quarta-feira, 29 de abril de 2009

Brasil prorroga importações de pneus usados do Uruguai e do Paraguai

Agência Brasil

29/04/2009

Mylena Fiori, Repórter da Agência Brasil
Brasília - O Brasil continuará importando pneus remoldados do Uruguai e do Paraguai até 30 de junho. As importações deveriam ser suspensas no dia 30 deste mês mas foram prorrogadas pela Câmara de Comércio Exterior (Camex) em reunião ontem (28).

As cotas de 84 mil unidades do Uruguai e de 82 mil do Paraguai haviam sido estabelecidas em janeiro deste ano, atendendo a recomendação da Organização Mundial do Comércio. Em julho de 2008, a Camex havia fixado cota de 168 mil unidades para o Uruguai e de 164 mil para o Paraguai, até o dia 31 de dezembro.

Desde 2003, por força de decisão do Tribunal Arbitral do Mercosul, o Brasil é obrigado a aceitar a importação de pneus remoldados dos vizinhos do Mercosul. No entanto, por questões ambientais e de saúde pública, o Brasil proibiu a importação de pneus remoldados da União Européia. A região questionou a decisão na OMC e, em dezembro de 2007, o órgão autorizou o Brasil a manter a proibição desde que também fossem suspensas as importações do produto dos países do Mercosul.

O governo brasileiro tinha até 17 de dezembro para vetar totalmente a importação de pneus remoldados ou abrir seu mercado às importações de qualquer país. Depois de fracassar nas negociações, com os sócios do Mercosul, de um regime comum para a comercialização de pneus remoldados, o Brasil reduziu as cotas de importações do Uruguai e do Paraguai para dar uma demonstração, à OMC, de um princípio de implementação da decisão do órgão.

A idéia era a de ganhar tempo para que o Supremo Tribunal Federal (STF) proibisse definitivamente a entrada de pneus remoldados no país. A ação, proposta pela Presidência da República, em 2006, foi a plenário no dia 11 de março, mas o ministro Eros Grau pediu vista e não há prazo para que o tema retorne à pauta do Supremo. Com a decisão de hoje da Camex, o governo ganha mais 60 dias e sinaliza ao STF a urgência para que a matéria seja votada.

Clima tenso marca véspera da desocupação de terra indígena

Valor Econômico

29/04/2009

Mauro Zanatta
A proximidade do prazo final para a retirada de fazendeiros, pecuaristas e moradores "não-índios" da terra indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, acirrou os ânimos e criou um clima tenso na região. A federação estadual das associações de moradores promete fechar a BR-174 e ocupar os prédios de Incra, Ibama e Funai na capital Boa Vista se houver retirada à força pela Polícia Federal e a Força Nacional. E parte dos produtores de arroz, liderados pelo gaúcho Paulo César Quartiero, promete resistir e permanecer nas fazendas situadas dentro da terra indígena. A PF informa que controla a delicada situação com 300 agentes na reserva.

O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, em março, pela demarcação em área contínua da reserva de 1,7 milhão de hectares, equivalente a 12 municípios de São Paulo. Os ministros da Corte também determinaram a saída dos "não-índios" da área até amanhã. A decisão colocou em conflito os fazendeiros e dois grupos de índios, um favorável à permanência dos "não-índios" e outra contrário aos "invasores" da terra. A situação piorou desde que o governo federal prometeu, e não cumpriu, indenizar e reassentar quem fosse retirado da reserva. Ainda não há áreas aptas e disponíveis para acolher os "desocupantes" e os valores pagos pela União são contestados na Justiça por produtores, pecuaristas e moradores da área.

Integrante do "Movimento Pró-Roraima", que reúne lideranças e empresários da indústria, comércio e agricultura, a Federação das Associação de Moradores de Roraima (Famer) prepara uma reação. "Se houver a prisão de algum morador dentro da reserva, a gente fecha o acesso ao Estado", avisa o presidente da Famer, Faradilson Mesquita. "Essa é a posição da sociedade roraimense. Não tem como haver essa retirada total até dia 30 (amanhã)". Para ele, o STF agiu de maneira "intransigente" e faltou "bom senso" para evitar o acirramento dos ânimos. "A Justiça tinha que fazer uma reunião com o governo estadual, com as partes interessadas e decidir sobre retirada e reassentamento dentro de um prazo aceitável", afirma.

Mesquita, cujas ligações políticas incluem o líder arrozeiro Quartiero e o deputado Marcio Junqueira (DEM-RR), afirma que o problema mais grave é retirar os pequenos produtores e os moradores "não-índios". "Os grandes produtores já saíram. O Quartiero vai plantar na Guiana. Mas tem o impacto social em pessoas que moram no interior e terão que se adequar para viver na periferia e viver do Bolsa Família", afirma.

Uma comissão do Congresso tentou intermediar uma solução alternativa, como estender o prazo até a colheita do arroz e a retirada total das 10 mil cabeças de gado da terra indígena. Mas o ministro Carlos Ayres Brito, relator do caso no STF, disse ontem que o prazo está mantido. "Se algo de ruim acontecer lá, e tomara que nada aconteça, a culpa será do ministro e do presidente Lula", disse o deputado Marcio Junqueira. A comissão deve voltar hoje a Roraima para acompanhar as ações de retirada da PF.

Principal opositor da retirada, Paulo César Quartiero diz que resistirá. "Vou ficar na fazenda, esperar a polícia chegar e me levar preso. Só saio de lá dessa forma", promete o ex-prefeito de Pacaraima, eleito pelo DEM. "E o pior é que até agora não apareceu ninguém para nos notificar". Ele informa ter retirado "100 carretas" com equipamentos, insumos, gado e material de construção de suas duas fazendas na reserva. "E ainda falta metade do gado", afirma. "Esse prazo é inviável, inclusive pela colheita do arroz e a retirada do gado", reclama. Quartiero, que já foi preso pela PF em um episódio de confronto com os índios, diz que o governo não cumpriu sua parte. "Nada foi feito. E não tem para onde ir porque o governo não indenizou e não deu outra área", afirmou. Segundo ele, o Ibama o multou ontem em R$ 20,5 milhões por danos ambientais na Fazenda Providência. Antes, ela já tinha sido multado em R$ 36 milhões. "Eles avaliaram meu arroz em R$ 900 mil, mas vale pelo menos R$ 3 milhões. É o roubo legalizado."

O Brasil e seu futuro

Jornal do Brasil

29/04/2009

Mauro Santayana

No ‘Ensaio para uma teoria do Brasil’, publicado em 1966 – e agora reproduzido em livro (Comunidade brasileira e outros ensaios, Editora da Fundação Alexandre de Gusmão, 2009), o filósofo Agostinho da Silva fez correção dialética à ideia de que o Brasil é o país do futuro. O pensador português, que aqui viveu muitos anos, mostra que a profecia antiga partia da suposição de que esse futuro seria atingir os módulos de civilização dos países ricos e centrais. Agostinho pensava o contrário. Já então, ele entendia que a civilização europeia, com sua projeção atlântica, entrara em decadência. O Brasil é, sim, o país do futuro, mas do futuro que a sua sociedade criará, com liberdade, tolerância e fraternidade.

"O que nos interessa, agora, é realmente o problema do Brasil e da sua capacidade de liderar o futuro humano, quando se desembaraçar de tudo quanto lhe foi inútil na educação europeia e exercer, com o esplendor e a vigorosa força de criação que pode demonstrar, as suas capacidades de simpatia humana, de imaginação artística, de sincretismo religioso, de calma aceitação do destino, da inteligência psicológica, de ironia, de apetência de viver, de sentido da contemplação e do tempo" – escreveu há 43 anos. Mesmo sob o látego do golpe militar, essas qualidades plurais do povo brasileiro eram evidentes. Esperava-se – e Agostinho também – que a arbitrariedade seria passageira, e o país retornaria logo à normalidade. Não poderia imaginar que, ao durar tanto, a ditadura deixaria sequelas terríveis na alma nacional.

Embora com todas as dificuldades que enfrentamos, o Brasil parece voltar a ser o país do futuro, não o futuro que então, e aqui, se imaginava. O texto de Agostinho é mais atual do que antes. Nós nos desviamos de nosso destino quando deixamos de inventá-lo. O culto à Europa e aos Estados Unidos, que teve o seu momento mais caricatural na passagem do século 19 para o 20, e se exacerbou grotescamente com o neoliberalismo, vem resistindo à lógica. Passamos a importar todos os modelos de fora, dos automóveis de luxo aos processos de administração pública, neles incluídas as leis, do sistema universitário às crises bancárias, da euforia dos cartões de crédito ao consumo de drogas.

Estamos diante da grande oportunidade de encontrar caminho próprio. O conceito do Brasil cresce no mundo, talvez porque seja, no imaginário da inteligência, o terreno – físico e espiritual – destinado a nova revolução histórica. É certo que, para isso, ele está sendo obrigado a fortalecer sua economia. Mas há, além do crafty power, com que a Newsweek o qualificou em matéria de capa, outras condições alentadoras. O Brasil, com sua biodiversidade, é o mais importante espaço para as pesquisas que contenham o aquecimento global e permitam também o usufruto da natureza sem lhe causar dano. Para isso, os transgênicos devem ser contidos a tempo. A Comissão Técnica de Bio-Segurança, ao permiti-los, está na contramão da lucidez.

A expressão maior da soberania de um povo é a independência mental. Não podemos, a pretexto de que já se inventou a roda, deixar de buscar outros meios de deslocamento. Somos chamados a ousar, se queremos aproveitar a oportunidade histórica. Ousar na reinvenção do Estado, nas pesquisas científicas e na criação de novos modos de convivência social, que sejam solidários e dinâmicos. Chegou o momento de romper com esse modelo de civilização que já se esgotou na História. Os países que sofreram a opressão do sistema, se souberem unir-se, poderão mudar o mundo. Nossa diplomacia, ao respeitar a autodeterminação dos outros, conquista amigos e não causa ressentimentos. A Espanha, orgulhosa de seu passado, tem sido muito arrogante, tratando com desprezo não só os viajantes da América Latina como os governantes hispano-americanos, como foi o caso de Duhalde, da Argentina, e Chávez, da Venezuela. Hoje, se esfalfa, buscando o apoio de nosso continente para ter assento no G-20, embora sem credenciais econômicas para tanto.

O passado é uma referência, mas não pode ser fardo a ser arrastado na escalada do tempo. Apesar do negativismo de alguns, o Brasil está em seu grande momento, e não pode perdê-lo. Daí a importância da reflexão de Agostinho da Silva: para fazer o futuro, devemos inventá-lo, com a alegria, o espírito universal de solidariedade, a inteligência criadora e a necessária consciência de que todos os brasileiros têm direito aos mesmos benefícios da civilização.

Brasil, Mercosul e sistema internacional

Jornal do Brasil

29/04/2009

José Luiz Niemeyer
ECONOMISTA

Parte-se neste artigo de duas considerações – uma conjuntural e a outra mais estrutural –, que podem não ser complementares: 1) o Brasil exerce uma liderança incontestável no Mercosul; 2) o Brasil ampliou o foco de sua agenda internacional.

Nos últimos anos, o país se estabilizou, modernizou-se, se internacionalizou e ganhou relevância.

O início dos anos 90 foi um marco deste processo. Inclusive com a criação do próprio Mercosul.

A questão que se coloca é que o Brasil, hoje, busca um novo horizonte nas suas relações internacionais.

Busca participar de outros processos; com outros agentes, estatais e não estatais; e, definitivamente, possui outros objetivos e defende outro tipo de interesse.

O interesse brasileiro na seara da política externa é, hoje, decididamente, de perfil sistêmico.

Por exemplo: a nossa relação com a Argentina continua estratégica. Seja dentro de um Mercosul concebido como uma União Aduaneira "imperfeita", seja nas questões sul-americanas em geral; todavia esta relação estratégica deve ser relativizada a partir das mudanças que se procederam nos últimos anos e que alteraram a percepção e a base de projeção dos interesses do país no campo internacional.

O Mercosul continua fundamentalmente concebido como um processo de integração inter-estatal em muito liderado pela posição destacada do Brasil na América do Sul; todavia a agenda internacional do país não deve ser ajustada a partir da agenda do Mercosul.

A diplomacia e a organização da política externa dependem de tempo e de recursos a serem alocados. Estes não são infinitos. Os governos que se sucedem têm que administrar as questões do Estado brasileiro; mas não haverá muita autonomia para decisões lentas demais e para ações ambíguas e/ou fracas.

A imagem do país no mundo é outra. As responsabilidades serão outras também, e cada vez mais de caráter sistêmico.

A energia despedida nas questões que envolvem o Mercosul deve ser pautada pela gama de outros projetos e processos mais sistêmicos e já em curso.

A harmonia entre objetivos, meios e valores é fundamental para a consecução de uma política de Estado.

Quando os objetivos se sofisticam mantém-se os valores – soberania, cooperação, paz e etc.; mas os meios devem ser redimensionados e alocados para a nova realidade que se apresenta.

Desta feita, o "acordo Mercosul" não deixa de ser um "meio" que terá quer ser tratado em conjunto e em paralelo com outros processos externos.

O Brasil de Obama

Jornal do Brasil

29/04/2009

Candido Mendes
Realizar-se-á no Brasil, em abril de 2010, o próximo Encontro Mundial da Aliança das Civilizações, das Nações Unidas. É a terceira etapa deste projeto, tão fascinante quanto ambicioso, da Espanha e da Turquia, de buscar o diálogo entre os protagonistas viscerais de um mundo que, após o 11 de Setembro, corria no governo Bush ao confronto das culturas e ao medo internacional sem retorno.

O júbilo com que foi recebida, em Istambul, a candidatura brasileira traduzia a visão dessas novas estratégias, de possível convívio, para além dos eixos de dominação do mundo global, de antes de Barack Obama. Na confluência entre os presidentes Zapatero e o primeiro-ministro Erdogan repercutia o escape a um Ocidente duro e saxão, apontando ao Mediterrâneo, como polo emergente por uma real condição de diálogo com o mundo islâmico e reconhecendo neste as diversidades entre os universos árabe, turco, iraniano ou magrebino.

Incorporando-se à linha de frente desta mudança de perspectiva, o Brasil avança, no questionamento na América Latina, de uma visão ainda colonial do Ocidente, pela violência do implante das culturas ibéricas, levadas a pseudo identidades nacionais, de muitas das independências do século 19.

O 11 de Setembro pôs em causa a violência da expropriação que, na ocidentalização dos séculos 19 e 20, levou à perda da alma das culturas islâmicas a ela submetidas. Não é outro o choque com que o Ocidente se dá conta de uma visão de quase martírio com que os terroristas do World Trade Center podem ser cultuados, no Iêmen ou em Omã, como vingadores da altivez islâmica, quebrada pela sujeição do fetichismo consumista e às economias de mercado extrativista clássico. A América Latina de hoje depara-se, na dita revolução bolivariana, com a reformulação do mapa andino, de par com o reclamo, pelo Estado Aimara ou Quétchua, rachando eventualmente em nome da autenticidade pré-colonial a Bolívia e o Equador de hoje.

A Aliança das Civilizações se dá conta de como toda reemergência não-hegemônica da globalização não fica no plano econômico e social, mas desce à primeira identidade básica, a atingir hoje os próprios pressupostos de seu desenvolvimento nacional, como visto ainda há meio século. Mas nesta retomada radical da ideia de mudança, o Brasil ganha destaque ímpar na proposta democrática do seu empenho, em claro contraste, por exemplo, com os ditos Estados bolivarianos.

O respeito internacional encimado hoje pela posição de Obama frente a Lula é o do Brasil que não muda as regras do jogo das suas reeleições, enfrenta os controles entre os poderes e avança na plataforma prioritária do pleno reconhecimento dos direitos humanos, característica hoje fundamental do nosso Estado de Direito. O cacife externo do país é o remate natural do governo Lula, a mal capitalizar, ainda, a sua capacidade de mediação além-Atlântico. E Lula do G-20 se transforma no parceiro inesperado para avançarmos nas negociações de Gaza, senão a de sermos bem-vindos nos desbloqueios dos impasses de Darfur. E apenas começa, após a palidez latino-americana, o Brasil dos Brics.

terça-feira, 28 de abril de 2009

94 países da ONU aceitam aborto de anencéfalos

Correio Braziliense

28/04/2009

SAÚDE
Segundo autora do levantamento, resistência é maior em nações onde interrupção da gravidez é proibida em qualquer circunstância
Renata Mariz

A interrupção da gravidez no caso de fetos anencéfalos (sem cérebro) — que será discutida no Supremo Tribunal Federal (STF) ainda no primeiro semestre deste ano, de acordo com a previsão do relator do processo, ministro Marco Aurélio de Mello — é legalizada em 49% dos países-membros da Organização das Nações Unidas (ONU). Das 192 nações com assento na ONU, 94 permitem o aborto no caso de ausência total ou parcial do cérebro, segundo levantamento feito pela professora da Universidade de Brasília (UnB) Debora Diniz.

De acordo com ela, o resultado da pesquisa mostra um conservadorismo maior em relação ao aborto de anencéfalos nos países em que a prática, de uma forma geral e em praticamente qualquer circunstância, é proibida. “É a legislação do tudo ou nada”, define. A prova, segundo a pesquisadora, está em nações que, mesmo com grande influência católica, autorizam o aborto de forma irrestrita, abrangendo também o de anencéfalos. É o caso de Itália, Espanha e Portugal. Na contramão disso, há países como Filipinas, Irlanda e praticamente toda a América Latina, que proíbem a interrupção da gestação em qualquer situação.

“O Chile criminaliza até em casos de estupro. Estamos numa região do mundo muito proibitiva”, afirma Debora. No Brasil, o aborto de fetos anencéfalos só é permitido com autorização judicial. Caso contrário, mulher e médico podem ser presos. A polêmica da legalidade do aborto no caso de anencefalia foi levada ao Supremo por meio de uma ação ajuizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS) em 2004 e, desde então, levanta muita polêmica.

Para o advogado Paulo Leão, que atua em questões relacionadas à bioética, a legislação brasileira deve continuar impedindo o aborto no caso de anencefalia se quiser respeitar os princípios constitucionais do direito à vida, da igualdade entre as pessoas e da solidariedade.

“Hoje, permite-se matar o filho dentro do útero, amanhã serão os velhos. Devemos abrir uma exceção para que, no futuro, o Estado possa dispor da vida das pessoas?”, argumenta Leão. Para Debora, a Constituição brasileira não criminaliza o aborto. “É uma questão de interpretação, a criminalização está expressa no Código Penal, legislação fortemente imbricada na influência religiosa”, afirma.


Divisão global
Das 192 nações com cadeira na Organização das Nações Unidas (ONU), 94 autorizam o aborto de fetos com ausência parcial ou total do cérebro. O número representa 49% dos membros. Veja abaixo como se posicionam alguns países.

Permitem o aborto
Itália
Austrália
Estados Unidos
Alemanha
Canadá
África do Sul
França

Não permitem:
Brasil
Filipinas
Irlanda
Chile
Argentina
Bolívia

ONGs denunciam à ONU ações de milícias no Rio

Jornal do Commercio

28/04/2009

Segundo as entidades, os grupos ilegais de segurança lucram por ano cerca de R$ 60 milhões só com o controle do transporte público no Rio. ONU convocará o governo brasileiro para cobrar explicações

RIO – O controle do transporte público por milícias no Rio de Janeiro gera lucros de cerca de R$ 60 milhões por ano para os grupos criminosos. A acusação consta em relatório que ONGs internacionais e brasileiras enviaram à Organização das Nações Unidas (ONU). A entidade vai realizar na próxima semana um exame da situação dos direitos sociais e econômicos no Brasil. Em sua resposta à ONU, o governo admite que a violência policial é um dos principais problemas de direitos humanos no País, mas garante que toma medidas para enfrentá-lo.
Os dados encaminhados pelas ONGs fazem parte das conclusões de uma CPI da Assembleia Legislativa fluminense. A investigação foi realizada em dezembro. No total, 226 pessoas foram identificadas como milicianas. O documento será agora avaliado pelos peritos do Comitê de Direitos Sociais e Econômicos das Nações Unidas, que examinarão a situação dos indígenas, de afrodescendentes, das mulheres, da educação e de outros direitos.

As instituições responsáveis pela acusação são Justiça Global, Organização Mundial contra a Tortura e o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua. O levantamento foi financiado pela União Europeia. No dia 4 de maio, a ONU convocará o governo para uma sessão em Genebra e o Itamaraty terá de dar respostas às acusações e aos problemas identificados.

Segundo as entidades, as milícias são compostas principalmente por policiais, ex-agentes de segurança, soldados ou bombeiros. Sob o pretexto de garantir a segurança do bairro onde atuam, elas praticam extorsão de dinheiro e coerção armada. Os grupos cobram uma taxa para garantir a proteção da comunidade. Além disso, controlam o fornecimento de serviços de TV a cabo, transporte e gás. Quem se opõe é simplesmente morto.

No caso do transporte, a constatação é de que as empresas que querem atuar no setor, principalmente na informalidade, são obrigadas a pagar uma contribuição. O estudo mostra ainda que o número de crianças sendo obrigadas a trabalhar aumentou. Os garotos são colocados para vender bilhetes para as vans e micro-ônibus que circulam pelo Rio. Um dos impactos é a diminuição do número de crianças em escolas.

As ONGs alertam que o fenômeno das milícias está ligado também ao aumento do número de seguranças privados. Entre 1,2 milhão e 1,8 milhão de pessoas trabalhariam em empresas de segurança no País.

NÚCLEO

A Polícia Civil do Rio vai criar um núcleo para trabalhar apenas com os inquéritos referentes aos crimes cometidos pelas milícias. O chefe da corporação, delegado Allan Turnowski, há uma semana no cargo, anunciou a medida ontem. “O núcleo deve entrar em operação em breve”, disse Turnowski, sem estabelecer um prazo.

Guerra contra terror não ignora direitos humanos

Correio Braziliense

28/04/2009

Rodrigo Craveiro

100 DIAS DE OBAMA
Presidente dos Estados Unidos rompeu com o governo antecessor ao banir tortura, fechar Guantánamo e divulgar documentos da CIA

Rodrigo Craveiro

Assim que assumiu a maior potência do planeta, o democrata Barack Obama herdou um país com a popularidade fustigada pelas violações dos direitos humanos cometidas durante o governo George W. Bush. No Salão Oval da Casa Branca, pairavam as imagens de prisioneiros iraquianos de Abu Ghraib ameaçados por cães e empilhados uns sobre os outros, nus e despidos de qualquer dignidade. Os abusos na base norte-americana de Guantánamo, onde muçulmanos viam soldados urinarem sobre o Corão, e as técnicas de tortura usadas contra suspeitos de terrorismo por oficiais da Agência Central de Inteligência (CIA) minaram os ideais de liberdade dos Estados Unidos. Apenas dois dias depois de tomar posse, Obama assinou três ordens executivas ordenando o fechamento da prisão em Cuba no prazo de um ano e revisando o tratamento aos suspeitos.

Um claro indício de ruptura com o passado foi a decisão de Obama de abrir os documentos secretos da CIA sobre métodos violentos de interrogatório. Ao ameaçar processar os oficiais da agência de inteligência, o líder democrata atraiu fortes críticas dos falcões da era Bush. Os memorandos revelavam que o então vice-presidente Dick Cheney e a secretária de Estado, Condoleezza Rice, haviam dado sinal verde para a tortura. Em entrevista ao Correio, por e-mail, Ron Huff — presidente da Sociedade Americana de Criminologia e doutor em sociologia pela Ohio State University — afirmou que os 99 dias do governo Obama têm refletido a devolução dos direitos humanos para suspeitos. “Guantánamo é um exemplo: muitos dos prisioneiros foram libertados recentemente sem acusações, depois de encarcerados por longos períodos”, admitiu. “O presidente quer dar um aviso de que, na luta contra o terror, os EUA não deveriam violar os direitos humanos e a lei internacional.”

A proposta de Obama, segundo Huff, é ser duro com os extremistas islâmicos, mas sem praticar a tortura. “Como ex-professor de direito constitucional na Universidade de Chicago, o presidente Obama é um forte defensor dos direitos humanos e das liberdades civis”, lembrou. “Mas ele manterá uma forte presença militar diante do fracasso da diplomacia ou quando os Estados Unidos ou seus aliados sofrerem atentados”, acrescentou.

Mensagem
Ward J. Thomas, pós-doutor em ciência política pela Universidade Johns Hopkins e especialista do College of Holly Cross (em Massachusetts), acredita que Obama pretendeu enviar ao mundo a mensagem de que os Estados Unidos não podem se dar o direito de usar o meio que desejarem para combater o terror ou de ignorar a vontade da comunidade internacional. “As decisões de tornar os memorandos públicos e renunciar à tortura representam um desejo de indicar um claro rompimento com o governo Bush”, concordou.

De acordo com Thomas, Obama sabe que proteger o país de um ataque terrorista ainda é um desafio substancial. “O nosso atual presidente é mais sensível do que Bush. Obama sabe que, se alienasse as populações do mundo islâmico, ele agravaria o problema do extremismo a longo prazo”, observou. Mas o especialista admite que o democrata precisará ter jogo de cintura para desempenhar o papel de paladino dos direitos humanos. “Obama anda sobre uma linha bastante tênue. Ele quer distanciar seu governo das técnicas de interrogatório, mas precisa ser cuidadoso para não ferir o Partido Republicano”, explicou. Tanto que o chefe de Estado já se declarou aberto à criação de uma comissão bipartidária para investigar a tortura, mas prefere se distanciar da imagem de adepto a um processo contra oficiais da CIA. O risco é de desagradar aos aliados de Bush e minar o apoio do Congresso na votação de importantes projetos contra a crise financeira.

segunda-feira, 27 de abril de 2009

Resenha sobre a última obra de Robert Posner

http://www.nybooks.com/articles/22655 Resenha publicada no último número do New York Review of Books a respeito da obra de Robert Posner sobre a falência do capitalismo

Por que falhou a globalização financeira?

Folha de São Paulo

27/04/2009

Luiz Carlos Bresser-Pereira

DESDE O início desta década, venho argumentando que a globalização financeira não promove o crescimento, mas prejudica os países em desenvolvimento. A crise global que estamos presenciando mostrou que prejudica também os países ricos -que o instrumento financeiro que tradicionalmente utilizaram para dominar os demais países voltou-se contra eles.
Ao fazer a crítica da abertura financeira, eu também criticava a política de crescimento com poupança externa, que, em vez de promover o aumento da taxa de investimento, aumenta o consumo. Recentemente, Dany Rodrik e Arvind Subramanian ("Why did financial globalization disappoint?") somaram-se a essa crítica e listaram pesquisas empíricas que confirmam as nossas. Entretanto, as razões que apresentaram para que a poupança externa não cause o crescimento são secundárias.
Corretamente, eles afirmam que o ponto de estrangulamento das economias em desenvolvimento não é a falta de poupança, mas de oportunidades de investimento. Foi isso, essencialmente, o que descobriu Keynes há 70 anos. Enganam-se, porém, em atribuir a falta de investimentos: 1) à existência de instituições desfavoráveis nos países em desenvolvimento que não garantem a propriedade e os contratos; e 2) às imperfeições de mercado, principalmente à falta de investimentos públicos e de investimento em educação (externalidades positivas) que viabilizem os investimentos.
Não vou perder tempo com o argumento neoliberal de falta de garantia aos investimentos. Se o argumento fosse relevante, não haveria nunca "catching up". Por outro lado, a referência à teoria dos pioneiros da teoria do desenvolvimento econômico dos anos 1940 quanto à necessidade de um conjunto de investimentos entrecruzados para viabilizar sua rentabilidade é interessante, mas ignora que essa teoria se aplica a países pobres, não a países de renda média. Além disso, esses economistas não dispunham ainda da crítica ao crescimento financiado por empréstimos e investimentos diretos.
Minha crítica à globalização financeira e à política de crescimento com poupança externa se opõe à teoria econômica convencional e à dos pioneiros do desenvolvimento. Está baseada em raciocínio simples: quando um país apresenta um déficit em conta corrente (ou seja, está recebendo poupança externa) que é financiado por entradas de capital, sua taxa de câmbio se aprecia. Em consequência, duas coisas complementares ocorrem: a) os salários reais aumentam, cresce o consumo e cai a poupança interna; e b) diminuem as oportunidades de investimentos lucrativos orientados para a produção de bens comercializáveis internacionalmente.
Em consequência, a poupança externa substitui a interna, enquanto o país se endivida para consumir. Os influxos de capital transformam-se em consumo, inclusive os investimentos diretos, porque são compensados pela diminuição de investimentos nacionais. A taxa de substituição é geralmente alta; em certos casos, como no Brasil na segunda metade dos anos 1990, foi de 100%.
Em segundo lugar, os fluxos causam fragilidade financeira, elevando assim a dependência do país em relação aos credores externos e levando o governo local a adotar a política do "confidence building" e, assim, transferindo o centro das decisões sobre o interesse nacional para a metrópole. Finalmente, a globalização financeira e a política de crescimento com poupança externa provocam crises de balanço de pagamentos, com graves consequências sobre as taxas de expansão do país.

LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA, 74, professor emérito da Fundação Getulio Vargas, ex-ministro da Fazenda (governo Sarney), da Administração e Reforma do Estado (primeiro governo FHC) e da Ciência e Tecnologia (segundo governo FHC), é autor de "Macroeconomia da Estagnação: Crítica da Ortodoxia Convencional no Brasil pós-1994".

Os Estados Unidos foram salvos pela tortura?

Época

27/04/2009

Um relatório da CIA diz que interrogatórios brutais evitaram um novo ataque terrorista em Los Angeles
Rodrigo Turrer

PRESSÃO
Khalid Shaikh Mohammed, um dos líderes da Al Qaeda, foi afogado 183 vezes antes de confessar Quando o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, liberou a divulgação de memorandos do Departamento de Justiça sobre as técnicas de interrogatório da Agência Central de Inteligência (CIA), no dia 17, fez renascer uma crise política que parecia terminada. A crise que abalroou o governo de seu antecessor, George W. Bush, com as evidências de que os Estados Unidos praticaram tortura contra prisioneiros suspeitos de terrorismo. Ao tomar posse, Obama pôs fim aos métodos brutais de interrogatório – privação de sono, confinamento do prisioneiro numa caixa com insetos e waterboarding, uma simulação de afogamento – e não divulgou os documentos. Até mudar de ideia. “Reter esses documentos serviria apenas para negar fatos de domínio público”, disse Obama, na semana passada.

Engano. Teria servido também para evitar duas polêmicas. A primeira: os documentos sugerem que, por conta da tortura, a CIA conseguiu evitar um novo ataque ao estilo do perpetrado em 11 de setembro de 2001, que matou quase 3 mil pessoas. Desta vez, o alvo de um avião sequestrado seria o maior prédio da Costa Oeste americana, a Library Tower, de 73 andares e 310 metros, em Los Angeles, segundo a confissão de Khalid Shaikh Mohammed, autoproclamado mentor dos atentados contra as torres gêmeas. Mohammed teria revelado o plano depois de ser submetido a 183 sessões de simulação de afogamento. Sua confissão levantou na direita americana novos clamores em defesa das “técnicas intensivas de interrogatório” para deter o terrorismo. De acordo com os partidários de Bush, as evidências sugerem que essas técnicas serviram para salvar vidas.

A segunda polêmica emanou da esquerda. Aliados de Obama e grupos de defesa dos direitos humanos passaram a exigir punição para os responsáveis pelos interrogatórios. Sabendo que isso poderia minar o moral da CIA – e diminuir sua eficiência no combate ao terrorismo –, Obama imediatamente descartou processar os agentes. Mas deixou em aberto a possibilidade de processar quem autorizou o uso das técnicas brutais. Isso aguçou a divisão entre democratas e republicanos. Um ex-oficial da CIA acusou o vice de Bush, Dick Cheney, de pressioná-lo para obter confissões de que o grupo terrorista Al Qaeda tinha ligações com o ditador do Iraque, Saddam Hussein – justificativa dada para invadir o Iraque, em 2003, que depois se revelaria falsa.

Processar ex-governantes por suas decisões políticas seria algo inédito nos EUA. E suscitaria várias dúvidas. Onde parava a responsabilidade? Nos funcionários subalternos? Em Cheney? Em Bush? Ou na presidente do Congresso, a democrata Nancy Pelosi, que fazia parte do comitê informado dos métodos da CIA? Estabelecer uma fronteira é tão subjetivo que fica difícil imaginar que alguém venha a ser processado.

A tortura no governo Bush

O Estado de São Paulo

27/04/2009

Um dilema que lembra o dos países que passaram da ditadura à democracia confronta a primeira grande nação democrática da história. Os Estados Unidos, com efeito, discutem se, como e até onde devem ser investigadas as torturas sistemáticas contra suspeitos de terrorismo, praticadas pela Agência Central de Inteligência (CIA) em Guantánamo e nos seus centros secretos de detenção no exterior com autorização escrita do governo Bush. Um amargo debate instalou-se na semana passada quando, diante de uma ação judicial da União Americana pelas Liberdades Civis, com base na Lei de Liberdade de Informação, a Casa Branca divulgou quatro documentos preparados entre 2002 e 2005 pela Consultoria Jurídica do Departamento de Justiça, que detém a última palavra no Executivo em matéria de interpretação das leis.
Os memorandos, dirigidos à CIA, regulamentam o emprego de 14 técnicas brutais de interrogatório, detalhadamente descritas. Os textos asseguram que as violências seriam compatíveis com as leis americanas e o direito internacional. (Para não ser acusado de violar, entre outros tratados assinados pelos Estados Unidos, as Convenções de Genebra sobre o tratamento de prisioneiros de guerra, o governo Bush decidiu que os terroristas eram "combatentes ilegais".) A modalidade mais citada de tortura, a simulação de afogamento, foi usada nos anos 1940 por militares japoneses depois considerados criminosos de guerra e pelo Khmer Rouge, no Camboja, na década de 1970. Um prisioneiro da CIA sofreu o suplício 183 vezes em um mês. Outros métodos incluíam a privação de sono por 11 dias seguidos e duchas a 5 graus Celsius.
Assim que assumiu, o presidente Barack Obama revogou os pareceres que legitimavam a tortura, ordenou o fim das prisões secretas e o fechamento de Guantánamo em um ano. Mas, ao tornar públicas as provas cabais da negação, sob o bushismo, dos valores fundamentais dos Estados Unidos, ele prometeu que nenhum agente da CIA será processado se tiver agido de acordo com tais pareceres e argumentou que "nada se ganhará gastando tempo e energia para estabelecer as culpas do passado". Obama instruiu os líderes democratas no Congresso a se opor à proposta do presidente da Comissão de Justiça do Senado, o também democrata Patrick Leahy, de criação de uma comissão independente para investigar a conduta do governo Bush em relação à tortura. A presidente da Câmara, Nancy Pelosi, outra democrata, apoia a ideia.
As entidades de defesa dos direitos humanos, por sua vez, pedem a designação de um promotor especial para apurar em toda a extensão o que o próprio Obama chamou de "um capítulo tenebroso" da história americana. Por enquanto, apenas o Escritório de Responsabilidade Profissional do Departamento de Justiça investiga a conduta dos autores dos memorandos. A Comissão de Inteligência do Senado deverá fazer uma apuração preliminar, cujos resultados deverão sair perto do fim do ano. No editorial O manifesto dos torturadores, transcrito sexta-feira neste jornal, o New York Times, depois de elogiar o presidente pela divulgação dos memorandos, sustenta que, se o Executivo não conduzir uma investigação exaustiva do assunto, o Congresso terá o dever constitucional de responsabilizá-lo pela omissão.
A rigor, o que está em jogo vai além da tortura - que, de mais a mais, se revelou ineficaz, segundo especialistas em contraterrorismo, e prejudicou a cooperação entre os Estados Unidos e alguns de seus aliados europeus, como a Alemanha, no combate ao inimigo comum. Sob os auspícios de Bush e invocando o imperativo da segurança nacional, o seu círculo íntimo - o vice Dick Cheney, o conselheiro Karl Rove, o secretário da Defesa, Donald Rumsfeld, e o da Justiça, Alberto Gonzales - tentou transformar os EUA em um Estado policial. As suas tendências ditatoriais foram exacerbadas, mas não criadas pelo 11 de Setembro. Com o Congresso e a imprensa acoelhados, instalaram um regime que dotou o presidente de poderes extraordinários, quando não secretos, de controle da sociedade. Bush autorizou o grampo das comunicações de quem quer que o governo quisesse, numa escala que superou até os amplos limites da autorização legislativa recebida. Estiveram próximos de desfigurar o país.

Ódio genocida ao Outro

O Estado de São Paulo

26/04/2009

Para racistas, os seres humanos que são seu alvo simplesmente não merecem viver no planeta

Roseli Fischmann

- A Conferência da ONU em Genebra traz questionamentos, reforçando a pergunta: por que há tanta dificuldade no debate sobre o racismo?

Uma resposta é que a atual geopolítica se baseou em ideologias racistas, expressas nos colonialismos, submetendo alguns povos aos interesses de outros, com repercussões perversas até hoje. Questionar a situação é questionar a história e encontrar formas de reparação, considerando o prejuízo causado a gerações e à dignidade humana (conforme Dworkin e Arendt). Pesa também o desconforto de precisar mudar algo "que sempre foi assim", como a preguiça imoral propõe para fugir ao debate, já que as mudanças requeridas pedem desde novas atitudes individuais à proposta de novas estruturas sociais para superar injustiças.

Tentando esboçar identificador universal para o flagelo, o racismo é uma atitude que se permite considerar que os seres humanos que são seu alvo não merecem viver sobre a face da terra e sob a luz do sol, gabando-se de assim pregar. Essa é a desrazão que leva do ódio ao Outro à promoção efetiva de genocídios que, irrecuperáveis, deixam marcas indeléveis para os sobreviventes diretos e indiretos.

O racismo é uma guerra permanente, declarada ou tácita, mediante uso de quaisquer armas, materiais ou imateriais, com o fim de eliminar o grupo a quem se rejeita a condição humana e a quem se nega a mera possibilidade de existir. A arrogância racista encontra-se exatamente aí, em um inexistente direito que se autoatribuem os racistas de decidir que alguns não merecem coabitar o planeta.

Talvez em nenhum outro tema seja tão árdua a possibilidade de um debate em direção ao universal. Porque, por um lado, são muitos os grupos vitimados em histórias de discriminação e prejuízos coletivos, cada qual a reivindicar para si, compreensivelmente, a dor maior, a urgência mais extrema e a maior legitimidade. Por outro, grupos que são perseguidos em um espaço podem ser perpetradores de injustiça em outro, e a presença na arena coletiva mundial relativiza queixas e expõe fraquezas comuns a todos, na facilidade de constatar erros alheios e na dificuldade de assumir os próprios. Por isso a cautela deveria ser a atitude mais básica na escolha dos protagonistas de espaços que buscam os direitos humanos como construção universal (à Bobbio).

Se o racismo é uma guerra, tratar do racismo exige metodologias próprias à resolução de conflitos por meios não violentos. Caberia pensar que conferências mundiais deveriam se constituir como um tipo de resolução interativa de conflitos. A tradição de Gandhi e Martin Luther King gerou metodologias interativas que têm base no diálogo e na busca de reconhecimento mútuo, pelo respeito das identidades e dos valores, mesmo não coincidentes (como em Kelman). Mais complexo, há o fato de que as reuniões contam com uma memória mundial que não está disposta a esquecer os fatos terríveis que a humanidade viveu, e com a presença de sobreviventes indiretos de genocídios.

Sucede que, além dos sobreviventes e de seus descendentes (que poderiam não existir, tivesse o genocídio atingido seus objetivos plenamente, no maior horror possível), os refugiados constituem-se como grupos de sobreviventes que escapam ao furor do ódio genocida, instalam-se em outro território que os acolhe e ali reconstroem suas vidas, formam famílias e criam seus filhos, que vão para a arena mundial em luta para que não se repita o que poderia ter impedido suas vidas mesmo de existir. No Brasil, o racismo entranhado na história sistematicamente ignorou os refugiados, tratados como se fossem imigrantes, sem discernir os que imigraram e os que se refugiaram, dentro de um mesmo grupo.

É o mesmo racismo causador da ignorância sobre os mais de 230 grupos indígenas, homogeneizando-os e relegando-os a condições lamentáveis, que promoveu injustiças brutais contra afrodescendentes, mesmo após o fim da escravidão, ou pelo menos se calou frente à desigualdade que evidentemente tem fundo racial em nosso país. A situação ainda é tal que esses grupos têm se renovado, geração após geração, como sobreviventes do racismo que persiste, enquanto se busca combatê-lo, pelos movimentos sociais e pelas instituições. Para essas populações brasileiras, o Plano de Ação da Conferência contra o Racismo realizada em Durban, em 2001, trouxe benefícios importantes, que poderiam ser mais reforçados, houvesse sido outro o resultado da reunião em Genebra.

Uma conferência para debater o racismo precisaria encarar a História para encontrar possibilidades de transformação social em direção à construção do universal, que a todos permita viver como livres e iguais. Alguns limites se colocam a todos os participantes de semelhantes encontros, como os que ensinam que, na necessária compatibilização de direitos de diferentes grupos em conflito, o direito à livre expressão não pode corresponder a um inexistente direito à mentira. Mais ainda, uma mentira que subjuga a amplitude e profundidade do debate sobre o racismo, impossibilitando o diálogo que, em si, é complexo e difícil.

Sendo positivo que o governo brasileiro tenha se manifestado oficialmente contra o conteúdo da fala de Ahmadinejad, a situação anunciada para breve obriga a dizer que é inaceitável que o Brasil receba com honras alguém que, sendo no momento presidente de um país com quem o Brasil legitimamente mantém relações diplomáticas, pessoalmente vem se posicionando publicamente contra os princípios de nossa Constituição Federal, que rejeita o racismo, no campo internacional, e o considera crime imprescritível e inafiançável, no campo nacional. É a Constituição brasileira que será insultada, e o alegado interesse econômico se sobreporá ao dever ético do Estado para com toda a cidadania brasileira que, se consumada essa visita, estará de luto.

Roseli Fischmann é professora da pós-graduação em Educação da USP e da Universidade Metodista de São Paulo. Tem colaborado como Expert Unesco para a Coalizão de Cidades Latino-Americanas contra o Racismo e a Discriminação, uma das atividades ligadas a Durban-2001

Lembranças do nazi-fascismo

Jornal do Commercio

26/04/2009

Alberto Dines

A Era da Demonização encontrou o intérprete ideal e a vitrine perfeita para ser entendida e visualizada. O insano discurso do presidente iraniano, Mahmoud Ahmadinejad, em Genebra, na abertura da conferência da Organização das Nações Unidas sobre o racismo, é uma das peças mais racistas e mais intolerantes desde o suicídio de Joseph Goebbels em maio de 1945.

Na véspera da rememoração dos 70 anos do início da Segunda Guerra Mundial (deflagrada pelo delírio racista), esta afronta à noção da igualdade dos seres humanos exemplifica o nível de ressentimento que ainda prevalece em certas partes do mundo, apesar dos avanços da ciência, do conhecimento e da razão.

A arenga do líder iraniano negou e minimizou o Holocausto – obra máxima do racismo hitlerista –, retomou a viciosa comparação entre o nacionalismo judeu – o sionismo – com racismo e verberou os valores ocidentais. Foi prontamente repudiada por mais de 30 países e também pelo secretário-geral da ONU que chegou a ameaçar o orador com "medidas disciplinares".

Ahmadinejad ignora que a Declaração Universal dos Direitos Humanos é um produto do odiado Ocidente, assim também a criação da Organização das Nações Unidas, no fim da Segunda Guerra Mundial, com o objetivo precípuo de erradicar do cenário mundial a alternativa da guerra e obrigar os estados-membros a conviver pacificamente apesar de eventuais divergências.

A resposta firme do governo brasileiro talvez obrigue o pequeno déspota a comportar-se como chefe de Estado quando aqui chegar dentro de duas semanas. A convocação do embaixador do Irã ao Itamaraty para receber uma nota formal de repúdio tem na linguagem diplomática um grau de veemência que não deve ser desconsiderado. O que não significa um apoio brasileiro às equivocadas e nocivas posições do governo israelense no tocante à imperiosa necessidade de se criar um Estado Palestino.

A delirante demonização embutida no discurso de Ahmadinejad no dia 20 de Abril não é uma iniciativa isolada. Faz parte de uma ardilosa investida iniciada pouco antes (26 de março), no Conselho de Direitos Humanos da ONU patrocinada pelo Paquistão, Venezuela e Bielorússia para coibir o que designaram como "difamação religiosa".

O democrático trio e seus invisíveis apoiadores (entre os quais se alinha o Irã), pretende, na realidade, considerar como "blasfêmia" e "heresia" grande parte do ideário da rede mundial de defensores dos direitos humanos.

Com a justificativa de proteger a liberdade religiosa tenta-se santificar o despotismo teocrático. Demonizar a democracia e incapacitá-la como defensora do direito de crer e descrer, essa é a manobra. Como no Ocidente forjou-se e consagra-se o princípio democrático e isonômico da separação entre Religião e Estado, o Ocidente tornou-se o alvo preferencial de fanáticos como Ahmadinejad.

E quanto mais se obsoleta se torna no Ocidente a teoria da inevitabilidade do "choque das civilizações" mais insistem em perseguir e satanizar os que advogam a secularização e a democratização dos Estados. A expressão atribuída ao americano Samuel Huntington, na realidade, comanda a lógica dos novos cruzados e velhos dogmáticos espalhados pelo mundo afora.

Antes de embarcar para o Brasil convém que o presidente Ahmadinejad faça um programa de imersão para encontrar a paz de espírito que tanto carece. Será aqui recebido com respeito, mas antes é preciso que exorcize os seus próprios demônios.

Não usamos sapatadas, mas sabemos repudiar com firmeza a tentativa de reviver as doutrinas que deveriam ter sido sepultadas no bunker de Berlim em maio de 1945.

Alberto Dines é jornalista

sábado, 25 de abril de 2009

Tá ruim, mas tá bom

Folha de São Paulo

25/04/2009

As coisas estão mais para copo meio cheio: o agronegócio já respira, à exceção dos setores de álcool, carnes e cafeicultura

ROBERTO RODRIGUES

DUAS IMPORTANTES reuniões internacionais foram realizadas nas últimas semanas: a do G20, cujo objetivo era encontrar mecanismos de mitigação da crise financeira nascida nos Estados Unidos; e a da Cúpula das Américas, que terminou nesta semana em Trinidad e Tobago, cuja proposta era discutir os grandes temas de interesse continental (entre os quais a questão da energia).
Vale a pena revisitar os resultados dessas reuniões sob o ângulo específico da crise. Excelente análise da reunião do G20 foi feita por Clóvis Rossi, colunista desta Folha, quando colocou a tese do copo meio cheio versus copo meio vazio. De fato, como canta nossa dupla sertaneja, "tá ruim, mas tá bom". Se os resultados do G20 não foram formidáveis, também não foram desprezíveis. Seus membros, que representam quase 80% do PIB global, decidiram colocar US$ 1 trilhão no FMI para atender às demandas de países em dificuldades, e parte significativa será destinada à ampliação do comércio, fato alvissareiro, na medida em que a Rodada Doha da OMC estava travada em razão da nova onda protecionista dos países ricos.
Aliás, o G20 se posicionou claramente contra esse neoprotecionismo, bem como enfatizou a necessidade de aproveitar a crise para montar um novo projeto de desenvolvimento sustentável. Mais ainda, os membros do G20 estabeleceram prazos e criaram equipes executivas para a implementação dessas decisões. Foram avanços ante o ceticismo que havia quanto à reunião, em razão da perda de protagonismo dos grandes organismos internacionais. É o caso da ONU, que tem a defesa da paz entre seus objetivos principais e não foi capaz de evitar a invasão do Iraque na era Bush.
Ou da OMC, que não consegue obrigar nenhum país a cumprir suas determinações, como no caso do subsídio ao algodão nos EUA: o Brasil venceu um painel nesse sentido, e os americanos não cumpriram a decisão da OMC. Ou da FAO, que há anos propõe medidas contra a fome; os países não tratam disso, e a fome só faz aumentar.
Essas coisas, às vezes em nome da soberania das nações, vão erodindo o "poder" das organizações multilaterais, e isso influiu no pessimismo quanto ao G20. Mas o copo acabou meio cheio. O mesmo aconteceu em Trinidad e Tobago. Nada de muito relevante foi decidido, mas acende-se a luz do túnel, quando os Estados Unidos reveem sua posição no continente, preocupando-se mais com os países pobres.
Por outro lado, os diferentes especialistas continuam se desentendendo sobre a extensão e a profundidade da crise: há os que reiteram que ela irá longe e provocará muitos desastres em empresas e em economias nacionais até agora pouco afetadas; e há os que garantem que o pior já passou e a retomada se inicia lentamente. Tudo se insere no mesmo contexto, nem tanto ao mar nem tanto à terra. De qualquer jeito, no Brasil as coisas estão mais para copo meio cheio: o agronegócio começa a respirar, à exceção da cafeicultura, que precisa de cuidados especiais, e dos setores sucroalcooleiro e de carnes, para os quais o governo já deu sinais de apoio. E, como o agronegócio é propulsor da economia, pois representa mais de um quarto do nosso PIB, gera mais de um terço dos nossos empregos e tem um saldo comercial maior que o do país todo, há uma esperança nascendo no horizonte.
Com políticas adequadas, sairemos desta antes do que imaginávamos há três meses.

ROBERTO RODRIGUES, 66, coordenador do Centro de Agronegócio da FGV, presidente do Conselho Superior do Agronegócio da Fiesp e professor do Departamento de Economia Rural da Unesp - Jaboticabal, foi ministro da Agricultura (governo Lula).

ONU ataca boicote e vê ganhos em conferência

Folha de São Paulo

25/04/2009

Alta comissária diz que reunião contra racismo virou alvo de desinformação
Para Navi Pillay, documento final avança na proteção aos imigrantes e trabalhadores; EUA, Israel e mais oito países boicotaram encontro

MARCELO NINIO, de GENEBRA

Após uma semana conturbada, marcada pela indignação causada pela intervenção do Irã, a Conferência contra o Racismo da ONU terminou com duras críticas aos países que boicotaram o encontro. Apesar da polêmica, a maioria acha que o consenso obtido em torno do documento final evitou que a política sequestrasse a agenda.
Ao fazer um balanço da conferência, a alta comissária de direitos humanos da ONU, Navi Pillay, disse que enfrentou uma "campanha de desinformação altamente organizada", para esvaziar o encontro.
Mas destacou que o documento aprovado tem avanços importantes, como a preocupação com os imigrantes e a discriminação no trabalho.
Ativistas brasileiros e estrangeiros concordaram que o texto poderia ter ido mais longe, como na questão das reparações pela escravidão e os direitos a orientação sexual, mas que é uma conquista.
O encontro de cinco dias em Genebra foi uma revisão da Conferência de Durban (África do Sul), de 2001, quando o conflito no Oriente Médio e os ataques a Israel dominaram as discussões. Em protesto, Israel e os EUA se retiraram.

Boicote
Desta vez os dois países optaram pelo boicote, sendo acompanhados de outros oito: Canadá, Alemanha, Itália, Holanda, República Tcheca, Polônia, Nova Zelândia e Austrália. O argumento foi que o documento de 2009 "reafirma" o de 2001, o qual não apoiaram por singularizar Israel.
Pillay disse que foram eliminadas as referências ao Oriente Médio no texto para evitar uma reedição de Durban, mas isso não deteve a resistência de alguns países. "Muitos chamaram o processo inteiro de Durban de festa do ódio", disse a comissária. "Tivemos alguns momentos difíceis no processo, mas festa do ódio? Desculpe, mas é uma hipérbole."
A comissária considerou "bizarro" o comportamento de alguns dos países que boicotaram a conferência, pois dois dias antes haviam aceitado o texto.
A referência é aos europeus, que participaram da negociação do texto. "Eles terão que se explicar com os outros países", disse Pillay.

Irã
Ela foi mais comedida nas críticas ao Irã, dizendo apenas que mantém a posição expressa após o agressivo discurso anti-Israel do presidente iraniano, Mahmoud Ahmadinejad, na abertura da conferência. Num comunicado, Pillay considerou a intervenção "completamente inadequada".
Julie de Rivero, da Human Rights Watch, acha que o saldo é positivo. "A declaração põe a liberdade de expressão no centro da luta contra o racismo, condena o antissemitismo e toca em assuntos tabus em 2001, como os imigrants ilegais", diz.
Outros lamentaram que a polêmica em torno de Ahmadinejad tenha roubado o show. "É como no Brasil: o debate sobre o racismo é sempre desviado para outros assuntos", disse Ronaldo dos Santos, do movimento quilombola.

Brasileiro quer negros na diplomacia

Folha de São Paulo

25/04/2009
Marcelo Ninio, de Genebra

O Brasil precisa ampliar seu quadro de diplomatas negros, hoje irrisório. Não apenas para projetar uma imagem mais fiel de si mesmo, mas como interesse estratégico, afirma o ministro da Igualdade Racial, Edson Santos. "Isso facilitaria nossa aproximação com a África", diz Santos, que chefiou a delegação brasileira na conferência contra o racismo.
O ministro comparou o baixo número de negros no Itamaraty à situação da Câmara dos Deputados, onde ele é deputado licenciado (PT-RJ). "São alguns pontinhos negros num universo branco", disse.
Desde 2002 o Itamaraty oferece bolsas para afrodescendentes interessados na carreira diplomática, mas apenas 11 foram admitidos desde então.
Edson Santos, que é negro, contou que muitos delegados na conferência se surpreenderam ao saber que o Brasil tem a segunda maior população negra do mundo, atrás apenas da Nigéria. "É uma espécie de população invisível."
O ministro não é o único que acha que o Itamaraty reflete uma imagem que não corresponde à realidade do país. Ativistas da sociedade civil que integraram a delegação brasileira fizeram cobranças ao governo: "Dissemos ao ministro que queremos viver nesse Brasil que o Itamaraty divulga pelo mundo", disse Iradj Roberto Eghrari, escolhido como um dos relatores da conferência da ONU.
Santos explicou que a crise financeira limita sua ação. A Seppir (Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial), disse, teve o seu orçamento de 2009 cortado em 65%, para US$ 12 milhões.
Hoje chega ao Brasil o presidente do Conselho de Direitos Humanos da ONU, Martin Ihoeghian Uhomoibhi, da Nigéria. Ele visitará projetos sociais em Manaus, Salvador e Rio de Janeiro. Segundo a ONU, todas as despesas serão pagas pelo governo brasileiro.

sexta-feira, 24 de abril de 2009

Um lado bom da crise

Folha de São Paulo

24/04/2009

Fábio Ulhoa Coelho
TENDÊNCIAS/DEBATES

PRESSIONADOS pelas demandas imediatistas dos segmentos menos competitivos de suas economias, os governos de alguns países pareceram inclinados à adoção de políticas protecionistas e levantamento de barreiras como medidas de superação da atual crise econômica. A reunião do G20 em Londres, no início de abril, representou um alívio, ao sinalizar que as principais economias mundiais concordam que a solução se encontra em outra direção: no mundo globalizado, crises se resolvem com mais globalização.
O principal ponto de acordo na histórica reunião foi o reconhecimento de que não só os sistemas regulatórios domésticos devem ser fortalecidos, como também se deve buscar a articulação entre eles. Não foi possível o consenso em torno da criação de uma autoridade monetária supranacional, mas os resultados do encontro não estão muito longe da regulação global.
O almejado aprofundamento da cooperação entre os sistemas regulatórios de cada país inevitavelmente os levará, em razão dos enfrentamentos que vêm por aí, a medidas que precisam alcançar harmonicamente todas as economias mais importantes do planeta. Da atuação conjunta tende a surgir um "sistema" global.
Aspecto central da coordenação das regulações domésticas, como destacado pelo G20, é a preocupação com as "jurisdições não cooperativas", eufemismo para "paraísos fiscais". Em outros termos -impublicáveis num documento diplomático-, concordou-se em pressionar essas jurisdições exigindo delas o fim do ambiente desregulado. Não há escapatória: os paraísos fiscais devem desaparecer.
Se sobrar um só, certamente se frustrarão os esforços em busca de maiores e mais qualificados monitoramento, disciplina e fiscalização do sistema financeiro internacional. Esse é o lado bom da crise. Quando ela passar, estaremos melhores. A globalização nivela pelo alto. No plano jurídico, o processo de integração econômica global consiste na eliminação das diferenças existentes nos ordenamentos de cada país, que acabam assegurando vantagens competitivas às suas empresas.
As leis que impactam os preços dos produtos e serviços (proteção ao consumidor, direitos trabalhistas, disciplina da concorrência, tributação etc.) devem ser idênticas em todos os países envolvidos no processo de integração para que o empresário opte por se estabelecer aqui ou ali em razão de vantagens competitivas especificamente econômicas (infraestrutura, proximidade dos insumos, dos centros de pesquisa tecnológica etc.).
Historicamente, a globalização tem nivelado pelo alto. Na harmonização legislativa, tem prevalecido a disciplina jurídica mais evoluída. O Mercosul, por exemplo, adotou o regime de proteção dos consumidores do direito brasileiro, superior ao dos então vigentes nos demais países do bloco.
Acontece assim não só em decorrência do processo civilizatório. Também há uma fortíssima razão econômica: como todos dependem de todos no mundo globalizado, para que cada economia tenha saúde, a do parceiro deve ser igualmente saudável. O fim dessa excrescência, os paraísos fiscais, foi anunciado pelo G20. O desafio é efetivá-lo, processo que transcende esforços diplomáticos. É preciso acenar para as jurisdições não cooperativas com alternativas viáveis de reestruturação de suas economias.
Os paraísos fiscais foram criados por países que, sem alternativas mais consistentes de desenvolvimento econômico, viram a saída na exploração do lucrativo negócio da desregulação. Atraíram, com isso, ao abrigo seguro de suas jurisdições não só os sonegadores de impostos mas também os que enriqueceram ilicitamente com dinheiro de corrupção, tráfico de entorpecentes e outros crimes.
Com o cerco a paraísos fiscais, empresários do mundo todo terão cada vez menos instrumentos de sonegação de impostos e ocultação de receitas e lucros. O padrão escandinavo de cumprimento das normas de imposição tributária se espalhará pelo globo. Se a retomada do vigoroso desenvolvimento econômico depende do aprofundamento da globalização, e esta nivela pelo alto, um lado bom dessa avassaladora crise é ter forçado a deflagração do processo (que, cedo ou tarde, aconteceria) de supressão dos paraísos fiscais.

FÁBIO ULHOA COELHO, advogado, é professor titular de direito comercial da PUC-SP e autor, entre outras obras, de "Curso de Direito Comercial" e "Curso de Direito Civil".

A horizontalização da política externa brasileira

Valor Econômico

24/04/2009

A Presidência e os ministérios, incluindo as Relações Exteriores, têm se capacitado

Cássio França e Michelle Ratton Sanchez

A concentração de competências no Ministério das Relações Exteriores não está só no imaginário do cidadão comum

A política externa brasileira passou a integrar o debate político nacional há poucas décadas. O que o cidadão comum sabe é que um ministério, o Ministério de Relações Exteriores (MRE), conhecido por sua organização rígida e boa reputação técnica, representa os interesses do Brasil internacionalmente. Isso, entretanto, está muito distante da realidade da organização do Estado brasileiro hoje.

Duas vertentes importantes mudaram esse cenário do senso comum, a partir da década em 1990 em especial: o processo de globalização e as mudanças no Estado brasileiro. Há uma crescente conexão entre políticas domésticas e internacionais, o que requer que o processo decisório das políticas brasileiras passe a considerar argumentos e tendências internacionais. Isso significa que determinados assuntos antes restritos ao Estado nacional assumiram uma dimensão transnacional e as políticas nacionais comunicam-se com as de outros Estados e outras passam a ser deliberadas em fóruns internacionais. Em decorrência, o Estado brasileiro tem se reestruturado de forma a atender aos desafios dessa mudança.

Como o Estado brasileiro então está organizado neste momento de inserção internacional? A competência para manter relações com Estados estrangeiros e para participar de organizações internacionais é atribuída à União, na figura do presidente da República, pelos artigos 21 e 84 da Constituição federal. O presidente deve então creditar seus representantes diplomáticos. A lei que trata da organização da presidência da República e uma série de decretos e portarias é que definem, no âmbito da União, as competências para os seus diferentes órgãos. Uma pesquisa vem sendo elaborada por pesquisadores da Direito GV e da Fundação Friedrich Ebert com o objetivo de mapear essa distribuição legal de competências e o efetivo exercício das mesmas.

Uma análise dessa regulamentação surpreende pelo fato de contarmos com competências para a política externa em todos os órgãos do Poder Executivo federal, desde aqueles que compõem a presidência da República aos ministérios. Resultados parciais da pesquisa indicam que, no âmbito da Presidência, a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, a Secretaria Especial dos Direitos Humanos e a Secretaria de Relações Institucionais, por exemplo, contam com pelo menos 50% de suas estruturas com competência para atuar na política externa. Dentre os ministérios, destacam-se o Ministério da Educação, Ministério do Meio Ambiente, Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, Ministério dos Esportes, Ministério da Fazenda, Ministério do Turismo e o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, que contam com pelo menos 70% de suas estruturas envolvidas em política externa.

Esses números e o mapeamento das competências da política externa evidenciam que há uma horizontalidade nas competências para formulação da política externa, muito além da percepção intuitiva do papel central do MRE. Por que será que essa percepção ainda prevalece no imaginário nacional?

Recentes artigos na mídia reforçam essa percepção e questionam a legitimidade da atuação de outros órgãos que não o MRE na política externa e a divergência por vezes resultante disso. Algumas entrevistas foram realizadas pelos autores deste artigo, coordenadores da pesquisa, com funcionários daqueles órgãos do Poder Executivo para identificar se as competências definidas pela legislação brasileira confirmam-se na realidade. Apesar de quase nenhuma das regulamentações analisadas contar com previsão de cooperação com o MRE ou mesmo entre os ministérios e desses com a Presidência para a condução da política externa, os entrevistados confirmaram em sua totalidade contatos frequentes com o MRE. Exceções a essa regra foram indicadas em negociações muito técnicas. Portanto, a intuição da concentração de competências no MRE não está só no imaginário do cidadão comum, mas também daqueles que teriam competência para atuar autonomamente em temas de política externa.

A questão valorativa - se essa horizontalização legal e a verticalização pragmática é positiva ou negativa - ainda está pendente e certamente requer estudos detalhados e comparativos de casos e negociações específicas. Será que a coordenação do MRE com o Ministério de Meio Ambiente e o da Saúde no contencioso entre Comunidades Europeias e governo brasileiro sobre o caso de importação de pneus recauchutados foi além do que tradicionalmente se estabelecia entre o MRE e outros ministérios? O que tem mudado na política externa brasileira e na relação entre o MRE e o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) na medida em que se intensificam as negociações nessa área no âmbito internacional e o próprio MAPA tem ampliado a sua estrutura para atuar nessa arena? O que há de novo no governo brasileiro quando se tem o protagonismo conjunto do Ministério da Defesa, da Secretaria Especial de Assuntos Estratégicos e do MRE ao proporem o "Conselho de Defesa Sul-Americano"? A pesquisa em andamento ainda não avançou na análise desses casos, porém apresenta algumas conclusões parciais que podem ajudar a enriquecer o debate nacional sobre o processo de formulação da política externa brasileira, especificamente no tocante à distribuição legal de competências e o seu contraste com a praxe.

Nos últimos anos, não só os órgãos da Presidência como os ministérios, incluindo o MRE, têm-se capacitado em termos técnicos e de recursos humanos, mas o quanto isso ocorre de forma coordenada e possibilita processos de tomada de decisão racional? O que se tem hoje é um avanço do processo de horizontalização de competências que pode incorporar uma posição de vanguarda no campo da administração pública e do Direito, ao relacionar a competências dos ministérios e da própria Presidência para uma coordenação internacional das políticas domésticas que determinam. Mas, por outro lado, esse processo também pode ser o início de uma incerta - para não dizer perigosa - pulverização de responsabilidades na arena internacional. Portanto, definir quais são os arranjos institucionais mais adequados na estrutura do Estado brasileiro para responder a determinadas decisões da política externa é uma questão que depende - e clama hoje - por uma definição urgente por parte do Estado e da sociedade brasileiros, a começar por uma revisão do imaginário sobre a política externa e da relação entre a sua regulação e a sua praxe.

Cassio França é cientista político, doutor em administração pública e governo e diretor de projetos da Fundação Friedrich Ebert.

Michelle Ratton Sanchez é professora vinculada ao Núcleo de Direito Global na Direito GV e pesquisadora no Núcleo de Direito e Democracia do CEBRAP.

quarta-feira, 22 de abril de 2009

América Latina tem quadro teórico?

Valor Economico de 22 de abril de 2009
Um continente sem teoria
José Luís Fiori
22/04/2009






No século XIX, o pensamento social europeu dedicou pouquíssima atenção ao continente americano. Mesmo os socialistas e marxistas que discutiram a "questão colonial", no final do século, só estavam preocupados com a Ásia e a África. Nunca tiveram interesse teórico e político nos novos Estados americanos, que alcançaram sua independência, mas se mantiveram sob a tutela diplomática e financeira da Grã Bretanha. Foi só no início do Século XX que a teoria marxista do imperialismo se dedicou ao estudo específico da internacionalização do capital e seu papel no desenvolvimento capitalista a escala global. Assim mesmo, seu objeto seguiu sendo a competição e a guerra entre os europeus. A maior parte dos autores marxistas ainda compartilhava a visão evolucionista de Marx, com relação ao futuro econômico dos países atrasados, seguros de que "os países mais desenvolvidos industrialmente mostram aos menos desenvolvidos, a imagem do que será o seu próprio futuro".

Foi só depois da década de 20, que a III Internacional Comunista transformou o imperialismo num adversário estratégico e num obstáculo ao desenvolvimento das forças produtivas nos países "coloniais e semi-coloniais". De qualquer forma, o objeto central de todas as análises e propostas revolucionárias foi sempre a Índia, a China, o Egito e Indonésia, muito mais do que a América Latina. Na primeira metade do Século XX, os Estados Unidos já haviam se transformado numa grande potência imperialista, e o resto da América Latina foi incluída pela III Internacional, depois de 1940, na mesma estratégia geral das "revoluções nacionais", ou das "revoluções democrático-burguesas", contra a aliança das forças imperialistas com as oligarquias agrárias feudais, e a favor da industrialização nacional dos países periféricos.

Um pouco mais à frente, na década de 1950, a tese da "revolução democrático-burguesa", e sua defesa do desenvolvimento industrial, foi reforçada pela "economia política da Cepal" (Comissão Econômica para a América Latina) que analisava a economia latino-americana no contexto de uma divisão internacional do trabalho entre países "centrais" e países "periféricos". A Cepal criticava a tese das "vantagens comparativas" da teoria do comércio internacional de David Ricardo, e considerava que as relações comerciais entre as duas "fatias" do sistema econômico mundial prejudicavam o desenvolvimento industrial dos países periféricos. Tratava-se de uma crítica econômica heterodoxa, de filiação keynesiana, mas do ponto de vista prático acabou convergindo com as propostas "nacional-desenvolvimentista", que foram hegemônicas no continente depois da II Guerra Mundial.

Na década da de 60, entretanto, a Revolução Cubana, a crise econômica e a multiplicação dos golpes militares em toda a América Latina provocaram um desencanto generalizado com a estratégia "democrático-burguesa", e com a proposta "cepalina" da industrialização por "substituição de importações". Sua crítica intelectual deu origem às três grandes vertentes da "teoria da dependência", que talvez tenha sido a última tentativa de teorização latino-americana do Século XX. A primeira vertente - de filiação marxista - considerava o desenvolvimento dos países centrais e o imperialismo um obstáculo intransponível para o desenvolvimento capitalista periférico. Por isto, falavam do "desenvolvimento do subdesenvolvimento" e defendiam a necessidade de uma revolução socialista imediata, inclusive como estratégia de desenvolvimento econômico. A segunda vertente - de filiação "cepalina" - também identificava obstáculos à industrialização do continente, mas considerava possível superá-los através de uma série de "reformas estruturais" que se transformaram em tema central da agenda política latino-americana durante toda a década de 60. Na verdade, a própria teoria da Cepal, sobre a relação "centro-periferia", já não dava conta da relação dos EUA com o seu "território econômico supranacional", que era diferente do que havia acontecido com a Grã Bretanha. Por fim, a terceira vertente da teoria de dependência - de filiação a um só tempo marxista e cepalina - foi a que teve vida mais longa e efeitos mais surpreendentes, por três razões fundamentais: primeiro, porque defendia a viabilidade do capitalismo latino-americano; segundo, porque defendia uma estratégia de desenvolvimento "dependente e associado" com os países centrais; e terceiro, porque saíram deste correntes alguns dos principais líderes políticos e intelectuais da "restauração neoliberal" dos anos 90.

Como se tivesse ocorrido um apagão mental, velhos marxistas, nacionalistas e desenvolvimentistas abandonaram suas teorias latino-americanistas e aderiram à visão do sistema mundial e do capitalismo, própria do liberalismo europeu do século XVIII. Nesta linha de pensamento, ainda em 2009, um importante intelectual desta corrente de ideias defendia - por cima de tudo o que passou no mundo, desde o início do Século XXI - que "não existe mais geopolítica nem imperialismo no novo mundo pós-colonial, da globalização, do sistema político e da democracia global... [e que] a estratégia clássica da geopolítica de garantir acesso exclusivo a recursos naturais na periferia do capitalismo já não faz sentido não só por seus custos, mas também porque, com a globalização, todos os mercados estão abertos, e é inimaginável que um país recuse vender a outro, por exemplo, petróleo a preço de mercado... [donde], as guerras entre as grandes potências já não fazem sentido porque todas as fronteiras já estão definidas..." (Bresser Pereira, L. C. "O mundo menos sombrio. Política e economia nas relações internacionais entre os grandes países", in Jornal de Resenhas. Março de 2009, Nº 1. Discurso Editorial, São Paulo, pp: 6 e 7). Ingenuidade à parte, os liberais nunca tiveram uma teoria original a respeito da América Latina, nem precisam dela. A repetição recorrente de algumas platitudes cosmopolitas foi mais do que suficiente para sustentar sua visão da economia mundial e legitimar sua ação política e econômica idêntica em todos os países. Mas no caso dos intelectuais progressistas do continente é uma má notícia saber que não existe mais uma teoria capaz de ler e interpretar a história do continente, e fundamentar uma estratégia coerente de construção do futuro, respeitada a imensa heterogeneidade latino-americana.

José Luís Fiori é professor titular do Instituto de Economia da UFRJ e autor do livro "O Poder Global e a Nova Geopolítica das Nações" (Boitempo, 2007). Escreve mensalmente às quartas-feiras.

terça-feira, 21 de abril de 2009

Água, direito humano

O Estado de São Paulo

21/04/2009

Benedito Braga

Uma importante discussão em torno da água como direito humano ganhou destaque recentemente na mídia internacional. O tema foi discutido por ministros de vários países no encerramento do 5º Fórum Mundial da Água, em Istambul. Organizado pelo Conselho Mundial da Água (CMA) e pelo governo da Turquia, o fórum reuniu um número recorde de participantes: 30 mil, vindos de 192 países. Entre eles estavam chefes de governo, ministros de Estado, acadêmicos, parlamentares, técnicos do setor de recursos hídricos, ONGs, o setor privado interessado no tema da água e usuários de recursos hídricos.

Sem dúvida, esse é um evento mundial sobre recursos hídricos com grande legitimidade e enorme alcance político. Portanto, não é difícil entender por que o tema água como direito humano foi o que mereceu maior atenção da imprensa. Erroneamente, porém, foi noticiado que o Brasil se posicionou contra o direito dos cidadãos de terem acesso à água.

O que não está claro para a maioria das pessoas é que, no âmbito das Nações Unidas, existem dois grupos de direitos humanos: o grupo dos direitos civis e políticos e o grupo dos direitos econômicos, sociais e culturais. As implicações, especialmente em termos de implementação, para esses dois grupos são bastante diversas. O primeiro grupo de direitos (civis e políticos) é garantido aos cidadãos simplesmente por um compromisso do governo de não intervir em sua vida. Direitos dessa natureza são, por exemplo, o direito à liberdade, à não discriminação quanto à raça ou a garantia de não submeter seus cidadãos à tortura. Garantir esses direitos não requer um grande orçamento nem complexos arranjos legais e institucionais. Basta vontade política.

Já os direitos econômicos, sociais e culturais requerem intervenções governamentais significativas em termos legais e institucionais para desenvolvimento de políticas públicas adequadas à sua implementação. Além disso, os recursos financeiros devem ser providos de forma tempestiva para sua concretização. Em geral, esses recursos são de grande monta. Vários direitos humanos reconhecidos pelo Brasil se situam nessa categoria, como, por exemplo, o direito à saúde, à alimentação e à habitação. Estimativas do Ministério das Cidades dão conta de que seriam necessários R$ 180 bilhões para atingir as Metas do Milênio das Nações Unidas no ano de 2015, ou seja, para reduzir à metade o número de brasileiros sem acesso a água potável e saneamento básico.

A inserção do acesso à água potável no contexto dos direitos humanos implicaria o fato de todo cidadão do mundo ter esse direito. Países pobres da África e da América Latina que não detêm os recursos financeiros adequados para fazer frente a todas as suas demandas sociais nas áreas de educação, saúde e infraestrutura de energia e transportes seriam obrigados a cumprir essa meta sem ter os meios para tal. A posição brasileira foi muito nobre. Sugeria que esse direito poderia ser aprovado na declaração ministerial desde que fosse incluído na categoria dos direitos econômicos, sociais e culturais. Além disso, propunha que recursos financeiros novos fossem providos pelas sociedades mais abastadas do Hemisfério Norte às nações menos favorecidas do Hemisfério Sul. Por alguma razão, não houve consenso em torno dessa tese.

Os grupos ativistas que promovem o chamado "direito humano à água" focam somente o uso da água para o abastecimento doméstico. Além disso, não indicam como os países pobres farão frente às demandas financeiras para pôr em prática tal direito. A água é um bem público com valor econômico. Isso é o que determina a Lei das Águas, aprovada em 1997 pelo Congresso brasileiro. Mas não significa que a água não tenha outros contornos. A água é um elemento de grande significância religiosa, ela purifica a alma. Para o ambientalista significa vida para a flora e a fauna aquáticas. Para o engenheiro significa a oportunidade de utilizá-la na geração de energia, na navegação, no abastecimento das populações e na produção de alimentos. Assim, a água é um elemento vital, mas ao mesmo tempo é um recurso à disposição da humanidade.

Podemos dizer que a água é, ao mesmo tempo, um direito humano no contexto dos direitos econômicos, sociais e culturais e também um recurso natural com valor econômico. Esses dois conceitos não guardam nenhuma contradição. O acesso à água potável é, sim, um direito dos cidadãos brasileiros. Para tanto o governo deve viabilizar os recursos financeiros para que o consumo humano seja atendido. Outros usos que produzirão resultados econômicos - como, por exemplo, as atividades comercial, industrial e agrícola - devem ser cobrados para incentivar o uso racional e eficiente do recurso. Não se trata de "privatizar" a água. Trata-se de reconhecer o seu valor econômico e induzir o seu uso racional. Até por que não se pode privatizar um bem que constitucionalmente é público. A Constituição brasileira define em seus artigos 20 e 26 que os rios, lagos e as águas subterrâneas são bens ou dos Estados ou da União e, portanto, não podem ser "vendidos" ou "concessionados" a particulares.

Atualmente, no Brasil, já existem comitês de bacia hidrográfica que instituíram a cobrança pelo uso da água em suas jurisdições. A Agência Nacional de Águas (ANA) garante que cada centavo arrecadado retorne ao comitê para aplicação direta em obras e serviços para melhoria da qualidade dos rios e lagos das bacias onde os recursos foram arrecadados. Assim, espera-se que a médio e longo prazos possamos efetivamente viabilizar o direito de acesso à água potável em nossas bacias hidrográficas. Ao mesmo tempo, a utilização da água como bem econômico trará benefícios inegáveis às gerações de brasileiros de hoje e de amanhã.

Benedito Braga professor titular da Escola Politécnica da USP, vice-presidente do World Water Council, é diretor da ANA

Ahmadinejad tumultua conferência da ONU

Folha de São Paulo

21/04/2009

Marcelo Ninio

Ataque do presidente do Irã a Israel provoca saída de europeus de plenário do encontro que revisará metas contra o racismo

Iraniano diz que Israel é racista e país chama seu embaixador na Suíça; mais uma vez, conflito no Oriente Médio sequestra discussões

MARCELO NINIO, de GENEBRA

A Conferência contra o Racismo das Nações Unidas começou ontem marcada por confronto e polêmica, com um discurso do presidente iraniano, Mahmoud Ahmadinejad, que provocou protesto e a retirada coletiva dos representantes da União Europeia.
A debandada dos diplomatas e a tensão provocadas pelos ataques de Ahmadinejad a Israel causaram desconforto entre os organizadores da reunião, a primeira da ONU a tratar do racismo em oito anos.
O encontro se esvaziara ainda antes da abertura. Vários países, entre eles EUA. Israel e quatro membros da União Europeia, boicotaram a conferência, temendo que ele servisse a ataques antissemitas.
Ontem Israel convocou de volta o seu embaixador na Suíça em protesto contra o tratamento de chefe de Estado recebido por Ahmadinejad. O secretário-geral da organização, Ban Ki-moon, chegou a reunir-se com o líder iraniano antes de seu discurso, para pedir moderação. O objetivo era evitar que a agenda fosse sequestrada pelo conflito no Oriente Médio e o confronto entre o mundo islâmico e o Ocidente, como ocorreu em 2001, na Conferência contra o Racismo de Durban (África do Sul).
Mas o esforço foi em vão.
Único chefe de Estado presente em Genebra e primeiro representante a discursar, Ahmadinejad mal havia começado a falar quando foi interrompido por gritos de "racista" e "vergonha" de ativistas judeus.
Usando peruca colorida, um deles foi ao pódio e atirou narizes vermelhos de palhaço em Ahmadinejad. "É para mostrar que uma conferência contra o racismo aberta pelo maior racista só pode ser tratada como circo", diria mais tarde um dos manifestantes, o estudante francês Jeremy Cohen.
Sorridente, Ahmadinejad não pareceu se abalar, e logo exibia a sua conhecida retórica contra Israel e de negação do Holocausto. "Após a Segunda Guerra, eles recorreram à agressão militar para deixar uma nação inteira sem lar, sob o pretexto dos sofrimentos judeus e da ambígua e dúbia questão do Holocausto", disse.
No momento em que o presidente iraniano se referiu a Israel como "um regime totalmente racista", os diplomatas da UE em bloco deixaram a Assembleia da ONU em Genebra.
"É totalmente injusto e inaceitável usar os judeus e Israel como bodes expiatórios", disse à Folha o embaixador da França, François Zimeray, o primeiro a se levantar.
A delegação do Brasil, chefiada pelo ministro da Igualdade Racial, Edson Santos, não se retirou, mas também não aplaudiu o discurso do iraniano. Santos considerou um erro a debandada europeia, pois serviu para chamar mais atenção para uma "falsa polarização".
Sobrevivente do Holocausto e Nobel da Paz, Elie Wiesel estava entre os manifestantes contra Ahmadinejad. "Sua presença é um insulto à decência e à humanidade", disse Wiesel, acompanhado do advogado americano Alan Dershowitz, um ativo defensor de Israel.
"É bom que o principal palestrante seja uma pessoas racista e contra os direitos humanos, exatamente como é esta conferência", ironizou Dershowitz, que foi confrontado pelo cineasta Pervez Charman. "O que você sabe sobre o Irã? Racista é o Estado de Israel", gritou Charman, enquanto era contido por seguranças.
Também conhecida como Durban 2, a conferência segue até sexta. Sem Ahmadinejad, a ONU espera que o foco retorne ao objetivo do encontro, que é avaliar os progressos no combate ao racismo desde 2001.
Ban Ki-moon criticou o iraniano: "Deploro o uso desta plataforma pelo presidente iraniano para acusar, dividir e incitar".

Fidel diz que Obama foi ''evasivo'' sobre embargo

O Estado de São Paulo

21/04/2009

AP, AFP, EFE E REUTERS


O líder cubano, Fidel Castro, voltou a pedir que os EUA levantem o embargo imposto à ilha há quase cinquenta anos. Logo após o encerramento da 5ª Cúpula das Américas, realizada em Trinidad e Tobago no fim de semana, Fidel publicou mais um de seus artigos comentando o encontro.

No texto, o cubano afirmou que o presidente americano, Barack Obama, é "muito inteligente", mas lamentou o fato de ele ter sido "evasivo" ao responder perguntas sobre o embargo durante a entrevista coletiva que concedeu após a reunião. Além disso, Fidel não fez nenhuma menção aos pedidos do líder americano para que Havana liberte os prisioneiros políticos ou realize uma abertura política no país.

"(Obama) foi áspero e evasivo com relação ao bloqueio", escreveu o cubano. "Desejo recordar um princípio ético elementar relacionado com Cuba: qualquer injustiça, qualquer crime, em qualquer época, não tem desculpa para perdurar; o cruel bloqueio contra o povo cubano custa vidas e sofrimento."

Obama reconheceu que a política de embargo contra a ilha havia fracassado, mas disse que esperava que Cuba libertasse presos políticos em um gesto de boa vontade para avançar no progresso das relações com os EUA. Na véspera da cúpula, Obama levantou algumas restrições impostas à ilha, como a cota de remessas enviadas ao país por cubano-americanos e o limite de viagens realizadas para Cuba.

Fidel, entretanto, não comentou em seu artigo a oferta feita na quinta-feira por seu irmão Raúl, que disse estar disposto a discutir "todos os temas" com os EUA - entre eles, a questão dos direitos humanos e da liberdade de imprensa na ilha. O líder cubano ainda afirmou que Obama reconheceu os programas de assistência implementados pelo governo cubano na região - como o envio de médicos a países da América Latina e do Caribe. No entanto, ele deixou claro que esses projetos fazem parte da "tradição" da Revolução Cubana e não são feitos para "ganhar influência".

PRESSÃO BRASILEIRA

O presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, disse ontem que os EUA têm a oportunidade de abrir um novo capítulo na história em sua relação com a América Latina. Lula ainda afirmou que Obama deve se comprometer a ajudar no desenvolvimento da região.

"Se os EUA quiserem, têm a oportunidade de escrever um novo capítulo nessa história, não de ingerência, mas de associação", disse Lula durante seu programa Café com o Presidente. "Há muitos países do Caribe e da América Central que têm suas economias voltadas aos EUA, e há também mais de 40 milhões de latino-americanos que vivem nos EUA e contribuem muito para o desenvolvimento desses países pequenos."

segunda-feira, 20 de abril de 2009

Cúpula das Américas deixa saldo positivo

Época

20/04/2009

Murilo Ramos
A ação combinada de Lula e Barack Obama pode fazer bem para o futuro político do continente
Juan Barreto
NOVOS TEMPOS

Em 2005, era difícil esconder a sensação de fiasco no final da IV Cúpula das Américas, realizada em Mar Del Plata, na Argentina. Depois que ficou claro que não trouxera nenhuma ideia importante na bagagem, o então presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, foi submetido a um isolamento constrangedor. Nos intervalos do encontro, enquanto outros presidentes se dividiam em rodas de conversa, Bush ficou vários momentos sozinho. Com o governo moído pelo mensalão, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva estava, na ocasião, longe de exibir o prestígio e o desembaraço acumulados no segundo mandato – havia quem duvidasse até que fosse disputar a reeleição. Sem muito para fazer, mas revigorado pela alta dos preços da principal fonte de riqueza de seu país, o petro-presidente da Venezuela, Hugo Chávez, subiu no palanque de um comício contra a globalização, que reuniu 25 mil pessoas.
Iniciada na sexta-feira, em Port of Spain, capital do arquipélago de Trinidad e Tobago, no Mar do Caribe, a V Cúpula das Américas ocorre num mundo novo, diferente e inseguro, que enfrenta com perplexidade crescente e ideias contraditórias a pior crise econômica em três gerações. Aguardado em Port of Spain com as honras e a reverência de quem governa o país que ainda é a primeira economia do planeta, Barack Obama publicou um artigo em que escreveu: “Nós podemos trabalhar como parceiros”. Em seguida, Obama não deixou de acrescentar que reserva a seu país o papel de “liderança” na região. Enquanto Hugo Chávez reforçava a retórica antiamericana, o jornal The New York Times previa um evento em que 33 chefes de Estado pretendem “redefinir sua relação” com os Estados Unidos. Talvez seja exagero esperar tanto.
Num gesto próprio de quem escolheu um aliado para ajudá-lo a aproximar-se de um continente que há décadas se queixa de ser tratado como a última das prioridades por Washington, Obama, na quinta-feira, telefonou para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Os dois conversaram durante 20 minutos. Lula disse a Obama que “os Estados Unidos precisam ter para a América Latina um olhar pensando no desenvolvimento tecnológico, na parceria e na contribuição”. O bom relacionamento entre Lula e Obama é um sinal de que a diplomacia brasileira, daqui por diante, será submetida a um teste de maturidade compatível com o bom momento de prestígio internacional que o país atravessa. Lula tornou-se personagem de um irreverente desenho animado da TV americana, South Park, numa demonstração de que sua personalidade começa a se tornar conhecida pelo público mais amplo de outros países. Ele também foi apontado por uma pesquisa de opinião como o segundo presidente mais popular das Américas, atrás apenas de Barack Obama.
O desafio brasileiro será comportar-se como parceiro preferencial dos EUA sem parecer submisso ao vizinho poderoso. “É preciso que haja uma mudança na visão que os Estados Unidos têm da política latino-americana”, disse Lula em sua conversa com Obama. “Nós não temos mais guerra fria, não temos mais luta armada.” Nos últimos 50 anos, a Casa Branca ocupou-se dessa região do mundo em duas oportunidades. Uma delas foi em 1959, depois que Fidel Castro tomou o poder em Cuba e surgiram organizações armadas por todo o continente. Numa reação típica da Guerra Fria, Washington aliou-se a regimes militares que jogaram o continente num longo inverno antidemocrático. Quase três décadas depois, George Bush pai lançou a ideia da Alca, a zona americana de livre comércio. A proposta foi enterrada durante o governo de Bush filho por falta de interesse dos principais parceiros, a começar pelo Brasil de Lula.
Pablo Martinez
Os irmãos e líderes Fidel e Raúl Castro – EUA finalmente acenam para Cuba
As duas questões estiveram presentes em Port of Spain. Numa mudança em direção a Cuba, Obama eliminou uma regra que impunha limites às viagens de cubanos-americanos à terra de seus ancestrais. Também revogou restrições à remessa de divisas para familiares. São decisões simpáticas, mas de pouco efeito prático, diz Marcelo Coutinho, cientista político e fundador do Observatório Político Sul-Americano do Iuperj (Instituto Universitário de Pesquisa do Rio de Janeiro). “As medidas são coerentes com as promessas de Obama. Mas Cuba precisa de grandes investimentos, principalmente para melhorar a infraestrutura do país, que é precária. Isso só vai ocorrer com o fim do bloqueio econômico”, diz Coutinho, referindo-se ao isolamento comercial, tecnológico e financeiro de Cuba. A caminho de Port of Spain, Obama deixou claro que descarta uma mudança desse tamanho. Repetindo um gesto que a ditadura dos irmãos Castro encara como uma interferência em assuntos internos, convocou “todos os nossos amigos do hemisfério para se unir no apoio a liberdade, igualdade e direitos humanos em Cuba”.
Em encontros preparatórios, diplomatas fizeram o rascunho de um documento para ser assinado pelos chefes de governo – embora qualquer unanimidade seja sempre uma incógnita na presença de Hugo Chávez. Nos capítulos econômicos e sociais, o documento contém afirmações sob medida para obter apoio irrestrito. Compromete-se a reduzir à metade a pobreza do continente até 2015, aumentar os gastos com saúde e educação, elevar a porcentagem de alunos nas universidades – e até reduzir para 30 dias o prazo máximo para abertura e fechamento de empresas.
Um dos pontos polêmicos do documento é o parágrafo 51, em que se faz a defesa de “democracias fortes e de uma boa governança, do império da lei e do respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais”. Em dificuldade crescente para manter sua popularidade depois que o preço do petróleo desabou, nas últimas semanas Hugo Chávez multiplicou iniciativas antidemocráticas, colocando em vigor até propostas que a população venezuelana rejeitou em plebiscito. Depois de passar quatro dias em greve de fome para pressionar a oposição a realizar medidas destinadas a encaminhar as eleições onde é candidato favoritíssimo à própria reeleição, o presidente da Bolívia, Evo Morales, declarou-se “marxista, leninista, comunista e socialista”, numa definição a anos-luz de qualquer regime democrático que se preze. Por sua origem ligada a mudanças sociais, e um compromisso sem manchas na relação com a democracia, o governo Lula pode desempenhar um papel decisivo nessa discussão necessária.

Reunião termina sem consenso

Jornal do Brasil

20/04/2009

Divergência entre EUA e membros da Alba sobre Cuba impediu acordo quanto ao texto final

Depois de três dias, a 5ª Cúpula das Américas terminou ontem em Porto de Espanha, capital de Trinidad e Tobago, sem consenso sobre a declaração final. Divergências entre posições dos EUA e dos países da Alternativa Bolivariana para as Américas (Alba) sobre o fim do embargo a Cuba e o combate à crise econômica impediu acordo sobre o texto.

– A declaração em si não tem a completa aprovação dos 34 países presentes. Alguns deles manifestaram suas reservas – disse o premier Trinidad e Tobago, Patrick Manning, no encerramento.

O premier destacou como pontos altos do encontro o momento inicial em que o presidente americano, Barack Obama, falou de "uma nova direção e uma nova visão dos Estados Unidos" ao continente, o que foi "refletido em uma declaração equivalente do presidente da Venezuela, Hugo Chávez".

A visão de Manning foi compartilhada pelos presidentes da Bolívia, Evo Morales, e da Nicarágua, Daniel Ortega, em prol de um novo espírito de cooperação.

Antes mesmo do início da cúpula, o presidente Hugo Chávez já havia dito que países da Alba não assinariam a declaração. O grupo considerou que o documento "não dá resposta à crise econômica global" e que Cuba foi "injustificadamente" excluída.

Os membros da Alba também defendem a volta de Cuba à Organização dos Estados Americanos (OEA), da qual foi excluída em 1962, ano em que o embargo foi imposto à ilha.

Ao final do encontro, Obama declarou não ter concordado com tudo que foi dito na cúpula pelos líderes de outros países, mas ressaltou que vê chances de se fazer progresso frente a "debates e ideologias velhos que dominaram e distorceram as discussões por tempo demais".

O líder ressaltou que questões como "liberdade de expressão e presos políticos [em Cuba] (...) não podem ser varridas para o lado".

– Todos líderes presentes aqui foram eleitos democraticamente. Isso ainda não acontece em Cuba. Fidel dizer que temos de discutir não apenas o embargo, mas direitos humanos é bom sinal – acrescentou.

Avanços

Apesar da falta de acordo, a reunião serviu para que Obama se aproximasse de países com os quais as relações estavam abaladas. Na sexta-feira, ele apertou as mãos de Chávez, Ortega e Morales.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse que ficou positivamente surpreso com o resultado do encontro, em que Obama "deve ter tomado um banho de América Latina" e houve evolução nas relações dos EUA com o continente.

Além da resistência da Alba, questões polêmicas, como produção de biocombustíveis, colocaram em choque posições de países como Brasil – entusiasta da produção energética a partir deste modelo – e Bolívia – que acredita na escassez de alimentos como consequência.