tão favoráveis quanto as oriundas do Atlântico que incidem na Amazônia brasileira através da região guianense. Em termos geográficos, as últimas evitam os Andes, são apoiadas por mar, não dependem tanto do apoio aéreo e estão diretamente orientadas para regiões de capital importância, como a foz do Rio Amazonas, Belém, Boa Vista e Manaus. Em termos políticos, há vínculos atuais e históricos das Guianas com as antigas metrópoles europeias, não ibéricas, interessadas nos recursos da Amazônia, grandes financiadoras de ONGs e aliadas dos EUA na Otan.

A reação brasileira no episódio das bases, ainda que impedisse a concretização do acordo entre a Colômbia e os EUA, pouco contribuiria para a segurança da Amazônia. Nas relações internacionais, o poder do mais forte é empregado sempre que estão em jogo interesses importantes ou vitais. Se a opção militar for necessária para resolver o conflito, uma potência empregará suas Forças Armadas desde que o oponente e seus possíveis aliados não tenham capacidade de dissuasão. Assim foi com os EUA nos Bálcãs e está sendo no Oriente Médio e na Ásia Central.

A visão dos governos brasileiros tem sido desfocada do essencial em termos de segurança nacional, levando-os a graves erros estratégicos por não perceberem que diplomacia e defesa têm por obrigação antever e se preparar para enfrentar uma ameaça quando ela ainda está no horizonte do "possível", pois se esperarem que se torne "provável" será tarde demais para neutralizá-la; e que política externa é diplomacia e defesa. Por isso, o setor militar deve ocupar um espaço no núcleo decisório do Estado, no mesmo nível da diplomacia, como foi no passado. O Barão do Rio Branco, um dos maiores diplomatas e estadistas brasileiros, disse: "Não se pode ser pacífico sem ser forte."

O desequilíbrio entre os campos do poder nacional, com perigosa indigência militar e científico-tecnológica, e, no campo psicossocial, a lamentável decadência moral da Nação tornam o País vulnerável, ainda que se projete como potência econômica. Os recursos nacionais, num mundo ávido por energia, ganham importância para os EUA por estarem em sua área de influência, na medida em que sua obtenção fica mais dispendiosa e incerta em outras regiões do globo.

Por tudo isso, manifestar preocupação com a soberania na Amazônia por causa das bases colombianas é supervalorizar o periférico em detrimento do fundamental. Revela a falta de percepção do que é nossa real ameaça e passa uma imagem de ator terceiro-mundista a reboque do líder bolivariano e de seus aliados - Equador e Bolívia -, três grandes óbices à integração regional. O governo não se manifestou quando o presidente Hugo Chávez propôs à Rússia instalar bases na Venezuela, em sua recente visita àquela potência, como noticiou a imprensa nacional. A política externa brasileira caracteriza-se pelos "dois pesos e duas medidas" e pelo alinhamento a projetos socialistas radicais do Foro de São Paulo para a América Latina.

Ao Brasil faltaram foco e independência ideológica no episódio das bases. E faltam civismo, educação e estadistas para liderar o bloco regional.

Luiz Eduardo Rocha Paiva, general da reserva, foi comandante e é professor emérito da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército

Colômbia denuncia expansionismo de Chávez

O Globo

27/08/2009

Janaína Figueiredo, Correspondente
Às vésperas da reunião de cúpula da Unasul, embaixador do governo Uribe apresenta queixa contra a Venezuela à OEA

BUENOS AIRES. Às vésperas de uma nova cúpula de presidentes da União de Nações SulAmericanas (Unasul), os governos da Colômbia e Venezuela protagonizaram um novo conflito no âmbito da Organização de Estados Americanos (OEA), um dia depois de o presidente venezuelano, Hugo Chávez, ter afirmado que seu país está se preparando para romper relações com o governo de Álvaro Uribe. O líder venezuelano assegurou que o acordo entre a Colômbia e os Estados Unidos, que permitirá aos americanos utilizar sete bases militares colombianas, representa uma declaração de guerra para seu país.

Recentes declarações hostis de Chávez foram interpretadas como uma ingerência em assuntos internos da Colômbia, o que levou o governo Uribe a apresentar uma queixa ontem, no Conselho Permanente da OEA. O ministro das Relações Exteriores da Colômbia, Jaime Bermúdez, acusou a Venezuela de pretender “expandir seu projeto” a outros países da região.

— Esperamos que o presidente Chávez use suas capacidades e talentos para construir coletivamente no continente, sem semear mais ódio e respeitando as diferenças, não intervindo em assuntos internos da Colômbia — afirmou o embaixador colombiano na OEA, Luis Hoyos.

Amanhã, os 12 presidentes da Unasul se reunirão no luxuoso Hotel Llao Llao, da cidade argentina de Bariloche, para tentar contornar a crise desencadeada pelo entendimento entre a Colômbia e os EUA.

Além da Venezuela, a iniciativa foi considerada perigosa pelos governos do Brasil, Equador, Bolívia e Argentina. Os presidentes do Uruguai e Chile foram mais cautelosos e manifestaram seu respeito à soberania colombiana.

Longe de cogitar a possibilidade de um recuo de seu governo, o presidente Uribe deixou claro que o acordo com os EUA está mais firme do que nunca e antecipou sua intenção de pedir aos demais governos da região que expliquem em Bariloche seus respectivos entendimentos militares com outros países. O presidente colombiano insistirá, especialmente, em atacar a parceria da Venezuela com Rússia e Irã.

— O acordo com os EUA é o que falta ao Plano Colômbia para derrotar o narcotráfico e o terrorismo — enfatizou Uribe.

Enviado americano visita o Uruguai Embora tenha descartado a possibilidade de participar do encontro presidencial sulamericano, o governo do presidente Barack Obama decidiu enviar o subsecretário adjunto de Estado para Assuntos do Hemisfério Ocidental a Montevidéu e Buenos Aires, dois dias antes da cúpula da Unasul.

Ontem, Christopher J. McMullen chegou à capital uruguaia para reunir-se com autoridades do governo Tabaré Vázquez, segundo informaram meios de comunicação locais.

O funcionário do governo Obama passaria hoje pela capital argentina, onde seria recebido pelo chefe de gabinete, Aníbal Fernández. A posição da Casa Branca foi confirmada semana passada pela secretária de Estado, Hillary Clinton: — Trata-se de um acordo bilateral, com um claro reconhecimento da soberania e integridade territorial (da Colômbia).

No entanto, o governo chavista insiste em considerar o entendimento uma ameaça à segurança regional.

— Preparem-se, porque a burguesia colombiana nos odeia e não existe possibilidade de retorno — afirmou Chávez, que acusou a Colômbia de ter se transformado em “narco-Estado” e “base militar ianque”.

Domingo passado, em seu programa de TV “Alô Presidente”, Chávez dissera estar disposto a fazer tudo o que fosse necessário para que suas palavras chegassem ao povo colombiano.

— A oligarquia de lá (da Colômbia) tem medo de nossa mensagem. Mas nossa palavra deve chegar aos colombianos, porque querem nos associar com a guerrilha e nós não temos acordos com a guerrilha, muito menos com o narcotráfico — disse Chávez.

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

A degola de um movimento

Com uma repressão cruel, comparável à de Canudos, o exército extinguiu a guerrilha rural no Araguaia, um projeto que via no campo o caminho para a revolução socialista.
por Marco Aurélio Vannucchi L. de Mattos

A foto tirada por um militar, a chegada do exército à região do Araguaia, em setembro de 1972

Na tarde do dia 4 de fevereiro de 1974, "Osvaldão" sentou-se para descansar. Negro, forte e alto, usava uma longa barba. Completaria 36 anos em abril. Estava sozinho numa capoeira em plena floresta amazônica, próxima ao rio Araguaia. Tornara-se mito na região, considerado um guerrilheiro invencível. Os camponeses acreditavam que, ao entrar na mata, ele se transformava em mosquito, borboleta ou cachorro, livrando-se do cerco do exército. Era temido pelos militares. Fatigado pela fuga, "Osvaldão" não percebeu a chegada de uma patrulha. O guia que vinha à frente dos soldados disparou em sua direção. Morto, foi preso a uma corda e içado por um helicóptero. A 20 metros de altura, o corpo se desprendeu e caiu. Dependurado novamente, foi exibido aos moradores da região, para que se convencessem de sua morte. Antes de ser enterrado, teve a cabeça cortada.

Osvaldo Orlando da Costa, o "Osvaldão", foi o primeiro militante do Partido Comunista do Brasil (PC do B) a chegar, em 1966, à região do Araguaia, com a missão de organizar a guerrilha rural. Mineiro de Passa Quatro, estudara engenharia de minas na Universidade de Praga, na Tchecoslováquia. Fora também campeão de boxe pelo Botafogo. À sua chegada, seguiu-se a de outros militantes, mas aos poucos, para não levantar suspeitas. Em meados de 1968, compunham um grupo de 15 guerrilheiros. No início de 1972, às vésperas da primeira expedição do exército contra a guerrilha, eram cerca de 70. Instalaram-se ao longo de uma área de floresta tropical de cerca de 7 mil km2, num arco estendido da cidade de Xambioá à de Marabá, no sul do Pará.

Ocultaram suas identidades com o uso de nomes falsos e ocupações comuns na região. Transformaram-se em pequenos agricultores, barqueiros, quitandeira, dono de farmácia, mascate e até curandeiro. Moravam afastados uns dos outros e esforçavam-se por se integrar à vida das comunidades onde viviam. Até 1972, eximiram-se de atuar politicamente, dedicando-se a ações assistencialistas. Faziam partos, atendiam doentes e arrancavam dentes, davam aulas nas escolas, ajudavam nos mutirões da roça e participavam de festividades. Assim, ganharam a estima da população.

Boa parte desses homens e mulheres que se embrenharam nas matas do Araguaia eram estudantes que haviam tomado parte em importantes manifestações contra a ditadura militar, nas grandes cidades do país entre 1967 e 1968. Vários deles já tinham passado pelo cárcere por conta de suas atividades oposicionistas. Jacob Gorender, em seu Combate nas trevas, informa que pouco mais de 70% dos guerrilheiros provinham da classe média; eram estudantes, profissionais liberais (médicos, professores, advogados), comerciários ou bancários. Menos de 10% eram operários. E cerca de 20%, camponeses (quase todos recrutados na região). Os combatentes tinham, em média, pouco menos de 30 anos. A implementação da guerrilha foi chefiada localmente por dois dirigentes comunistas de muita experiência política: Maurício Grabois e João Amazonas. Ingressaram no Partido Comunista Brasileiro (PCB) na década de 30 e haviam sido presos durante o Estado Novo. Com a legalização do PCB depois da deposição de Getúlio Vargas, foram eleitos deputados constituintes em 1946. E, em 1962, participaram do "racha" do PCB que originou o PC do B.

Os militantes fizeram treinamento militar na floresta. Aprenderam a conviver com a natureza inóspita e a sobreviver às doenças tropicais. Estocaram provisões e remédios na mata. Dividiram-se em três destacamentos, de cerca de 20 combatentes cada, subordinados a uma comissão militar, responsável pela direção da guerrilha. Em 1972, a guerrilha esperava a incorporação de mais alguns militantes, planejando o início dos combates para o final do ano.

A organização de uma guerrilha em área rural era conseqüência da estratégia de "guerra popular prolongada", inspirada na Revolução Chinesa e nos escritos de Mao Tsé-tung, adotada pelo PC do B. O partido avaliava que o controle do Estado sobre o campo era menos rigoroso do que sobre a cidade. Acreditava que a tomada do poder pela via armada deveria começar pelo interior e, daí, irradiar-se para os centros urbanos. Os militantes deveriam se fixar no campo, ganhar a confiança da população e recrutar camponeses para lutar ao seu lado na guerrilha. Essa era a estratégia.

A revolução socialista proposta pelo PC do B teria duas fases, de acordo com a fórmula apregoada pela Internacional Comunista, no final dos anos 1920. Na primeira, deveria derrubar a ditadura militar, vista como protetora dos interesses dos latifundiários e do imperialismo no país. A dominação dos grandes proprietários no campo e a presença imperialista de nações estrangeiras (destacadamente dos Estados Unidos) eram consideradas os principais entraves para o desenvolvimento brasileiro, deixando a população à mercê da pobreza e da opressão. Para livrar o país de latifundiários e agentes do imperialismo, o partido acreditava que teria de articular um arco de alianças de forças sociais, reunindo camponeses, operários, classe média e a burguesia nacional. Depois dessa primeira etapa, a da revolução nacional e democrática, haveria condições políticas e econômicas para a implementação de um regime comunista no Brasil, a última etapa revolucionária.

Desde sua origem, em 1962, o PC do B defendera a luta armada. Essa posição rendeu-lhe prestígio no período imediatamente posterior ao golpe civil-militar de 1964 - quando boa parte da esquerda brasileira divergiu do caminho pacífico ao socialismo propugnado pelo PCB -, trazendo ao partido uma nova leva de militantes. Ao longo da década de 60, o PC do B aproximou-se ideológica e politicamente do regime comunista chinês. Vários de seus quadros passaram por formação militar e teórica naquele país, inclusive guerrilheiros que viriam a ser deslocados para o Araguaia. O partido também firmou laços de colaboração com o governo comunista da Albânia. Depois da chegada do exército, uma estação de rádio de Tirana (capital albanesa) transmitia um programa de uma hora de duração, em que fazia propaganda política da guerrilha para o mundo.

Por onde começar
A escolha do PC do B por iniciar a luta no campo foi na contramão do que fez o restante dos agrupamentos também adeptos da luta armada, no final da década de 60. A Ação Libertadora Nacional (ALN), o Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8), a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR) e outras organizações principiaram pelas ações urbanas: panfletagens, assaltos a bancos, roubos de armamentos e munições, assassinatos de agentes do aparato de repressão política. Mas consideravam a guerrilha urbana preparatória - já que garantiria recursos materiais, experiência militar e propaganda de sua atuação - à luta no campo, vista como a etapa verdadeiramente decisiva da revolução.

Fizeram tentativas de preparar a guerrilha rural. A VPR montou um campo de treinamento num sítio no vale do Ribeira, São Paulo. Para lá foram mandados 20 militantes de vários estados para serem treinados pelo capitão Carlos Lamarca.

Encerrado o curso, seriam enviados ao nordeste do país, para desencadear a guerrilha rural. Mas, em abril de 1970, a polícia descobriu o campo e ele teve de ser desmobilizado. No ano seguinte, Lamarca (agora filiado ao MR-8) morreria no sertão baiano, onde tencionava estabelecer um núcleo guerrilheiro. O comandante da ALN, Carlos Marighella, anunciara em 1969 que o ano seguinte seria o de lançamento das ações armadas no campo; foi assassinado antes que isso pudesse acontecer. O PCBR comprou dois sítios no Paraná, deslocando militantes para a região, com vistas a iniciar a luta no campo, mas a iniciativa não prosperou.

No resto do mundo, a guerrilha rural também era tida como uma forma privilegiada de luta. Exemplos que reforçassem seu prestígio não faltavam: a guerra camponesa que levou à vitória da Revolução Chinesa (1949); a rebelião de Sierra Maestra que culminou na Revolução Cubana (1959), a resistência na selva dos vietnamitas contra os Estados Unidos (1964-1975). Nos anos 1960, guerrilhas rurais fervilharam na América Latina: Argentina, Peru, Colômbia, Venezuela, Guatemala, Nicarágua. E Bolívia, onde, em 1967, Ernesto Che Guevara seria morto, numa fracassada revolução socialista que deveria começar no campo.

A área de instalação da guerrilha rural fora cuidadosamente escolhida pelo PC do B. Esparsamente povoada, era comum chegarem à região do Araguaia migrantes em busca de terras ou de sorte no garimpo. Levava-se dias para se locomover de um povoado a outro, as estradas quase inexistiam. A dificuldade de acesso protegeria os guerrilheiros das forças governistas. Os poucos organismos de Estado presentes no local estavam a serviço dos grandes proprietários de terra. A população vivia modestamente de suas roças, de pequeno comércio ou trabalhava por baixíssimos salários, nas fazendas. Os serviços de saúde e educação eram precários. Essa situação de pobreza pareceu ao PC do B formar um quadro propício para a emergência de uma rebelião popular.

Por volta de janeiro de 1972, o governo soube da existência da base guerrilheira. A informação foi dada por militantes que haviam passado pela região e caíram em poder dos militares. Na época, os órgãos de repressão política finalizavam o extermínio da guerrilha urbana. Desde 1969, os agrupamentos armados que atuavam nas grandes cidades sofriam reveses seguidos. Quando foram desencadeadas as primeiras ações de guerrilha urbana, em 1968, a ditadura militar foi pega de surpresa e enfrentou dificuldades para contê-la. Mas, com o passar do tempo, organismos repressivos foram reorganizados ou criados e métodos brutais de tortura disseminaram-se nos interrogatórios de militantes presos. Tornou-se cada vez mais difícil recompor os quadros de militantes mortos, presos ou exilados. A opção pela clandestinidade feita pelas organizações armadas visava protegê-las das investidas repressivas. Contudo, ajudou a distanciá-las dos movimentos sociais, dificultando a arregimentação de militantes e o apoio popular à luta.

No dia 12 de abril de 1972, chegou ao Araguaia a primeira expedição militar de combate à guerrilha. Era o início da Operação Papagaio, que reuniu cerca de 800 homens. A tropa distribuiu-se e passou a vasculhar a região. Entrou em cidades, lugarejos e fazendas e montou postos de controle nas duas principais estradas: a Belém-Brasília e a inacabada Transamazônica. O comando da expedição instalou-se às margens do rio Itacaiúnas, nas proximidades de Marabá. Os guerrilheiros refugiaram-se na mata.

Brutalidade nos povoados
No primeiro confronto entre militares e guerrilheiros, um tenente e um sargento saíram feridos e um cabo foi morto. Um outro enfrentamento resultou na morte de um soldado e deixou um sargento ferido. Os militares intimidaram e incentivaram com dinheiro os moradores a delatar os guerrilheiros. Um camponês conhecido por "Cearense" informou ao exército que entregaria a um militante uma encomenda de fumo de corda. Na hora marcada, o militante chegou acompanhado de quatro companheiros. Foram surpreendidos por tiros de metralhadoras. Bergson Gurjão Farias, o guerrilheiro "Jorge", caiu ferido. Bergson, que tinha 24 anos, estudara química na Universidade Federal do Ceará, onde fora vice-presidente do diretório dos estudantes. Preso, foi submetido a torturas e morreu a golpes de baioneta. Seu corpo nunca foi encontrado. Tornou-se o primeiro desaparecido da Guerrilha do Araguaia.

Pouco depois, o tropeiro "João Coioió" contou aos militares que teria um encontro com guerrilheiros para lhes entregar alimentos. Montou-se a tocaia que vitimou Maria Lúcia Petit da Silva. Paulista, Maria Lúcia tinha 20 anos quando, em 1970, chegou à área da guerrilha. Professora primária, participara do movimento estudantil secundarista. Seu corpo só foi localizado em 1991, enterrado sem identificação num cemitério de Xambioá.

Apesar de algumas delações, o comportamento geral dos camponeses era de simpatia pelos guerrilheiros. Um oficial que combateu no Araguaia, ouvido pelo jornalista Fernando Portela, autor de um livro pioneiro sobre a guerrilha do PC do B (Guerra de guerrilhas no Brasil), admitiu que "o povo gostava deles (dos guerrilheiros).

Então o povo achava que devia dar proteção". Os militares agiram com brutalidade nos povoados e cidades, aterrorizando seus moradores. Muitos foram presos e espancados. Ao menos um camponês foi assassinado na primeira campanha do exército. Em maio de 1972, o barqueiro Lourival Paulino, de cerca de 50 anos, foi preso pelos militares, acusado de colaborar com a guerrilha. Levado para a delegacia de Xambioá, foi torturado e morto no terceiro dia de cárcere.

Mesmo com a evidente inferioridade numérica e de seu armamento, a guerrilha resistiu aos militares. Reconhecendo seu malogro, as tropas recolheram-se em julho de 1972. Em setembro do mesmo ano, voltaram, na segunda ofensiva do exército. Um efetivo estimado entre 3 mil e 5 mil soldados foi mobilizado. Tentando angariar a simpatia da população, os militares ofereceram médicos, dentistas e remédios para os camponeses. Mas falharam na derrota da guerrilha. Em outubro, abandonaram a área. Nas expedições de 1972, o PC do B perdeu pouco mais de dez combatentes, mortos, e sete capturados.

Agentes infiltrados
Desfeito o segredo sobre a guerrilha, os militantes voltaram aos povoados para fazer propaganda de sua causa e arregimentar novos combatentes. Anunciaram a criação da União pela Liberdade e pelos Direitos do Povo (ULDP), cujo programa de 27 pontos propunha reformas sociais para resolver problemas concretos enfrentados pelos moradores da região. Dirigia-se aos camponeses e comerciantes e incluía a distribuição de terras, a ampliação da assistência médica, a construção de escolas, o fim das arbitrariedades policiais e a proteção à mulher. Também previa a liberdade de culto, a eleição livre de prefeitos e comitês populares locais, a defesa das terras indígenas e a obrigação do reflorestamento nas áreas de exploração de madeira. Foram criados núcleos da UDLP. Embora o trabalho político desenvolvido pelo PC do B contasse com a simpatia e participação dos moradores, pouco reverteu em novos recrutamentos. Foram raros os camponeses que se incorporaram à guerrilha. Por outro lado, os militantes estavam isolados da estrutura urbana do PC do B, o que inviabilizava o recebimento de reforços vindos de fora.

Entre a segunda e a terceira expedição do exército, os guerrilheiros se lançaram a ações militares. Mataram colaboradores do inimigo e um pistoleiro que aterrorizava os camponeses. Atacaram um posto da polícia militar e ocuparam a sede de uma fazenda, prendendo seu proprietário e levando dinheiro, alimentos e remédios.

Em maio de 1973, o exército começou a infiltrar agentes de segurança, sigilosamente, na região. Disfarçados, eles tinham a incumbência de levantar informações sobre a atuação e o paradeiro dos guerrilheiros e simpatizantes. No dia 7 de outubro do mesmo ano, foi desencadeada a terceira e derradeira expedição contra a guerrilha. Batizada Operação Marajoara, destacou 250 militares, apoiados por helicópteros e aviões, para o combate direto aos guerrilheiros, na floresta. Nesse momento, estes eram 56 e seu armamento continuava velho e insuficiente, como desde o início dos combates, em 1972. Os três destacamentos guerrilheiros foram concentrados num único grupo.

Novamente os moradores foram intimidados com prisões, espancamentos e humilhações. O exército enfiou vários deles em buracos fundos cavados na terra e cobertos por grades. Lavradores suspeitos de colaborar com os guerrilheiros tiveram suas plantações destruídas ou até mesmo foram expulsos de suas terras. Logo as Forças Armadas começaram a impor baixas ao PC do B. No Natal de 1973, uma tropa encontrou o comando militar da guerrilha. Cercados, vários guerrilheiros foram mortos, incluindo Maurício Grabois. Desarticulada a guerrilha, os militantes foram caçados nas matas. A orientação da terceira expedição era a de que não deveria haver sobreviventes no lado dos guerrilheiros. E assim aconteceu. Executaram-se mesmo os que foram feitos prisioneiros. O exército reavivou, no Araguaia, uma prática infligida aos seguidores de Antônio Conselheiro, em Canudos: a degola.

Militantes mortos no meio da floresta tiveram a cabeça arrancada para serem identificados nas bases militares. No final de 1974, não havia mais guerrilheiros no Araguaia. No saldo das três expedições, os militares mataram ao menos 59 militantes. O exército não quis deixar nenhum vestígio da operação: corpos de guerrilheiros sepultados na selva foram desenterrados e queimados. Há relatos de que militantes tenham sido atirados ao mar. (Até hoje os familiares dos guerrilheiros mortos procuram seus corpos.) O governo militar impôs silêncio absoluto sobre os acontecimentos do Araguaia. Proibiu a imprensa de dar notícias sobre o tema, enquanto o exército negava a existência do movimento. Temia-se que o exemplo fosse seguido. A Guerrilha do Araguaia é, ainda hoje, um episódio da história brasileira não completamente conhecido. Está sendo desvelado à medida que surgem novos documentos, entrevistas e pesquisas.

Marco Aurélio Vannucchi L. de Mattos é historiador, Mestre e Doutorando em História Social pela USP. Autor, entre outros títulos, de contra os inimigos da ordem ( Editora DPA, 2003).

terça-feira, 25 de agosto de 2009

Panos quentes na crise

Correio Braziliense

25/08/2009

Em visita a Brasília, chanceler do Equador afirma que a Unasul não vai colocar a Colômbia “no banco dos réus” por causa do acordo militar com os EUA. Celso Amorim rejeita comparação com cooperação entre Brasil e França na área de defesa

Viviane Vaz

O ministro de Relações Exteriores, Comércio e Integração do Equador, Fander Falconí, encontrou-se ontem no Itamaraty com o colega Celso Amorim para tratar de assuntos bilaterais e de interesse regional, como a situação em Honduras, mas principalmente para acertar os detalhes da próxima reunião de chanceleres e presidentes dos países integrantes da União de Nações Sul-americanas (Unasul).

A instalação de sete bases americanas em território colombiano será o tema principal da agenda. A chancelaria colombiana confirmou ao governo equatoriano a presença do presidente Álvaro Uribe na reunião, que será realizada na próxima sexta-feira em Bariloche, na Argentina. “Não se trata de colocar ninguém no banco dos réus, mas de encontrar soluções”, enfatizou Falconí em coletiva coletiva ao lado do anfitrião. O ministro equatoriano espera que “os governantes possam atenuar a polêmica e buscar objetivos comuns”.

O chanceler colombiano, Jaime Bermúdez, anunciou que seu governo está disposto a discutir “todos os temas” na próxima cúpula. “Que a região discuta abertamente o tema do armamentismo e a compra de armas, que se discuta o terrorismo e o narcotráfico, além dos acordos de cooperação com terceiros”, disse Bermúdez depois de se reunir, em Santiago, com o colega Mariano Fernández. Uribe aceitou ser sabatinado em Bariloche com a condição de colocar outros temas na mesa, como as relações militares entre Venezuela e Rússia, ou entre Brasil e França.

Sobre isso, Falconí disse que “a posição do Equador é que não haja temas vetados, que todos os assuntos relacionados com a segurança sejam tratados nessa cúpula”. Já Amorim ressaltou que não interpreta a curiosidade sobre o acordo militar Brasil-França como uma crítica velada de Uribe. “Ele tem desejo de saber e vai saber: nós não temos nada a esconder”, afirmou. “Há uma diferença entre fazer um acordo de compra de equipamentos, ou até de treinamentos, e permitir a presença militar estrangeira em seu território, ainda que seja pelo objetivo declarado de combate ao narcotráfico e ao terrorismo na Colômbia”, acrescentou o chanceler brasileiro.

Amorim também sugeriu que Colômbia e Estados Unidos ofereçam algum tipo de “garantia” de que as operações conjuntas previstas no acordo se limitarão efetivamente ao território colombiano. “Pedir garantias não é duvidar da palavra de ninguém”, esclareceu, reconhecendo que talvez a Colômbia não esteja preparada para dar garantias na reunião de Bariloche.

Quanto ao convite feito pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao presidente americano, Barack Obama, para que participasse de uma reunião com a Unasul para falar sobre as bases, Amorim disse que ainda não houve resposta da Casa Branca, mas anunciou que reforçará o convite quando conversar com a secretária de Estado Hillary Clinton. “Sempre é bom conversar, ressaltar a importância que isso tem para o relacionamento dos EUA com a América do Sul”, declarou. Segundo o chanceler, o Brasil deseja que essa relação seja a melhor possível, sobretudo depois do “bom antecedente” da Cúpula das Américas, em Trinidad e Tobago, “que criou um clima positivo”.

O presidente da Bolívia, Evo Morales, um dos opositores mais ferrenhos do acordo Washington-Caracas, reiterou que considera “impossível recomendar, aceitar que Uribe instale bases militares (americanas) na Colômbia”, pois acredita que elas serão utilizadas pelos Estados Unidos para “conspirar” contra os países da região, “como fizeram em Honduras”. Morales prevê “um duro debate, não apenas por um país (Colômbia), mas pela dignidade e soberania de toda a América do Sul”. O governo boliviano insiste que não há acordo entre os países da região sobre qual posição assumir a respeito do acordo entre Colômbia e EUA, mas defende que as chancelarias poderão “buscar um acordo focado em frear qualquer base militar que haja na América do Sul”.

OEA vai cobrar do Brasil resposta a parentes de vítimas no Araguaia

O Estado de S. Paulo

25/08/2009

Governo responderá a processo por detenção arbitrária, tortura e desaparecimento forçado de 70 pessoas

Ivan Marsiglia e Roldão Arruda

A Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos) encaminhará ao governo brasileiro nos próximos dias um pedido de explicações sobre a demanda apresentada àquela corte por representantes das vítimas e familiares da Guerrilha do Araguaia (1972-1975), denunciando violações aos direitos humanos durante as operações militares na região sul do Estado do Pará. Essa é a primeira vez que uma demanda envolvendo a guerrilha e o desaparecimento de opositores do regime militar é aceita pela Corte Interamericana e remetida ao Brasil, com pedido de explicações. O caso deve começar a ser julgado na corte no primeiro semestre do ano que vem..

O Estado teve acesso ao conteúdo do documento apresentado à corte pelo Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro, Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos de São Paulo e Centro pela Justiça e o Direito Internacional (Cegil). De acordo com o texto, o governo deve ser julgado por detenção arbitrária, tortura e desaparecimento forçado de 70 pessoas, entre membros do Partido Comunista do Brasil (PC do B) e camponeses locais.

As famílias, que há mais de 27 anos interpuseram ações civis na Justiça brasileira a fim de conhecer os fatos e localizar os restos mortais das vítimas, apresentaram a primeira petição à Comissão Interamericana de Direitos Humanos no dia 7 de agosto de 1995.

Após um trâmite que durou mais de dez anos e diante da ausência de respostas por parte das autoridades do País em tempo razoável, em março deste ano a Comissão levou a demanda à corte. Solicitou na ocasião que seja determinada a responsabilidade internacional do Estado brasileiro por violações continuadas aos direitos humanos no País.

"Ter ido à corte é uma vitória. Agora estamos certos de que o caso vai a julgamento internacional", disse Criméia de Almeida, ex-guerrilheira, viúva de André Grabois, que faz parte da lista dos desaparecidos.

O documento com o pedido de explicações deve chegar às autoridades brasileiras até o início da próxima semana. Indiretamente ele questiona a Lei de Anistia, em vigor no Brasil desde 1979, que estaria sendo usada para impedir a apuração dos violações de direitos humanos e a punição dos responsáveis.

Se o Brasil for condenado, poderá ser obrigado a instalar processos penais na Justiça comum contra os acusados de crimes de tortura, sequestro, morte e desaparecimentos de opositores políticos da ditadura militar implantada no País com o golpe de 1964. Os autores da demanda também querem que todas as instituições estatais sejam obrigadas a cooperar na busca por arquivos e registros, civis ou militares, sobre os desaparecidos.

Além do pagamento de indenizações por danos materiais ou imateriais decorrentes das violações cometidas, o texto exige que as autoridades brasileiras ofereçam assistência médica e psicológica gratuita aos familiares e pedem a instalação imediata de uma comissão da verdade, com parâmetros internacionais, para apurar os acontecimentos. Comissões semelhantes que funcionaram no Chile e na Argentina, países que também viveram sob ditaduras militares, acabaram resultando na condenação dos responsáveis por violações de direitos humanos.

Uma vez recebida a demanda da Corte Interamericana, o País terá dois meses para preparar sua defesa. Em seguida, será marcada uma audiência para instrução do processo, que deve ocorrer no início do ano que vem. O Cejil, ONG que atuou auxiliando famílias de vítimas para que entrem na OEA na Argentina, no Chile e no Peru, calcula que uma sentença - condenando o Brasil - saia até o final de 2010.

Caso seja condenado, o Brasil ainda poderá recorrer à Assembleia Geral da OEA. No momento, encontra-se parada na Supremo Tribunal Federal (STF) uma ação interposta pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) questionando a Lei da Anistia - especialmente a interpretação em vigor de que ela teria beneficiado os autores das violações dos direitos humanos.

Obama manterá envio de suspeitos ao exterior

O Estado de S. Paulo

25/08/2009

NYT

O presidente americano, Barack Obama, manterá a política do governo George W. Bush de enviar suspeitos de terrorismo para ser interrogados em outros países. Segundo fontes da Casa Branca, que falaram ao jornal ?The New York Times? sob condição de anonimato, para evitar que os casos de tortura se repitam, Obama deve apenas enviar observadores para monitorar o tratamento dado a esses prisioneiros.

O Departamento de Estado também deve ter um poder maior para fiscalizar esses interrogatórios. "O objetivo é impedir que esses indivíduos sejam torturados se forem mandados ao exterior", afirmou um funcionário do governo, acrescentando que nenhum prisioneiro deve ser enviado a países conhecidos pela conduta abusiva de seus agentes de segurança em interrogatórios.

Organizações de defesa dos direitos humanos, porém, condenaram a decisão. Para elas, essas "garantias diplomáticas" - as visitas de funcionários do governos dos EUA e diplomatas americanos e de países aliados - já eram previstas na administração anterior e são insuficientes para impedir atos de tortura.

"É desapontador que o governo Obama dê continuidade à administração Bush nessas práticas", disse Amrit Singh, da União Pelas Liberdades Civis Americanas. Ela mencionou o caso de Maher Arar, um sírio com cidadania canadense enviado em 2002 à Síria. Damasco havia se comprometido a não torturar prisioneiros, mas, mesmo assim, Arar foi açoitado com cabos elétricos. Um diplomata canadense visitou-o na prisão, mas ele teve medo de reportar os abusos.

Justiça dos EUA investigará abusos cometidos pela CIA

O Estado de S. Paulo

25/08/2009

Decisão é anunciada no dia da divulgação de relatório de 2004 que atesta tortura de suspeitos de terrorismo

O secretário de Justiça dos EUA, Eric Holder, nomeou ontem o promotor federal John Durham para investigar os abusos cometidos por agentes da CIA contra prisioneiros suspeitos de terrorismo. A decisão foi anunciada depois que o comitê de ética do Departamento de Justiça recomendou a Holder a reabertura de dezenas de casos de abusos envolvendo detentos no Iraque e no Afeganistão.

A decisão de investigar a CIA representa uma ruptura da política do governo do ex-presidente George W. Bush, que fez de tudo para manter os casos em segredo. A iniciativa pode resultar em processos criminais contra funcionários do governo dos EUA por abusos contra suspeitos de terrorismo. Durham, o nome escolhido por Holder, tem fama de ser implacável nos casos que presidiu.

Até o momento, foi a ação mais dura da Justiça americana contra uma prática comum no governo anterior. A iniciativa foi anunciada no mesmo dia da divulgação de um relatório que contém detalhes de abusos e torturas da CIA e de agentes contratados pelo governo americano (mais informações nesta página).

A coincidência levou muitos analistas a acreditar que a publicação do relatório, por ordem judicial, tenha sido o estopim para a decisão do Departamento de Justiça de investigar a CIA. O relatório divulgado ontem foi elaborado pelo inspetor-geral da CIA, John Helgerson, em 2004, mas permaneceu engavetado por ordem de Bush.

O governo do presidente Barack Obama esquivou-se o quanto pôde do assunto. No ano passado, chegou a divulgar trechos do relatório após uma extensa censura que excluiu diversas partes do texto original. Na ocasião, Obama disse que não queria ficar "atolado" em alegações de abusos cometidos pelo governo anterior.

Mas organizações de defesa dos direitos humanos e a esquerda do Partido Democrata continuaram a lutar pela divulgação do conteúdo do documento. Até que a União Pelas Liberdades Civis Americanas (ACLU, na sigla em inglês) obteve na Justiça a liberação do relatório, que ocorreu ontem.

Como Obama não se pronunciou publicamente sobre o assunto ontem, não se sabe o quanto a Casa Branca está envolvida na decisão do Departamento de Justiça, que tem autorização para agir de forma independente do Executivo.

Por isso, alguns especialistas acreditam que a decisão de Holder de investigar agentes da CIA e funcionários terceirizados parece ter colocado o Departamento de Justiça em rota de colisão com a Casa Branca.

Bill Burton, porta-voz do governo, disse ontem que a decisão foi uma "prerrogativa" exclusiva de Holder. Apesar de não esconder o desconforto, Burton reafirmou que o presidente "mantinha sua confiança" na capacidade de discernimento do secretário de Justiça.

Holder, segundo fontes do Departamento de Justiça, tem consciência da dor de cabeça que as investigações podem causar ao governo, mas chegou à conclusão de que, diante das evidências, não tinha outra saída a não ser investigar se houve ou não violação da lei.

INTERROGATÓRIOS

Ontem, o jornal The Washington Post revelou que Obama assinou uma ordem criando uma unidade especial para interrogatórios, que se reportará diretamente à Casa Branca.

Um porta-voz de Obama confirmou a informação. Segundo o jornal, a nova unidade, batizada de Grupo de Interrogatório de Prisioneiros de Alto Valor (HIG, na sigla em inglês), foi criada na semana passada.

A equipe será formada por especialistas da área jurídica, funcionários do governo e da comunidade de inteligência. O grupo ficará submetido ao FBI e será fiscalizado pelo Conselho de Segurança Nacional - tirando a função que era da CIA.

CRUZ VERMELHA

Em outra tentativa de se diferenciar de Bush, o governo de Obama passou a informar ao Comitê Internacional da Cruz Vermelha os nomes dos insurgentes mantidos presos em locais secretos no Iraque e no Afeganistão. A iniciativa inédita começou há um mês, segundo o New York Times.

Relatório relaciona mortes a golpistas em Honduras

Folha de S. Paulo

25/08/2009

Sérgio Dávila, de Washington
Comissão da OEA condena o emprego de armas de fogo contra manifestantes

No dia em que comitiva de chanceleres desembarca em Tegucigalpa, CIDH critica também o cerceamento da mídia favorável a Zelaya

No mesmo dia em que uma missão de chanceleres de países-membros da OEA (Organização dos Estados Americanos) desembarcou em Honduras para persuadir o regime golpista a recuar, uma comissão ligada à entidade soltou relatório em que faz acusações graves sobre a situação dos direitos humanos naquele país após a derrubada do presidente Manuel Zelaya, no último 28 de junho.
Entre os vários desmandos relatados pela Comissão Inter-Americana de Direitos Humanos (CIDH), o principal é o de que agentes do governo golpista, comandado por Roberto Micheletti, podem estar ligados a mortes de opositores.
Ainda de acordo com o levantamento preliminar, divulgado ontem, há em Honduras hoje o uso desproporcional de força pública, detenções arbitrárias e controle da informação.
"Particularmente sério é o fato de que quatro pessoas morreram e várias outras foram feridas por armas de fogo", afirma o texto da entidade, que funciona de maneira autônoma e cujos membros são eleitos em assembleia da OEA.
"Uma investigação exaustiva dessas mortes é necessária, considerando que a comissão recebeu informação que as pode ligar a agentes do Estado."
Os seis enviados da CIDH identificaram ainda repressão a protestos por meio de bloqueios militares, implantação arbitrária de toques de recolher, detenção de milhares de pessoas e tratamento cruel, desumano e degradante dos detidos. A visita aconteceu entre 17 e 21 de agosto -e confirma acusações que vinham sendo feitas pelos aliados do presidente deposto e negadas pelo regime golpista.
O levantamento enfraquece ainda mais diante da opinião pública mundial o regime que se instalou após o golpe de Estado, que derrubou Zelaya e colocou Micheletti no poder. Por fim, coloca a Casa Branca e o Departamento de Estado obamistas em uma encruzilhada, já que o governo americano vem hesitando em tomar medidas mais duras contra o regime instalado após a queda de Zelaya.
A CIDH diz ainda que o controle de informação vem sendo exercido por ataques e ameaças a jornalistas, além do fechamento temporário de órgãos de mídia ligados a Zelaya ou que se opõem ao golpe, da ocupação militar de suas instalações, do bloqueio da transmissão dos sinais de emissoras pagas críticas ao regime e do que chama de "uso seletivo de cortes de eletricidade" dessas empresas.
Exemplo vivo do que fala o relatório, no domingo homens encapuzados tiraram do ar a rádio Globo e o Canal 36, ambas ligadas a Zelaya, no momento em que transmitiam show promovido pela Frente Nacional de Resistência contra o Golpe.

OEA em Tegucigalpa
Ainda ontem, a comissão de chanceleres, liderada pelo secretário-geral da OEA, José Miguel Insulza, chegou a Tegucigalpa, num avião cedido pelo governo dos EUA, para negociar com o regime golpista a aceitação do ponto principal do plano proposto pelo costa-riquenho Óscar Arias, que é a volta de Zelaya ao poder.
É pouco provável que consigam. A volta de Zelaya é "inegociável", reiterou a vice-chanceler do governo golpista, Martha Lorena Alvarado.
A restituição, segundo a OEA, é a única forma de legitimar a eleição presidencial marcada para 29 de novembro.

domingo, 23 de agosto de 2009

Democracia e internet

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Folha de São Paulo, domingo, 23 de agosto de 2009




Comunidades falsificadas
Filósofo espanhol diz que a utopia de democracia direta e igualdade total na internet é mentirosa e ameaça minar as práticas de representação e participação políticas reais



Com a emergência de gigantescas redes sociais virtuais, como o Facebook, a internet configura a sua utopia máxima: todos somos iguais. E, se somos todos iguais, não precisamos mais de eleições, pois não precisamos ser representados. Todos nos representamos no espaço democrático da internet.
O raciocínio é tentador, mas, para o filósofo espanhol Jesús Martín-Barbero, é mentiroso -e temerário. "Nunca fomos nem seremos iguais", ele diz, e na vida cotidiana continuaremos dependendo de mediações para dar conta da complexidade do mundo, seja a mediação de partidos políticos ou a de associações de cidadãos.
Martín-Barbero vê a internet como um dos fatores de desestabilização do mundo hoje, que não pode ser pensado por disciplinas estanques. Mundo, aliás, tomado pela incerteza e pelo medo, que nos faz sonhar com a relação não mediada das comunidades pré-modernas. O filósofo conversou com a Folha durante visita a São Paulo, na semana passada.




FOLHA - Desde 1987, quando o sr. lançou sua obra de maior repercussão ["Dos Meios às Mediações", ed. UFRJ], até hoje, o que mudou na comunicação e nas ciências sociais?
JESÚS MARTÍN-BARBERO - Estamos em um momento de pensar o conceito de conhecimento como certeza e incerteza. A incerteza intelectual dos modernos se vê hoje atravessada por outra sensação: o medo. A sociedade vive uma espécie de volta ao medo dos pré-modernos, que era o medo da natureza, da insegurança, de uma tormenta, um terremoto. Agora vivemos em uma espécie de mundo que nos atemoriza e desconcerta.
O medo vem, por exemplo, da ecologia: o que vai acontecer com o planeta, o nível do mar vai subir? A natureza voltou a ser um problema hoje, como aos pré-modernos. Depois vem o tema da violência urbana, a insegurança urbana. Por toda cidade que passo, de 20 mil a 20 milhões de habitantes, há esse medo.
Como terceira insegurança, que nos afeta cada vez mais, aparece a vida laboral. Do mundo do trabalho, que foi a grande instituição moderna que deu segurança às pessoas, vamos para um mundo em que o sistema necessita cada vez menos de mão de obra. O mundo do trabalho se desconfigurou como mundo de produção do sentido da vida.

FOLHA - Nesse mundo de incertezas, como se comporta a noção de comunidade? Como ela aparece em redes virtuais como o Facebook?
MARTÍN-BARBERO - Acho que ainda não temos palavras para nomear esse fenômeno. Falamos em rede social, mas o que significa social aí? Apenas uma rede de muita gente. Não necessariamente em sociedade. Há diferenças entre o que foi a comunidade pré-moderna e o que foi o conceito de sociedade moderna.
A comunidade era orgânica, havia muitas ligações entre os seus membros, religiosas, laborais. Renato Ortiz [sociólogo e professor na Universidade Estadual de Campinas] faz uma crítica muito bem feita a um livro famoso de [Benedict] Anderson, que diz que a nação é como uma comunidade imaginada ["Comunidades Imaginadas", ed. Companhia das Letras], principalmente por jornais e a literatura nacional.
É verdade, são fundamentais para a criação da ideia de nação. Mas Renato Ortiz diz que há muito de verdade e muito de mentira nisso. O que acontece é que, quando a sociedade moderna se viu realmente configurada pelo Estado, pela burocracia do Estado, começou a sonhar novamente com a comunidade. Era uma comunidade imaginada no sentido de querer ter algo de comunidade, e não só de sociedade anônima.
Falar de comunidade para falar da nação moderna é complicado, porque se romperam todos os laços da comunidade pré-moderna. Eu diria que há aí um ponto importante, considerando que no conceito de comunidade há sempre a tentação de devolver-nos a uma certa relação não mediada, presencial. Essa é um pouco a utopia da internet.

FOLHA - Qual utopia?
MARTÍN-BARBERO - A utopia da internet é que já não necessitamos ser representados, a democracia é de todos, somos todos iguais. Mentira. Nunca fomos nem somos nem seremos iguais. E portanto a democracia de todos é mentira. Seguimos necessitando de mediações de representação das diferentes dimensões da vida. Precisamos de partidos políticos ou de uma associação de pais em um colégio, por exemplo.

FOLHA - As comunidades virtuais da atualidade têm pouco das comunidades originais, então?
MARTÍN-BARBERO - Quando começamos a falar de comunidades de leitores, de espectadores de novela, estamos falando de algo que é certo. Uma comunidade formada por gente que gosta do mesmo em um mesmo momento. Se a energia elétrica acaba, toda essa gente cai.
É uma comunidade invisível, mas é real, tão real que é sondável, podemos pesquisá-la e ver como é heterogênea. Comunidade não é homogeneidade. Nesse sentido é muito difícil proibir o uso da expressão "comunidade" para o Facebook. Mas o que me ocorre ao usarmos o termo "comunidade" para esses sites é que nunca a sociedade moderna foi tão distinta da comunidade originária.
O sentido do que entendemos por sociedade mudou. Veja os vizinhos, que eram uma forma de sobrevivência da velha comunidade na sociedade moderna. Hoje, nos apartamentos, ninguém sabe nada do outro. Outra chave: o parentesco. A família extensa sumiu. Hoje, uma família é um casal. O que temos chamado de sociedade está mudando. Estamos numa situação em que o velho morreu e o novo não tem figura ainda, que é a ideia de crise de [Antonio] Gramsci.

FOLHA - A proposta de sites como o Facebook não é exatamente de fazer essa reaproximação?
MARTÍN-BARBERO - Creio que há pessoas no Facebook que, pela primeira vez em suas vidas, se sentem em sociedade. É uma questão importante, mas não podemos esquecer da maneira como nos relacionamos com o Facebook.
Um inglês que passa boa parte de sua vida só, em um pub, com sua grande cerveja, desfruta muito desse modo de vida. Nós, latinos, desfrutamos mais estando juntos.
Evidentemente a relação com o Facebook é distinta. O site é real, mas a maneira como nos relacionamos, como o usamos, é muito distinta. O Facebook não nos iguala. Nos põe em contato, mas nada mais.

FOLHA - De que maneira essas questões devem transformar os meios de comunicação?
MARTÍN-BARBERO - Não sei para onde vamos, mas em muito poucos anos a televisão não terá nada a ver com o que temos hoje. A televisão por programação horária é herdeira do rádio, que foi o primeiro meio que começou a nos organizar a vida cotidiana. Na Idade Média, o campanário era que dizia qual era a hora de levantar, de comer, de trabalhar, de dormir. A rádio foi isso.
A rádio nos foi pautando a vida cotidiana. O noticiário, a radionovela, os espaços de publicidade... Essa relação que os meios tiveram com a vida cotidiana, organizada em função do tempo, a manhã, a tarde, a noite, o fim de semana, as férias, isso vai acabar. Teremos uma oferta de conteúdos. A internet vai reconfigurar a TV imitadora da rádio, a rádio imitadora da imprensa escrita... Creio que vamos para uma mudança muito profunda, porque o que entra em crise é o papel de organização da temporalidade.

FOLHA - A ascensão da internet e da oferta de informação por conteúdos suscita outra questão, ligada à formação do cidadão. Não corremos o risco de que um fã de séries de TV, por exemplo, só busque notícias sobre o tema, alienando-se do que acontece em seu país?
MARTÍN-BARBERO - Antigamente, todos líamos, escutávamos e víamos o mesmo. Isso para mim era muito importante. De certa forma, obrigava que os ricos se informassem do que gostavam os pobres -sempre defendi isso como um aspecto de formação de nação.
Quando lançaram os primeiros aparelhos de gravação de vídeo, disseram-me que isso era uma libertação: as pessoas poderiam selecionar conteúdos.
Mas esse debate já não é possível hoje. Passamos para um entorno comunicativo, as mudanças não são pontuais como antes. A questão não é se eu abro ou não abro o correio. Não quero ser catastrofista, mas o tanto que a internet nos permite ver é proporcional ao tanto que sou visto. Em quanto mais páginas entro, mais gente me vê. É outra relação.
Temos acesso a tantas coisas e tantas línguas que já não sabemos o que queremos. Hoje há tanta informação que é muito difícil saber o que é importante. Mas o problema para mim não é o que vão fazer os meios, mas o que fará o sistema educacional para formar pessoas com capacidade de serem interlocutoras desse entorno; não de um jornal, uma rádio, uma TV, mas desse entorno de informação em que tudo está mesclado. Há muitas coisas a repensar radicalmente.

Interpretando Kant

Entrevista: Filósofo e ex-ministro da Educação da França guia a leitura de quem queira mergulhar na obra do pensador que pautou o debate de ideias dos últimos 200 anosKant pelas mãos de Ferry

Por Diego Viana, para o Valor, de Paris
21/08/2009

Luc Ferry: "A filosofia ainda tem o dever de responder às três questões fundamentais da teoria, da ética e da sabedoria, isto é, do sentido da vida"
O pensamento de Immanuel Kant, o "mestre de Königsberg", está no centro da filosofia moderna. Suas três maiores obras, "Crítica da Razão Pura", "Crítica da Razão Prática" e "Crítica do Julgamento", publicadas entre 1781 e 1790, marcaram uma ruptura definitiva com a metafísica clássica, herdada dos gregos, e inauguraram a era do humanismo secular. Em pleno Século das Luzes, os escritos éticos, políticos e estéticos de Kant pautaram em grande medida o debate de ideias dos últimos 200 anos.

A leitura do filósofo alemão não é fácil, mas Luc Ferry, um dos principais disseminadores da filosofia para o público geral na França, assumiu a tarefa de explicar suas principais ideias no livro "Kant: uma Leitura das Três Críticas" (Difel). Embora escreva para leigos, Ferry faz questão de não simplificar nem banalizar o pensamento que interpreta. Ao contrário, seu objetivo é guiar a leitura de quem queira mergulhar por inteiro na obra de Kant. Já na introdução, ele adverte: "É impossível entrar na filosofia sem tomar o tempo de entender em profundidade ao menos um grande filósofo".

Conhecido por suas críticas ao pós-modernismo, às correntes mais ingênuas do pensamento ecológico e à globalização sem controle, Luc Ferry é atuante em política como membro da UMP, partido do governo francês. Ele foi ministro da Educação entre 2002 e 2004. Nesta entrevista, Ferry comenta a política da globalização, os paradoxos da modernidade e a promiscuidade entre a arte contemporânea e o mercado.

Valor: Ainda se pode conceber uma filosofia que produza um sistema como o de Kant? O que pode a filosofia hoje?

Reuters

Protesto contra a caça de animais na Europa: para Ferry, ecologistas põem o dedo numa ferida maior que a questão ambiental, algo que chama de "privação democrática"
Luc Ferry: A forma do "grande sistema" é prisioneira de uma ideia herdada da teologia, segundo a qual a filosofia deve totalizar todos os saberes sob a égide de um princípio único. Ninguém pode mais pensar assim. Isso dito, a filosofia ainda tem o dever de responder às três questões fundamentais da teoria, da ética e da sabedoria, isto é, do sentido da vida. Em outras palavras: o que é o conhecimento; como definir o bem e o mal, o justo e o injusto; e como pensar o sentido de nossa vida. Como, em particular, atingir uma serenidade que passa sempre, ontem como hoje, por uma vitória sobre os medos, principalmente o medo da morte, que nos impede de levar uma boa vida. Nesse sentido, o ideal da "grande filosofia" ainda é atual, mesmo se não assume mais a forma metafísica e ilusória do "sistema".

Valor: Kant transpõe a revolução copernicana para a filosofia. De lá para cá, tivemos outras revoluções científicas, como a mecânica quântica e a cibernética. Como elas afetam o kantismo?

Ferry: Articular a filosofia de Kant com a ciência moderna é perfeitamente natural. O mesmo acontece com Newton, que constitui uma parte da física moderna. É preciso compreender as revoluções newtoniana e kantiana por meio do terremoto intelectual e moral que representa a passagem da cosmologia grega para a física moderna, a ruptura abissal que separa o "mundo fechado" dos antigos e o "universo infinito" de Galileu e Newton. Toda a filosofia de Kant tem um único objetivo: construir o novo edifício do humanismo moderno por cima das ruínas de uma ordem cósmica esgotada. Com a ideia de cosmos, os gregos consideravam o universo como um ser ordenado e animado, cujos órgãos foram concebidos em harmonia com o conjunto. Era isso que a física dos antigos conclamava os humanos a reconhecer e sua ética lhes recomendava imitar. Depois da revolução científica, o universo é um caos infinito e desencantado, sem outro valor senão o que lhe atribuímos. É um campo de forças que se organizam, claro, mas em choque, sem harmonia nem significado. É daí que parte Kant: se o mundo é um caos, um tecido conflituoso de forças, passa a ser "do exterior", pela força do espírito, que o sábio reintroduz a ordem e o sentido na realidade. Essa será a tarefa da ciência moderna. Ela não reside mais na contemplação, que os gregos chamavam de "teoria", mas numa elaboração ativa de leis que deem coerência a um universo desencantado.

Valor: O último capítulo trata da ideia de racionalização política no idealismo alemão em face da Revolução Francesa. Hoje, a era das revoluções está superada, mas no lugar do realismo o que se vê é desilusão com a política. Por quê?

Ferry: A ideia revolucionária morreu, desqualificada para sempre pelo fracasso da URSS e demais regimes totalitários. Isso dito, é verdade que a globalização liberal suscita grunhidos de ódio, agrupados em torno da ideia multiforme do altermundialismo. Nos anos 30, na Europa, o mundo liberal provocava dois tipos de crítica: as que evocavam a restauração de um passado perdido e as que imaginavam um "futuro radiante". Umas desembocaram no fascismo; as outras, no sovietismo. Esses modelos de referência foram desacreditados pela história. Porém, não sobrou muito mais que o gesto da crítica, depois que os modelos positivos, que podiam lhe conferir um sentido "construtivo", desapareceram. Teremos de aprender a fazer uma "crítica interna" ao mundo democrático-liberal. Por exemplo, exigir que esse modelo cumpra as promessas de liberdade e igualdade, bastante negligenciadas. Daqui por diante, a crítica interna será a única realmente subversiva.

Valor: O pós-modernismo, que o sr. critica em "O Pensamento 68", está morto? O que sobra depois que tudo foi relativizado?

Ferry: Sim, está morto e enterrado, não inspira mais nada, nem mesmo a crítica. Aliás, toda a história das vanguardas e da "boemia", sobre a qual estou escrevendo um novo livro, repousa sobre um paradoxo. Na fachada, eram "rebeldes" e "antiburgueses". Na verdade, encorajaram a emergência da sociedade de consumo. De fato, era preciso que os valores tradicionais fossem desconstruídos por jovens rebeldes para que os velhos burgueses pudessem enriquecer. Por quê? Isso ficou claro hoje: se minhas filhas tivessem os valores de minha bisavó, elas não comprariam três celulares por ano! Era preciso derrubar as tradições para que o consumo vencesse. Não é por acaso que, hoje, as corporações são os maiores promotores da arte contemporânea!

Valor: O que a estética de Kant diria sobre a arte contemporânea?

Ferry: A arte se afastou explicitamente da ideia de beleza que Kant tentava pensar. Kandinsky e Schoenberg, em 1910, repetem sem cessar que é uma noção "ultrapassada" e derrisória. A estética de Kant é dominada pela questão, na minha opinião apaixonante, de definir os critérios do belo. Kant e Hume se perguntam, por exemplo, como podemos dizer que "o gosto é subjetivo", se há um consenso tão vasto sobre as "grandes obras", mais até do que na ciência. Não se ouve muito que "Mozart é uma porcaria" ou "Vermeer é muito feio". Já a arte contemporânea se tornou uma arte "de mercado". É comprada pelos grandes burgueses, fascinados com a lógica da inovação pela inovação, que pertencia aos artistas "boêmios", mas virou o pão de cada dia desses capitães da indústria. O executivo que vende celulares sabe que, se não inovar constantemente, como Duchamp ou Picasso, está fora do mercado. A arte contemporânea não se interessa pela ideia de beleza. Os empresários tampouco. A originalidade a qualquer preço é mais importante. Nisso estão de acordo com nossa época de globalização liberal.

Valor: As últimas eleições europeias consagraram os partidos ecologistas. A ecologia pode ser um programa verdadeiramente político?

Ferry: Não. Mas ela põe o dedo numa ferida maior, não tanto a questão ambiental, mas aquilo que chamo de "privação democrática". No universo globalizado, as políticas nacionais são privadas, pouco a pouco, de todos os meios eficazes de ação e reforma. Os altermundialistas se enganam ao acreditar que, atrás dos mercados financeiros, há "peixes grandes", "os poderosos", que, como marionetistas, manipulam às escondidas. Se fosse verdade, seria ótimo: pelo menos, haveria um culpado! Mas isso não passa de uma visão ingênua. O mundo, dominado pelos mercados financeiros, nos escapa e a questão da "governança mundial" é mais importante que nunca. Como retomar as rédeas? Eis a questão central da política moderna e mesmo a única que importa.

O pluralismo politico na Alemanha

Folha de São Paulo de 23 de 2009

Partido Pirata da Alemanha debuta em eleição doméstica
Sigla tenta emplacar deputado no Parlamento pregando reforma do sistema de patentes

Espelhado em caso sueco de sucesso, grupo alemão quer tecnologia para aumentar acesso à informação; pleito ocorre no fim de setembro



Marcadas para o dia 27 de setembro, as eleições para o Bundestag (o Parlamento federal alemão) terão, pela primeira vez, a participação do Piratenpartei, o Partido Pirata.
Fundada em 2006, a agremiação defende que as possibilidades trazidas pelo desenvolvimento tecnológico sejam usadas de forma a aprimorar o acesso à informação, e não para controlar a vida dos cidadãos.
Suas principais bandeiras são a defesa da privacidade, a livre circulação de cultura e conhecimento, reforma do sistema de patentes, transparência do Estado, gratuidade da educação pública e livre acesso a resultados das pesquisas patrocinadas pelo poder público.
A agenda restrita segue o receituário inaugurado pelo Piratpartiet, da Suécia, que nas últimas eleições para o Parlamento Europeu, em junho, elegeu dois representantes.
O partido alemão também participou da disputa, mas obteve só 0,9% dos votos, insuficiente para garantir ingresso na instituição. Hoje, tem apenas um deputado no Bundestag, Jörg Tauss, que virou pirata após 38 anos no Partido Social Democrata, pelo qual se elegeu.
Em entrevista por e-mail à Folha, o presidente do Piratenpartei, Jens Seipenbusch, disse acreditar estar ante uma tendência mundial. "Outros nove países europeus já têm partidos piratas registrados", diz.
Para ele, é possível comparar a criação dessas siglas com o surgimento dos verdes, a partir da década de 70. "No início, aquele partido também se voltou contra as estruturas dominantes. Além disso, tinha um programa que se limitava a alguns temas específicos."
Para eleger ao menos um de seus 14 candidatos em setembro, o Piratenpartei precisará de um mínimo de 5% dos votos. Para participar do pleito, o partido promoveu campanha para angariar até 2.000 assinaturas em cada Estado onde pretendia concorrer. O esforço teve êxito em 15 dos 16 Estados.
Seipenbusch considera que, à medida em que o país avançar rumo à sociedade da informação, a agenda do partido ganhará adeptos. "Os temas que abordamos são importantes para todos, sejam jovens ou velhos."
Como exemplo, cita medidas que, diz, ameaçam a liberdade e a privacidade dos alemães: o armazenamento de informações sobre e-mails e ligações, o uso de cartões de saúde com registro de histórico médico e o rastreamento de computadores.
Além de tentar atuar sobre essas questões, o partido tenta provocar mudanças nas leis de direitos autorais e de patentes.
Para os piratas, a livre reprodução de obras disponíveis digitalmente é uma realidade que deve ser reconhecida e aproveitada. "Já há conceitos comerciais que fazem da gratuidade uma vantagem para o autor."
No caso das patentes, a posição do partido é que só possam ser protegidas invenções técnicas. "Rejeitamos patentes de seres vivos e genes, porque não são invenções. O mesmo vale para ideias comerciais e softwares. Os últimos já estão protegidos por direitos autorais."
O presidente reconhece, porém, que muitos aspectos não podem ser alterados nacionalmente. Por isso, comemora o fortalecimento dos piratas em outros países, o que pode dar espaço à Europa para deixar acordos de propriedade intelectual. "Quando houver piratas suficientes no Parlamento [Europeu], convênios internacionais poderão ser alterados."

O Brasil e a reforma da ONU

Folha de São Paulo 22 de agosto de 2009

Falta de consenso atrapalha pretensão brasileira na ONU
Especialistas debatem no Rio reforma da organização e destacam desafios ao objetivo de país de entrar no Conselho de Segurança

A questão importante é se Brasil poderia ter papel diferenciado no órgão, e não só credenciais do país para o ingresso, diz professora



A falta de consenso interno sobre a importância de o Brasil se tornar membro permanente do Conselho de Segurança (CS) da ONU é um empecilho à realização dessa meta, já bastante difícil por depender de uma reforma à qual as cinco potências atuais resistem e sobre a qual há divergências entre os demais países.
Esse foi um dos pontos ressaltados por especialistas que participaram ontem de seminário sobre o tema promovido pela Fundação Alexandre de Gusmão, ligada ao Ministério das Relações Exteriores, e que atraiu mais de cem pessoas ao Palácio do Itamaraty (Rio).
"No Brasil há um defeito de autoconfiança que temos de remediar. Todas as vezes em que o Brasil faz concessão a algum país do Sul isso é interpretado como campanha para o CS. O país não precisa disso, já tem os votos da Assembleia Geral [da ONU]", disse Ronaldo Sardenberg, ex-embaixador do Brasil na ONU e hoje presidente da Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações).
Sardenberg, que atuou no governo de Fernando Henrique Cardoso como secretário de Assuntos Estratégicos e ministro de Ciência e Tecnologia, disse que o "momento de crise" na ordem mundial é propício à discussão da reforma, hoje objeto de negociações entre países e de uma análise formal lentíssima na organização.
Os objetivos das mudanças, acrescentou, seriam tornar o CS "mais legítimo" e provar "a eficiência da democracia" na Assembleia Geral, onde os votos dos 192 países-membros têm o mesmo peso, mas as decisões são simbólicas.
A maioria dos 12 especialistas foi favorável à pretensão brasileira ao CS, mas houve ênfase também nos empecilhos.
"É um processo maquiavélico. A reforma precisa ser aprovada por dois terços da Assembleia Geral e ratificada pelos cinco membros permanentes do CS", disse Antonio Paulo Cachapuz de Medeiros, consultor jurídico do Itamaraty e professor da PUC de Brasília.
Antônio Carlos Peixoto, do Centro Brasileiro de Estudos Latino-Americanos, lembrou que a configuração do CS, ao final da Segunda Guerra, não seguiu critério regional -como se pretende fazer hoje, quando mesmo sul-americanos resistem a apoiar o Brasil. "É fácil constatar que nos vizinhos não é palatável que um país de língua portuguesa tenha se tornado o mais forte nesta parte."

Oposição
A principal voz contra o eventual ingresso foi a do professor de direito da USP Fábio Konder Comparato. Ele defendeu mudança radical na atual ordem baseada nas relações de poder entre Estados e se declarou contra a ideia de membros permanentes e o "cinismo oligárquico" representado pelo CS. "[A entrada do Brasil] mudaria o sistema internacional?", questionou.
Ao comentar a intervenção de Comparato, a professora Maria Regina Soares de Lima, do Iuperj (Instituto Universitário de Pesquisas do Rio), disse que o tema está longe de ser teórico. A ONU, lembrou, é em essência a organização jurídica responsável pelo sistema de segurança coletiva e nela o "soberano", que decide que situações são passíveis de intervenção armada, é o CS.
Por isso, o importante não são apenas as credenciais do Brasil para entrar, mas como, lá dentro, o país poderia se diferenciar das atuais potências. "Não acredito que o sistema fundado pelos EUA vai se reproduzir. A incorporação [de novos membros] vai ressignificar o uso da força."

sábado, 22 de agosto de 2009

A Justiça e a Lei da Anistia

Acerto de contas deve chegar ao fim com a palavra da Justiça

Glenda Mezarobba, para o Valor, de São Paulo
21/08/2009


Os saguões dos aeroportos se transformavam em animados salões de festas na recepção dos exilados, como quando da volta de Herbert de Souza (à direita, ao lado de Teotônio dos Santos e Vânia Bambirra)
Prestes a completar três décadas, a lei 6.683 deve ser submetida, em breve, ao mais rigoroso teste desde que entrou em vigor. Praticamente não questionada, ao longo de todos esses anos, em tribunais de primeira instância, ela agora é colocada à prova não apenas em uma, mas em duas (altas) cortes jurídicas: o Supremo Tribunal Federal e a Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Impensável durante muito tempo, tal confronto legal exprime importantes transformações observadas desde a época da aprovação da lei. Afinal, foi justamente nesse período que a humanidade viu aprimorarem-se, de forma substancial, normas, tratados, instituições e redes de direitos humanos que, junto com os Estados, passaram a constituir uma estrutura internacional voltada à temática e capaz de disseminar a influência de preceitos internacionais de direitos humanos por todo o mundo.

A chegada da anistia a esses dois tribunais também explicita a incompletude do processo de acerto de contas do Estado brasileiro com as vítimas da ditadura militar. Não à toa, na introdução da demanda encaminhada à corte, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos observa que o caso "representa uma oportunidade importante para consolidar a jurisprudência interamericana sobre as leis de anistia em relação aos desaparecimentos forçados e à execução extrajudicial, e a resultante obrigação dos Estados de fazer a sociedade conhecer a verdade, e investigar, processar e sancionar as graves violações de direitos humanos". De forma sintética, para a comissão, o caso possibilita à corte "afirmar a incompatibilidade da Lei de Anistia brasileira com a Convenção, no que se refere a graves violações de direitos humanos".

O caso brasileiro é bastante peculiar. Se são inegáveis as semelhanças entre as ditaduras latino-americanas no contexto da doutrina de "Segurança Nacional", a ponto de países da região terem atuado de forma conjunta na Operação Condor, o processo nacional de acerto de contas guarda características específicas, sobretudo pelo fato de ter principiado com a entrada em vigor da lei 6.683 e, desde então, seguir se desenvolvendo tendo essa legislação como guia.

Ao contrário de democracias como a argentina e a chilena, que sempre viram a anistia como parte integrante de um legado perverso a ser superado, aqui ela não apenas foi reivindicada, mobilizando boa parte da sociedade em torno de sua aprovação, como tramitou no Legislativo, o que se mostraria decisivo para conferir à lei certa legitimidade não observada em suas congêneres e acabaria por contribuir para o aprisionamento do subsequente processo de acerto de contas à lógica imposta pela ditadura, de esquecimento e impunidade (evidenciado, por exemplo, no fato de a comissão de reparações aos perseguidos políticos ter sido designada de "Comissão de Anistia" e na obrigatoriedade de as vítimas, em plena democracia, ingressarem com pedidos de "anistia política", junto ao Estado).

É verdade que, no Brasil, o esforço em prol da anistia esteve sempre associado à luta pela retomada da democracia, pelo reconhecimento e respeito aos direitos humanos, bem como pelo fim da tortura, a libertação dos presos políticos e a elucidação dos casos de desaparecimento. Mas não foi exatamente isso que ocorreu, nem à época da elaboração da lei, nem depois, com o fim do regime militar.

Ainda que de inegável importância para a redemocratização do país e capaz de contribuir para o restabelecimento do estado de direito, como se sabe, a lei foi aprovada exclusivamente nos termos que os militares queriam, mostrando-se mais adequada aos anseios de impunidade dos integrantes do aparato de repressão do que à necessidade de justiça dos perseguidos políticos. Daí a oportunidade, propiciada pela efeméride do próximo dia 28, de se desfazerem construções equivocadas, como, por exemplo, a de que a lei sancionada pelo general Figueiredo seria "ampla, geral e irrestrita".

Ao deixar de fora determinadas manifestações de oposição ao regime, como o que foi classificado como terrorismo, a anistia não pode ser considerada "ampla"; ao excluir alguns enquadrados em atos de exceção, como aqueles que cometeram os chamados "crimes de sangue", também não foi "geral"; e ao restringir os beneficiários em potencial, contemplando apenas os não condenados, tampouco pode ser definida como "irrestrita". Prova disso é que, em 1984, quase duas dezenas de brasileiros ainda cumpriam penas, em liberdade condicional e com direitos políticos suspensos, sendo obrigados a apresentar-se periodicamente à auditoria militar da região em que viviam.

Outro sofisma que não se sustenta, embora repetido à exaustão, é de que seria impossível mexer na Lei de Anistia. Embora não seja imprescindível anulá-la ou revisá-la para que haja justiça às vítimas da ditadura, não apenas é possível modificá-la, como isso já foi feito várias vezes, atestam os artigos 2º, 4º e 5º, revogados no desenvolvimento do processo de acerto de contas, para provável espanto dos que acreditam que retomar esse debate seria revanchismo.

Característico de um discurso extemporâneo, reflexo de uma mentalidade típica da Guerra Fria, o temor da "desforra" não faz sentido quando se sabe, por exemplo, que o que ocorreu no Brasil, a partir do golpe de estado, não foi uma guerra. E que a violência não era natural, tampouco inevitável, sendo a repressão o resultado de uma opção feita pelos militares, interessados que estavam em disseminar o medo e desmobilizar a sociedade.

Assim, é preciso que se diga que, para além do simples exame dos termos da lei 6.683, neste momento a submissão da anistia às cortes representa fato de grande relevância para a história nacional. A partir das decisões dos dois tribunais, e os subsequentes desdobramentos por parte do Estado brasileiro, será possível verificar o grau de adesão do país, e de algumas de suas principais instituições, como o Judiciário e as forças de segurança, ao ideal da democracia.

Quem sabe, finalmente vamos conseguir avançar na implementação de princípios como o da "accountability" legal, em que todos, inclusive o Estado e, especialmente, seus representantes, respondem por seus atos, garantindo que a nenhum grupo de cidadãos será concedido o privilégio da impunidade. E sinalizar, de forma incontestável, que práticas hediondas, como a tortura, não podem - e não serão - mais toleradas.

Glenda Mezarobba é cientista política, pós-doutoranda no IFCH/Unicamp, pesquisadora do Cedec e Ineu e autora do livro "Um Acerto de Contas com o Futuro: A Anistia e Suas Consequências" (Humanitas/Fapesp)