quinta-feira, 28 de agosto de 2008

Raposa/Serra do Sol: voto do relator

Não foi desta vez que o caso da reserva indígena Raposa/Serra do Sol teve a sua deliberação final, em virtude do pedido de vista feito pelo ministro Carlos Menezes Direito. Entretanto, já podemos saber a opinião do ministro Carlos Ayres Britto, relator do processo, sobre a querela. Sua argumentação foi amplamente em favor da causa indígena, defendendo a manutenção da reserva em caráter contínuo. Abaixo, seguem os principais aspectos do voto, que está disponível em sua íntegra aqui.



Notícias STF

Quarta-feira, 27 de Agosto de 2008 Voto do relator: demarcação em ilhas asfixia cultura indígena

O ministro Carlos Ayres Britto considerou constitucional a demarcação da área indígena Raposa Serra do Sol de forma contínua, como determinado pela Portaria 534/05, do Ministério da Justiça, e homologada por decreto do presidente Lula. Para ele, a demarcação em forma de ilhas, ou ”queijo suíço”, como defendido pelo estado de Roraima e por produtores de arroz, seria asfixiar as culturas das comunidades e desrespeitar frontalmente a Constituição Federal.

O ministro disse ainda que, para ele, deve ser revogada imediatamente (após o fim do julgamento) a liminar concedida na Ação Cautelar 2009, em abril deste ano, que suspendeu operação Upakaton, da Polícia Federal, para retirada dos rizicultores da região.

A demarcação da Raposa Serra do Sol é um “ato meramente declaratório de uma situação jurídica preexistente”, disse o ministro. Isso porque, frisou Ayres Britto em seu voto, a Constituição determinou a data de sua promulgação como sendo o marco temporal para definir as posses imemoriais. É como se em outubro de 88, explicou, se tirasse uma radiografia da situação indígena em todo o Brasil.

Assim, como a área da Raposa Serra do Sol é ocupada há mais de 150 anos pelas etnias Ingarikó, Makuxi, Taurepang e Wapichana, elas têm direito à posse da área, conforme determina a Carta Magna em seu artigo 231. Os rizicultores só passaram a tomar posse, de forma ilegítima, a partir do ano de 1992, lembrou Ayres Britto. E segundo provas constantes dos autos, foi por meio de esbulhos que no decorrer dos anos fez suas extensões se multiplicarem.

O ministro fez menção direta à fazenda Guanabara, que teve ocupação autorizada pelo Incra com base em procedimentos ainda não concluídos, e sem consultar a Funai. Por isso, deve ser considerada inválida essa ocupação, mesmo que tenha havido um processo judicial envolvendo a fazenda, com trânsito em julgado no Tribunal Regional Federal da 1ª Região, disse o ministro.

Reconhecimento constitucional

A Constituição Federal não concede aos índios o direito sobre as terras, disse o relator. A Constituição faz mais que isso. Em seu artigo 231, a Lei Republicana “reconheceu” os direitos originários dos aborígenes sobre as terras que ocupam.

Esse reconhecimento, ponderou Ayres Britto, prepondera sobre escrituras públicas ou outros títulos que supostamente garantiriam a posse aos fazendeiros. Para o ministro, esses documentos são nulos.

E é a própria Constituição quem diz como deve ser definida a demarcação, continuou o ministro. Está no mesmo artigo, em seu parágrafo 1º, que a área deve permitir aos índios habitação, bem-estar, atividade produtiva, e reprodução física e cultural das etnias.

Para o ministro, também não se pode falar em subtração do território estadual. Nesse sentido, ele lembrou que, juntos, os estados do Espírito Santo, Alagoas e Rio de Janeiro reúnem uma população de mais de 21 milhões de brasileiros em uma área pouco superior a 121 mil quilômetros quadrados. Essa área é pouco menor do que a área que cabe ao estado de Roraima, descontadas todas as áreas indígenas demarcadas. E isso para uma população de cerca de 400 mil habitantes. “Tudo em Roraima é desmesurado, é gigantesco”, disse Ayres Britto.

Soberania Nacional

Sobre a questão da soberania nacional, Britto lembrou que as comunidades indígenas acabam ocupando mais densamente as faixas de fronteira exatamente porque são empurradas para lá, forçadas, esmagadas pela intolerância dos não-índios. Normalmente, disse Ayres Britto, os entes federados e fazendeiros locais se conjugam para discriminar os indígenas, e acabam empurrando os índios para essas regiões mais inóspitas do país. Mas não existe proibição à atuação da Polícia Federal e do Exército nessa área. O ministro deixou claro, ainda, que as comunidades indígenas acabam ajudando, e muito, na defesa da soberania nacional.

Na verdade, o ministro disse entender que as autoridades devem se conscientizar de seu poder de alertar as comunidades indígenas dos riscos representados por algumas ONGs estrangeiras, e reforçar nos índios o sentimento de brasilidade que nos une.

Os indígenas, como conhecedores da região, sabem opor-se a eventuais tentativas de invasão estrangeira, disse o ministro. O tráfico de drogas, o contrabando de armas não é culpa dos índios. Ninguém proíbe Exército e Polícia Federal de atuarem na área. “Estado e comunidades indígenas fazem a mais patriótica parceria”, arrematou.

Portaria

Ayres Britto defendeu a demarcação contínua, como definida na Portaria 534, do MJ, como única forma de garantir a sobrevivência das etnias indígenas. No caso da Raposa Serra do Sol, o ministro explicou que existem realmente várias etnias, mas que suas áreas são “lindeiras”, ou vizinhas. E que esses grupos estão acostumados a uma convivência pacífica na região, há décadas, além de compartilharem uma mesma língua.

Ao analisar a portaria que definiu a área, o ministro argumentou que não encontrou nenhuma ilegalidade. Tanto o estado de Roraima quanto os demais atores puderam exercer o direito à ampla defesa. Quanto à suposta parcialidade do advogado que assinou parecer favorável à demarcação, Britto salientou que o parecer é uma peça meramente opinativa. Sobre a alegação de que dois motoristas teriam sido citados como técnicos agrícolas e atuado nos estudos para a demarcação, o ministro revelou que o próprio laudo antropológico reparou o erro.

Argumentos

O Brasil se encontra na vanguarda mundial do cuidado jurídico com os indígenas. Nenhum documento estrangeiro supera a Constituição Federal brasileira em modernidade e humanismo, com relação à questão indígena.

Ayres Britto iniciou seu voto na Petição (PET) 3388 lembrando de antecedentes da Corte em questões indígenas. De acordo com o ministro, o tema é motivo de divergência entre antropólogos, militares, políticos, cientistas, e diversas outras áreas do saber. Porém, frisou que é pacífico o entendimento do STF de que a disputa pelas riquezas das terras dos índios é sempre o núcleo fundamental da questão indígena no Brasil.

O ministro, contudo, disse discordar da tese de que exista um antagonismo entre a causa indígena e o desenvolvimento, defendido principalmente por líderes políticos locais e fazendeiros e grupos econômicos com interesses particulares.

O que falta ao Brasil é aprender a tirar proveito da interação entre índios e não-índios, para permitir um desenvolvimento mais equilibrado, sustentável, com vantagens para os dois lados, defendeu o ministro.

O relator disse que é preciso fazer uma leitura sistêmica e global da Lei Republicana, e os nove preceitos que tratam da causa indígena. Mas deve ser dado destaque ao parágrafo 4º do artigo 231, que afirma que “as terras de que trata este artigo [indígenas] são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis”.

Brasileiros

Todos os grupos humanos que existem no país formam uma única realidade cultural brasileira, lembrou o ministro, principalmente os europeus, os afro-descendentes e os índios. Portanto, como brasileiros, não se pode falar em nação ou pátria indígena. Nenhuma comunidade indígena pode ir a cortes internacionais como nação ou povo independente, criticou o ministro, em referência à possibilidade de grupos recorrerem a instâncias internacionais, caso o STF decida de forma contrária a seus interesses. Britto disse estranhar o fato de certas lideranças aderirem à Declaração Internacional dos Direitos dos Povos Indígenas. “Nosso texto constitucional já os protege na medida certa”, afirmou.

Outro ponto que o ministro fez questão de ressaltar é o fato de que as terras indígenas são bens da União, e se constituem em um patrimônio que não é compartilhado com nenhum outro ente jurídico. Mas que, nem por isso, os índios deixam de contar com um vínculo jurídico com os estados, e são beneficiados com saúde, educação, segurança pública, profissionalização. A terra indígena é uma categoria jurídica, mas não um ente federado. Toda a atividade em área indígena deve ser feita em comum acordo com a União.

Fraternal

Em seu texto, a Constituição Federal brasileira permite que se chegue a um novo tipo de igualdade civil e moral, das minorias. Uma nova era, que direciona à inclusão social, para alcançar a integração comunitária de todo o povo brasileiro, índios, brancos e afro-descendentes. “É a fraternidade como princípio político”, pontuou Ayres Britto.


quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Berlusconi e o direito penal do inimigo

No artigo abaixo, Luiz Flávio Gomes analisa a situação das leis italianas sob o governo de Silvio Berlusconi, retomando a idéia de direito penal do inimigo, em relação aos imigrantes ilegais situados na Europa, e lançando o termo "direito penal do muy amigo", para ser referir à iniciativa do primeiro-ministro italiano de promulgar leis em seu favor.


Berlusconi, O Inimigo e o Direito Penal do "Muy Amigo"

Luiz Flávio Gomes

A tese central defendida por Zaffaroni (“El enemigo en el derecho penal”, Bogotá: Ibañez, 2006, p.19 e ss.) é a seguinte: o direito penal sempre discriminou pessoas, logo, sempre existiu direito penal do inimigo, que divide os seres humanos em pessoas e não-pessoas (cidadão e inimigo).

Os cidadãos contam com garantias e submetem-se ao poder punitivo interno legítimo (o que observa o devido processo legal). Os inimigos (que são “entes daninhos ou perigosos”) estão sujeitos ao PPBI, ou seja, poder punitivo interno bruto (suspeitos ou réus sem direitos ou garantias), que é típico do estado de polícia.

O direito penal do inimigo é alimentado pela ideologia do inimigo, que é a fonte mais devastadora da concepção humanista da história e da cultura, isto é, das democracias liberais e sociais (republicanas). Todas as idéias de progresso, de dignidade humana, de autonomia do ser humano (frente a Deus e frente ao Poder), de liberdade, igualdade e fraternidade, que giram em torno de uma outra idéia superior que consiste em admitir o homem como centro do mundo (visão antropocêntrica, não teocêntrica nem tecnocêntrica), encontram na ideologia do inimigo o seu desafeto mais destrutivo e dissolvente (cf. Gregório Peces-Barba, em El País de 1º de julho de 2008, p. 29).

Dessa visão humanista e integradora, ou seja: includente, está se afastando, neste momento, a União Européia, que acaba de aprovar resolução que não só conduz à expulsão dos imigrantes ilegais, senão também que permite a prisão deles por longo período (de seis meses até quatro anos, em alguns países). A Itália, de Berlusconi e seus caudatários e asseclas déspotas, foi o primeiro país a aprovar o crime de “ser imigrante ilegal”. Trata-se, como se vê, de um novo exemplo do nazista direito penal de autor que pune o sujeito pelo que ele “é”, não pelo que ele “fez”.

Os legisladores, juízes, governantes e agentes públicos mais autoritários são, em geral, os que mais se corroem internamente e dão vazão às suas frustrações punindo duramente nos outros as culpas próprias (é uma espécie de purgação às avessas). Os mais corruptos e violentos tendem a ser também os mais algozes contra os outros.

Enquadra-se seguramente nesse perfil o primeiro-ministro Silvio Berlusconi que acaba de revelar ao mundo, mais uma vez, a dupla face de todos os que governam ditatorialmente: para os inimigos a lei (dura lex, sed lex); para os amigos ou para o próprio governante o vale-tudo.

Berlusconi, que é réu em vários processos, acaba de fazer aprovar uma lei que lhe assegura impunidade em todos eles (em geral, pesa contra o Il Cavaliere a acusação de corrupção, sendo expressivo o caso Mills, no qual ele teria pago 580 mil euros de corrupção).

Por meio do Parlamento, que lhe é favorável, buscou o privilégio de não poder ser processado criminalmente enquanto for primeiro-ministro. Primeiro quis suspender o andamento dos processos criminais iniciados até 30 de junho de 2002 (justamente os dele achavam-se nesse período). Depois conseguiu uma lei (sancionada em 23/7/08) que garante a improcessabilidade dos governantes italianos. Berlusconi, agradecendo os senadores, disse: “finalmente os juízes não podem mais me perseguir”. Esse é o direito penal do “muy amigo”.

Nas democracias formais mandava a vontade das maiorias. Diziam: a maioria aprovou, está aprovado! Essa concepção de democracia está morta. Hoje vale a democracia material, que exige do Parlamento a aprovação de leis coerentes com o Estado de direito constitucional. Por meio de uma lei, Berlusconi está afrontando o direito e a Justiça.

A Itália se converteu (como diz Ferrajoli) no reino da anti-política. A política (que representaria os interesses públicos e gerais) passou a ser subordinada aos interesses econômicos particulares do seu governante. Toda brutal concentração de poder conduz a abusos e arbitrariedades (diz Perfecto Andrés Ibáñez, El País de 20 de julho de 2008, p. 21).

Na Itália do senhor Berlusconi são incontáveis as leis ad personam (leis feitas para ele ou para os interesses do seu grupo: lei da importação de capitais exportados, diminuição da pena no delito de balanço falso, diminuição de prazos prescricionais, etc.). Esse imputado nobríssimo (Il Cavaliere) goza de todos os benefícios imaginários, com total violação ao princípio da igualdade e a todos os outros princípios republicanos. Uma das suas últimas pretensões atendidas consiste em impossibilitar a interceptação telefônica nos crimes de colarinho branco.

Os italianos, que no final do século XIX e princípio do século XX fizeram a América, ou seja, que invadiram as Américas e se tornaram ricos e afortunados, agora (e isso é o que dizem os adeptos da Lega Nord, que apóia Berlusconi) num recente cartaz estampam a imagem de um índio norte-americano e nele se diz: “Eles sofreram a imigração. Agora vivem em reservas. Pense nisso”.
Quando os italianos invadiram o mundo evidentemente não foram rechaçados. Interessava-lhes o discurso do humanismo, da inclusão. Agora a moeda é outra: ideologia do inimigo (expulsão, prisão, segregação, exclusão do imigrante).

A pergunta que não se pode deixar de fazer: a Corte Constitucional italiana vai concordar com todas essas leis ad hoc? Haverá controle de constitucionalidade sobre elas? Já em 2004 esse Tribunal supremo dizia que o Parlamento não tem liberdade de escrever tudo que bem entende, sobretudo quando se trata do poder punitivo do Estado. Não se pode transformar em lei um privilégio odioso.

No tempo do Estado de Direito legal (legalista), não se colocava em discussão a validade da lei desarrazoada, absurda, injusta (aliás, confundia-se vigência com validade). No Estado de direito constitucional tudo é distinto. Nem toda lei vigente é válida (como nos ensina Ferrajoli).

O julgamento de Nuremberg (que condenou vários nazistas) foi o símbolo de ruptura do velho Estado de direito legalista. Os nazistas cumpriram a lei, mas violaram o direito. Lei de injustiça extrema não pertence ao direito (Radbruch, Alexy, etc.). Será essa a conclusão da Corte Constitucional italiana em relação a todas as recentes leis ad personam aprovadas sob medida para Berlusconi?

Terça-feira, 19 de agosto de 2008

terça-feira, 26 de agosto de 2008

Julgamento do STF sobre Raposa/Serra do Sol

É interessante que acompanhemos o julgamento do STF, que ocorrerá nesta quarta-feira, dia 27 de agosto, sobre a demarcação da reserva indígena Raposa/Serra do Sol. Trata-se de um caso emblemático, no qual a Suprema Corte Nacional estará diante de dois modelos de construção de Estado, quais sejam, um calcado no ideal de soberania nacional e outro baseado na defesa do multiculturalismo. Não se trata de uma decisão simples, em que a visão do certo e do errado esteja clara. O próprio autor deste post ora pende para um lado, ora para outro. Para desanuviar as idéias, colocamos abaixo duas notícias sobre o tema.

Índios em pauta

STF começa a julgar na quarta demarcação de reserva

O Supremo Tribunal Federal começa, às 9h desta quarta-feira (27/8), a julgar a constitucionalidade da demarcação contínua da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. A previsão é de que o julgamento dure dois dias. O ministro Carlos Britto, relator da Petição 3.388, definiu o caso como um dos mais complexos já relatados por ele. Seu voto tem 108 páginas.

Segundo o ministro, é a primeira vez que o Supremo se debruça detalhadamente sobre a questão indígena. A decisão não envolve apenas os 19 mil índios da Raposa Serra do Sol. Ela deverá servir de base para outros processos sobre as terras indígenas. Levantamento de O Estado de S.Paulo mostra que há 144 ações no Supremo envolvendo a demarcação de terras indígenas na Bahia, Pará, Paraíba, Distrito Federal e Rio Grande do Sul.

“Vamos decidir sobre Raposa Serra do Sol. Mas se decidirmos a partir de coordenadas constitucionais e objetivas, servirá de parâmetro para todo e qualquer processo de demarcação”, afirmou Britto. Uma das ações está há 26 anos no Supremo. Nela, a Fundação Nacional do Índio (Funai) pede a anulação de títulos de posse concedidos pelo governo da Bahia em áreas da reserva indígena Caramuru-Catarina Paraguaçu. A ação deve ser julgada na próxima semana.

A Raposa Serra do Sol é ocupada por indígenas e arrozeiros. A ação que deve ser analisada pede a anulação da portaria que fixou os limites da reserva. Outras 32 ações que questionam a demarcação da reserva também devem ser analisadas pelo STF.

Na segunda-feira (25/8), Britto já afirmava que o seu voto estava praticamente pronto. Apesar disso, ele recebeu em seu gabinete a visita dos dois grupos diretamente interessados: produtores rurais (principalmente rizicultores) e índios.

O ministro Marco Aurélio Mello afirmou também na segunda que, se a demarcação contínua da Raposa Serra do Sol for anulada, se abrirá precedentes para questionamentos sobre outras áreas. “Sem dúvida alguma, se o Supremo fixar que a demarcação deve ser setorizada por ilhas, evidentemente, isso se estenderá a todo o território nacional”, afirmou o ministro, durante o Encontro Nacional do Judiciário, em entrevista coletiva.

Para o ministro Gilmar Mendes, presidente do Supremo, todas as possibilidades estão abertas no julgamento sobre a reserva. “Tenho a impressão de que, independentemente do resultado, esse julgamento vai balizar critérios para a demarcação de terras de fronteira e a participação dos estados nesse processo. O julgamento vai ser rico nesse tipo de orientação”, afirmou em coletiva.

Tendência de Britto

Pelos posicionamentos anteriores, a tendência jurídica do relator, Carlos Britto, é manter a demarcação. No entanto, como o conflito foi agravado pela tensão política e social, ele pode mudar de posicionamento.

Nesta petição, o Supremo não decidirá se a demarcação da terra deve ser contínua ou em ilhas. Na questão de demarcação de terras indígenas, o Judiciário só pode se manifestar, segundo a Constituição, sobre a legalidade dos atos do Executivo. Se o decreto for declarado ilegal, o processo volta às mãos do Executivo e a Funai terá que apresentar novo estudo antropológico.

No começo de abril, o STF entendeu apenas que a operação da PF para retirar os seis arrozeiros da área só pode acontecer quando ficar entendido que o decreto presidencial é legítimo.

A posição de Carlos Britto sobre o decreto pode estar já desenhada no Mandado de Segurança 25.483, julgado pelo Plenário do STF no dia 4 de junho de 2007. Na oportunidade, os arrozeiros questionavam o processo de demarcação. O mérito da questão não foi debatido porque o Mandado de Segurança não é o instrumento jurídico correto para esse tipo de questão.

Em sua decisão, o ministro lembrou, porém, que cabe à União demarcar as terras ocupadas pelos índios conforme dispõe o artigo 231 da Constituição. “Donde competir ao presidente da República homologar tal demarcação administrativa”, anotou Britto.

Para o ministro, não é preciso a manifestação do Conselho de Defesa Nacional (CDN) para a demarcação de terras indígenas em áreas de fronteira. A necessidade de opinião do CDN é inclusive um dos argumentos da última ação ajuizada pelo governo de Roraima em maio. O CDN é o órgão de consulta da Presidência da República para assuntos de soberania nacional.

Fazendeiros, governo estadual e parlamentares do Estado também reclamam de erros legais do decreto, que não garantiu, por exemplo, o direito ao contraditório e da ampla defesa. Carlos Britto nega essa situação ao citar como fundamento o artigo 9º do Decreto 1.775/96, que regula o procedimento administrativo de demarcação de terras indígenas.

A norma concede um prazo de 90 dias desde o início do processo demarcatório para que estados, municípios e interessados manifestem-se à Funai sobre qualquer problema sobre a área ou para pedir indenizações.

Apesar da jurisprudência, não há certeza sobre a posição do ministro. “A gente não tem como prever como o Supremo irá decidir. Mas, sabemos que a demarcação aconteceu completamente dentro da legalidade. Discutiram-se todas as etapas administrativas”, afirma a advogada Ana Valéria Araújo, da ONG Fundo Brasil de Direitos Humanos.

Ana Valéria lembra que o caso ganhou grande proporção com uma série de atores dando opiniões. Por isso, o Supremo pode cair na tentação de fazer um julgamento político. Em uma das decisões sobre o caso, Carlos Britto chegou a comentar que “a própria história do país está em jogo. Não se trata de simples maniqueísmo. O Bem de um lado e o Mal de outro. Aqui, não é fácil separar o joio do trigo”.

Em outra oportunidade, o ministro disse que “diante de um quadro tão complexo, que envolve tantos interesses — particulares e públicos; tantas verdades e meias-verdades; tantas escaramuças e negaças; tanto emocionalismo, enfim, fica extremamente difícil extrair, neste primeiro exame, os requisitos autorizadores da liminar, aí incluída a aparência do bom direito”.

Tensão social

Qualquer que seja o resultado do Supremo, a expectativa é de que cresça a tensão social entre os índios e fazendeiros. O fazendeiro João Paulo Quartiero, que liderou a resistência à presença da Polícia Federal na região, em abril, disse que uma decisão favorável à reserva o deixará duplamente desempregado. "Vou perder a fazenda de arroz e o cargo de prefeito de Pacaraima", explicou o arrozeiro.

A maior parte da população local defende a exclusão do território de Pacaraima da área da reserva. Na oportunidade, dez índios das etnias macuxi e ingarikó foram feridos a balas após tentativa de ocupação da fazenda Depósito, de Quartiero, que logo depois foi preso pela PF.

O macuxi Dionito José de Souza, coordenador do Conselho Indigenista de Roraima (CIR), teme também uma onda revanchista contra os índios da região caso o STF autorize as ilhas territoriais não indígenas. Ele disse que as famílias que já foram retiradas da área ameaçam voltar para os lugares que ocupavam anteriormente. “Pode acontecer um massacre por aqui”, afirma.

O governo começou a retirar as famílias não indígenas da área no ano passado. Segundo levantamento do Incra, na zona rural existiam 180 famílias — das quais 130 requeriam lotes de 100 a 500 hectares e as outras 50 reivindicavam parcelas de até 100 hectares. No total, seriam 33 mil hectares, distribuídos entre os municípios de Boa Vista, Bonfim e Amajari.

Em abril deste ano quase todas as famílias já tinham sido retiradas. Restava, porém, um foco de resistência: um grupo de seis grandes produtores de arroz, sob a liderança de Quartiero. Tropas da Força Nacional de Segurança e da Polícia Federal foram então despachadas para a região, mas acabaram enfrentando resistência. No processo de formação da reserva, povoados foram esvaziados — e logo em seguida ocupados por famílias indígenas.

Processo histórico

As terras indígenas ocupam 42% do estado. O terreno da Raposa Serra do Sol equivale a 7,7% de Roraima. O processo de demarcação da Raposa remonta aos anos 1970. A Funai somente deu seu parecer antropológico sobre a extensão do território em 1993.

O conceito de terra indígena é baseado em quatro elementos — área da aldeia, áreas usadas para atividades de subsistência, áreas para preservação do meio ambiente e área para reprodução física e cultural. Por isso, o conceito de terra indígena deve prever o crescimento da comunidade. O espaço deve ser suficiente para que a tribo sempre se mantenha como um grupo diferenciado.

Argumenta-se que a Raposa Terra do Sol é uma área grande demais para os 19 mil índios que moram lá. Roraima tem 224.299 km² e 391.317 habitantes, o que equivale a 0,57 km²/hab. Na terra indígena, a proporção é de 1,17 km²/hab, duas vezes mais que a média do Estado.

A questão entrou na pauta da Justiça em 1998, quando a área foi demarcada pelo presidente FHC. Na época, já estavam estabelecidos na reserva cerca de 60 fazendeiros.

Agricultores, pecuaristas e políticos do estado ajuizaram na Justiça Federal de Roraima uma série de ações judiciais para impedir o processo do Executivo para efetivar a reserva. A posição dos mandatários do estado fica bem demonstrada quando o então governador Ottomar Pinto, morto o ano passado, decretou luto oficial de sete dias em todo o estado em protesto ao reconhecimento da reserva.

Com o tempo, muitos fazendeiros foram desistindo e deixaram a reserva depois de receberem indenizações da Funai. Sobraram apenas seis rizicultores, que ocupam a área sul da reserva em um espaço que representa cerca de 1% do total das terras.

O assunto chegou ao Supremo em 2004. Na oportunidade, a ministra Ellen Gracie entendeu que a homologação contínua causaria graves conseqüências de ordem econômica, social, cultural e lesão à ordem jurídico-constitucional. Por isso, ela negou o pedido do Ministério Público Federal, que queria suspender a decisão da Justiça Federal no estado permitindo a permanência dos arrozeiros.

Com a homologação da reserva m 2005, pelo presidente Lula, o assunto passou para a competência do Supremo. A partir de 29 de junho de 2006, o Plenário do STF reconheceu que a questão é de sua alçada. As contestações dos agricultores vêm sendo liminarmente negadas pelos ministros desde então.

Revista Consultor Jurídico, 26 de agosto de 2008


Folha de São Paulo - 23 de agosto de 2008

TENDÊNCIAS/DEBATES O STF deve manter a demarcação da reserva indígena Raposa/Serra do Sol em área contínua?

SIM

Direitos constitucionais dos índios

DALMO DE ABREU DALLARI
PARA OS índios brasileiros, a terra não é um valor econômico, mas um bem essencial para sua sobrevivência. Isso é muito diferente da concepção dos que invadem áreas indígenas visando aumentar o patrimônio sem pagar pelas terras de que se apossam ilegalmente, sem consideração de ordem ética e sem respeito pela vida e pela dignidade dos seres humanos que são os índios.
Para indignação dos brasileiros que respeitam a Constituição e os princípios e as normas nela consagrados, autoridades públicas que deveriam ser um padrão de dignidade e honestidade acobertam e auxiliam os grileiros das terras indígenas, simulando preocupação com o Direito, a Justiça e a soberania nacional, mas, na realidade, colaborando para a espoliação do patrimônio público e a consumação de inconstitucionalidades.Foi com a colaboração de autoridades públicas que invasores de áreas indígenas criaram por lei estadual falsos municípios, sem existência legal, pois não foram cumpridas as exigências expressas no artigo 18 da Constituição para a criação de municípios.Uma vez mais o Supremo Tribunal Federal deverá tomar uma decisão em ação judicial movida com o propósito de anular a demarcação de área indígena feita com absoluta regularidade, apoiada em laudo antropológico e rigorosamente dentro da lei.Trata-se do caso da área indígena Raposa/Serra do Sol, vizinha ao Estado de Roraima, há séculos ocupada por etnias indígenas. A decisão que for tomada poderá ter o efeito gravíssimo de anular todas as demarcações de áreas indígenas feitas até hoje com rigor técnico e estrita obediência a regras constitucionais e legais.Se isso ocorrer, haverá muitos conflitos e as conseqüências poderão ser gravíssimas, dando margem à acusação, já feita anteriormente, de que, no Brasil, se pratica o genocídio indireto.Se o STF cumprir sua função de guarda da Constituição, isso será evitado.Antes de tudo, dispõe a Constituição, no artigo 20, inciso XI, que são bens da União "as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios". No artigo 231, são fixadas duas normas fundamentais relativamente a essas terras que são de propriedade da União.O parágrafo primeiro do artigo 231 deixa claro o sentido dessa ocupação: "São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições". O parágrafo segundo dispõe: "As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes".Como fica mais do que óbvio, a ocupação indígena não se limita aos agrupamentos das habitações em que dormem, mas abrange toda a área onde os índios obtêm o indispensável para sua sobrevivência digna, colhendo os frutos da natureza, plantando, criando gado ou pescando, dependendo das condições de cada região.Além disso, é na área circundante às habitações que o índio identifica, colhe e utiliza plantas medicinais, bem como o material necessário à edificação das casas e à fabricação de roupas, utensílios, enfeites e objetos destinados aos seus rituais, como também suas armas. Ainda mais, é nesse espaço circundante que eles enterram os seus mortos, pelos quais têm grande respeito e veneração.Por tudo isso, a demarcação das terras indígenas é, necessariamente, de áreas contínuas, em rigorosa obediência à norma constitucional que define como indígenas todas as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, não havendo um só caso de ocupação de "ilhas", deixando intervalos vagos, sem ocupação, entre um e outro espaço ocupado por aldeamentos.Assim sendo, é absurda e inconstitucional a pretensão de anular a demarcação de áreas contínuas, abrindo espaço para que aventureiros sem escrúpulos, agredindo a Constituição, criem barreiras entre as aldeias da mesma etnia.
DALMO DE ABREU DALLARI, 76, advogado, é professor emérito da Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo). Foi secretário de Negócios Jurídicos do município de São Paulo (gestão Luiza Erundina).Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.


TENDÊNCIAS/DEBATES O STF deve manter a demarcação da reserva indígena Raposa/Serra do Sol em área contínua?
NÃO

A Constituição violada

DENIS LERRER ROSENFIELD
A CONSTITUIÇÃO não pode ficar à mercê de um Poder Executivo que, exorbitando de suas funções, se apropria de funções legislativas e mesmo jurídicas. O governo não legisla só por meio de medidas provisórias, mas o faz também por atos administrativos que incidem sobre a vida dos cidadãos e, mesmo, sobre princípios constitucionais.Atos administrativos, tais como decretos presidenciais, ministeriais, portarias, resoluções e instruções normativas, só seguem aparentemente a Constituição, introduzindo uma série de atos que alteram seu espírito, se não a sua própria letra. O governo age por meio de uma legislação infralegal, de caráter administrativo, que altera o ordenamento constitucional.A Funai, órgão do Ministério da Justiça, é uma das instâncias do Estado que estão exorbitando de suas funções, atribuindo-se papel legislativo, como se fossem espécie de instância máxima à qual os Poderes constituídos deveriam se curvar.Em seus processos administrativos de identificação, delimitação e demarcação que desembocarão em decretos presidenciais de homologação de terras indígenas, a Funai se dá ao luxo de não observar o direito ao contraditório nas etapas iniciais, numa espécie de jogo de cartas marcadas.As partes interessadas, salvo as escolhidas, não tiveram o direito de se manifestar. Índios que não concordavam com a demarcação não foram consultados. Produtores rurais tampouco o foram, como se o seu trabalho nada valesse. Entre os consultados, ressalte-se o Cimi (Conselho Indigenista Missionário) e entidades a ele vinculadas.Considerando que, por razões históricas, a questão indígena goza de simpatia na sociedade, a Funai age como se os Estados fossem entes que poderiam ser tutelados. O mesmo se pode dizer de municípios que poderiam sumir do mapa, ao completo arrepio da Constituição, por meros atos administrativos. Ademais, para a Funai, o direito de propriedade não teria nenhuma valia, embora seja constitucionalmente garantido.A demarcação da reserva Raposa/ Serra do Sol sofre de todos esses vícios, decorrentes da ação de um órgão estatal que, tomado pelo pecado da soberba, se coloca como se fosse um verdadeiro poder constituinte.Vale a pena ler os objetivos do Cimi: "Para o Cimi, o objetivo geral que se desdobra e se operacionaliza em múltiplos objetivos específicos é a vida dos povos indígenas, prefigurado na proposta evangélica do Reino de Deus. Essa vida, sistemicamente ameaçada, põe o Cimi no centro de conflitos que moldaram a sua missão profética. Esse papel profético leva o Cimi não só a denunciar abusos do sistema capitalista em sua configuração neoliberal, mas o obriga a propor rupturas com esse sistema. O horizonte do Reino de Deus deslegitima parcerias com o sistema capitalista e estimula firmar alianças com os construtores de uma nova sociedade".Ou seja, o discurso de ruptura com o capitalismo é norteador de suas ações, numa perspectiva que coloca o desrespeito ao direito de propriedade, ao Estado de Direito e ao pacto federativo como algo religiosamente justificado. O ordenamento constitucional seria mero detalhe a ser desconsiderado, já que o horizonte do "Reino de Deus" o deslegitima.O próprio laudo antropológico ora defende a demarcação descontínua, ora a contínua, além de variar, no transcurso do processo, em relação à própria área a ser demarcada.Em caso de todo o processo de demarcação da reserva indígena Raposa/Serra do Sol não ser considerado nulo pelos vícios administrativos dele decorrentes, a demarcação por ilhas seria ainda a melhor alternativa. Ela asseguraria a existência de municípios, uma franja altamente produtiva do Estado de Roraima, o direito de propriedade e a livre circulação de índios e não índios, numa região, aliás, de convívio até então harmônico entre diferentes raças e etnias.A Constituição brasileira não pode ser controlada administrativamente por um órgão do Poder Executivo federal e tutelada por uma ala radical da Igreja Católica.

DENIS LERRER ROSENFIELD, 57, doutor pela Universidade de Paris 1, é professor titular de filosofia da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e editor da revista "Filosofia Política". É autor de "Política e Liberdade em Hegel" (Ática, 1995), entre outros livros.Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

domingo, 24 de agosto de 2008

A Guerra da Geórgia e a nova configuração da ordem internacional

O Professor Alexandre Garrido da Silva envia essa matéria para ser postada de autoria do pensador eslavo Zizek a respeito da transformação do Estado, a guerra da Geórgia e a nova ordem internacional. Leiam e Reflitam.
Um mundo desregrado
Conflito entre Rússia e Geórgia marca a ascensão de relações multipolares perigosas, em que as potências testam umas às outras
SLAVOJ ZIZEKCOLUNISTA DA FOLHA
D iz a visão pós-moderna que não existe realidade objetiva: nossa realidade consiste em múltiplas histórias que nos contamos sobre nós mesmos. Sendo assim, a guerra recente na Geórgia não foi altamente pós-moderna? Temos a história de um pequeno e heróico Estado moderno defendendo-se contra as ambições imperialistas da Rússia pós-soviética, a história da tentativa dos EUA de cercar a Rússia com suas bases militares, a história da luta pelo controle dos recursos petrolíferos etc. Mas, em lugar de nos perdermos no labirinto dessas histórias concorrentes, devemos voltar nossa atenção a algo que está faltando e cuja ausência está desencadeando a explosão de relatos políticos em curso. Conhecer uma sociedade significa conhecer não apenas suas regras explícitas -devemos saber também como aplicar essas regras. Normas implícitas Durante os caóticos anos pós-soviéticos do governo de Boris Ieltsin na Rússia [1991-99], o problema podia ser identificado assim: embora as regras legais fossem conhecidas, o que se desintegrou foi a complexa rede de normas implícitas, não escritas, que sustentavam todo o edifício social. Se, na União Soviética, você quisesse um tratamento hospitalar melhor ou um apartamento novo, se tivesse uma queixa contra as autoridades, você sabia o que era preciso fazer de fato, a quem se dirigir, quem subornar. Após a queda do poder soviético, um dos aspectos mais frustrantes do cotidiano das pessoas comuns era que essas regras não escritas acabaram ficando confusas: as pessoas não sabiam mais o que fazer, como reagir, como relacionar-se com regulamentos legais explícitos, quais desses podiam ser ignorados, em que casos o pagamento de propinas poderia funcionar etc. A estabilização obtida sob o governo de Putin equivale em sua maior parte à recém-estabelecida transparência dessas regras não escritas: hoje, na maioria dos casos, as pessoas já sabem novamente como reagir na complexa teia das interações sociais. Ainda não alcançamos esse estágio na política internacional. Nos anos 90, um pacto silencioso regulamentava o relacionamento entre as grandes potências ocidentais e a Rússia: os Estados ocidentais tratavam a Rússia como grande potência, sob a condição de que ela não agisse concretamente como tal. Mas e se a Rússia começasse de fato a agir como grande potência? Uma situação como essa provavelmente seria catastrófica, ameaçando fazer ruir toda a trama existente de relações. E algo dessa natureza foi o que aconteceu agora na Geórgia: cansada de ser apenas tratada como superpotência, a Rússia agiu como tal. Como foi que isso aconteceu? O chamado "século americano" já chegou ao fim e já estamos ingressando no período de formação de múltiplos centros de capitalismo global: os EUA, a Europa, a China, possivelmente a América Latina. Cada um deles representa o capitalismo com característica específica: os EUA, o capitalismo neoliberal; a Europa, o que resta do Estado de Bem-Estar Social; a China, o capitalismo autoritário de "valores orientais"; a América Latina, o capitalismo populista. Após o fracasso da tentativa dos EUA de se imporem como superpotência única, agora é necessário definir as regras de interação entre esses centros locais, no caso de seus interesses conflitantes. É por isso que nossos tempos são mais perigosos do que podem parecer. Durante a Guerra Fria, as regras do comportamento internacional eram claras, sendo garantidas pela destruição mutuamente assegurada das superpotências. Hoje, as potências antigas e novas estão testando umas às outras, tentando impor suas versões próprias das regras globais e testando-as por procuração, procuração esta entregue a outros Estados menores. Os georgianos estão pagando o preço por realizar esses testes. Embora as justificativas oficiais sejam de natureza altamente moral (direitos humanos, liberdade etc.), a natureza do jogo está clara. É o futuro da comunidade internacional que está em jogo agora: as novas regras que vão regulamentá-la, qual será a nova ordem mundial. E, retroativamente, podemos enxergar claramente que a Guerra do Iraque foi sinal de sua derrota, de sua incapacidade de exercer o papel de polícia do mundo. Os EUA simplesmente acumularam casos demais de sua "descortesia", que os desqualificaram para o papel: pressionaram outros Estados (como a Sérvia) a entregar seus criminosos de guerra suspeitos ao Tribunal de Haia e ao mesmo tempo rejeitaram brutalmente a própria idéia de que o tribunal também tivesse jurisdição sobre cidadãos americanos etc. Contrapartida Para justificar sua intervenção na Geórgia, a Rússia jogou habilmente com essas incoerências dos EUA: se os EUA puderam intervir em Kosovo e implementar a independência deste, apoiada pela presença de uma grande base militar americana ali, por que a Rússia não deveria fazer o mesmo na Ossétia do Sul, muito mais próxima do território russo do que Kosovo é do território americano? Se existe alguma lição a ser tirada do conflito georgiano é que, após o fracasso dos EUA em agir como polícia global, devemos reconhecer também o fracasso da nova rede de superpotências em fazer o mesmo. Não apenas elas simplesmente não têm condições de manter sob controle países "fora da lei" menores como, cada vez mais, provocam o comportamento agressivo destes para que travem suas guerras para elas, por procuração. Assim, a tocha da manutenção da paz passa para um círculo seguinte e mais amplo: é hora de os países menores de todo o mundo unirem seus esforços para controlar as grandes potências e impor limites aos jogos obscenos delas. Um modo cortês de lidar com a crise georgiana teria sido, por exemplo, que Rússia e Geórgia concordassem que a Geórgia tem plena soberania sobre seu território -sob a condição de que não afirmasse esse controle plenamente sobre a Abkházia e a Ossétia do Sul. Podemos até mesmo afirmar que um acordo tácito desse tipo já existia de fato e que a Rússia interpretou a intervenção georgiana na Ossétia do Sul como sua violação. A questão, é claro, é se a Geórgia agiu por conta própria ou se... Entretanto o enigma sobre por que os georgianos decidiram afirmar plenamente sua soberania e arriscar uma intervenção militar não vale a pena ser investigado. O que importa de fato é que as conseqüências desse "excesso" nos colocaram frente a frente com a verdade da situação. É hora de ensinar as superpotências a terem bons modos.
SLAVOJ ZIZEK é filósofo esloveno e autor de "Um Mapa da Ideologia" (ed. Contraponto). Ele escreve na seção "Autores", do Mais! . Tradução de Clara Allain .

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

Crise (ainda) no Cáucaso

A crise no cáucaso parece longe de ter uma saída. Nessa quinta-feira, 21 de agosto, jornais de todo o mundo noticiaram o impasse em que se encontra a ONU, cujo Conselho encontra-se dividido.

O Conselho passou mais de duas hora reunido, de portas trancadas. Mesmo assim, nem uma ação foi tomada em relação a crise que se iniciou há cerca de 2 semanas, quando a Geórgia enviou tropas para tentar recapturar a região da Ossétia do Sul e a Rússia respondeu enviando tropas e tanques para a Geórgia.

A inércia da ONU vem se arrastando e a situação se tornando a cada hora mais tensa, com acusações, vindas do Ocidente ( França e EUA), de a Rússia não estar atuando em conformidade com o compromisso de retirada de tropas da Geórgia, como publicou o jornal Le monde nessa sexta-feira, 22/08:

"A l'issue d'une conversation téléphonique sur la situation dans le Caucase, le président américain, George Bush, et son homologue français, Nicolas Sarkozy, se sont accordés pour dire que la Russie ne s'est "pas mise en conformité" avec ses engagements sur le retrait de ses troupes de Géorgie et qu'elle "doit le faire maintenant", rapporte, vendredi 22 août, la Maison Blanche.

Les deux dirigeants contredisent ainsi le ministère de la défense russe, qui avait affirmé un peu plus tôt que les troupes envoyées en renfort au début du mois s'étaient retirées de Géorgie, et que Moscou s'était mis de fait en conformité avec ses engagements fixés par le plan de paix. Une affirmation aussitôt démentie par Tbilissi. "Ce n'est pas vrai, le retrait russe n'est pas terminé", a déclaré le porte-parole du ministère de l'intérieur, Chota Outiachvili, qui assure que l'armée russe est toujours présente dans certaines villes comme le port de Poti et Senaki, dans l'ouest du pays.

AUCUN REPLI DANS L'OUEST
Ces déclarations contradictoires sont le signe que le "retrait" annoncé ne recouvre pas la même réalité pour Moscou et Tbilissi. Tout en annonçant la fin de l'évacuation de ses troupes pour vendredi soir, la Russie a immédiatement prévenu qu'elle garderait des positions stratégiques à proximité de l'Ossétie du Sud et dans l'ouest du pays. Moscou a ainsi annoncé son intention de conserver cinq cents soldats dans une zone tampon en dehors de l'Ossétie du Sud, et surtout de garder le contrôle d'importants tronçons de la principale route géorgienne, qui traverse le pays d'est en ouest.


Si le départ de l'armée russe de Gori semble effectif – la police géorgienne a repris le contrôle de la ville, des dires mêmes du ministère de la défense géorgien – il n'en est donc pas de même dans l'ouest du pays, ce que confirment les autorités géorgiennes. "En ce qui concerne le district de Gori, je peux confirmer que les forces russes ont accéléré le rythme de leur retrait. Malheureusement je ne peux pas dire la même chose au sujet de la Géorgie occidentale, où nous ne voyons aucun repli", a déclaré le porte-parole du ministère de l'intérieur géorgien.

POINTS DE CONTRÔLE "PERMANENTS"

D'après une carte montrée à la presse par l'état-major russe, la Russie entend en effet garder le contrôle de la route stratégique reliant Tbilissi à la mer Noire. Le document, présenté lors d'une conférence de presse par le chef-adjoint d'état-major, Anatoli Nogovitsyne, montre la "zone de responsabilité" russe proposée par Moscou. La zone inclut notamment l'essentiel de la route reliant le principal port géorgien de Poti à la ville de Senaki où les forces russes contrôleront un important aérodrome militaire, selon le général.

Autre point de litige : Moscou a souligné que les points de contrôle en cours d'établissement dans la zone tampon autour de l'Ossétie du Sud seront "permanents", et entend même construire des "infrastructures" à cet effet. Une vision des choses loin d'être partagée par les capitales européennes. Berlin a ainsi affirmé que la zone tampon russe autour de la région séparatiste d'Ossétie du Sud ne peut être qu'une "mesure provisoire". "

quinta-feira, 21 de agosto de 2008

O histórico da decisão do STF sobre o neopotismo

O jornal "Valor Econômico" de 21 de agosto de 2008 estampa o histórico da decisão sobre o nepostismo. Destaque-se a divergência se a nomeação de parentes por agentes políticos indicaria nepotismo. Foi solucionado que haveria nepotismo nesse caso se fosse caracterizado um processo de cruzamento de favores. Não houve concordância na sessão plenária de 20 de agosto de 2008 quanto a redação da súmula vinculante nº 13, ficando para o dia seguinte a aprovação da redação final. Nela, devem ficar esclarecidas o significado de "nepotismo" e as exceções no tocante aos cargos políticos.


STF dá fim ao nepotismo no país

BRASÍLIA - O Supremo Tribunal Federal (STF) aprovou na tarde de ontem a 13ª súmula vinculante da corte para vetar a prática de nepotismo em todo o poder público brasileiro - incluindo Executivo, Legislativo e Judiciário em qualquer unidade federativa do país. A súmula foi resultado do julgamento de um recurso do Ministério Público do Rio Grande do Norte que tentava impedir a contratação de parentes pela prefeitura do município de Água Nova. O texto final da súmula vinculante deverá ser apresentado no começo da sessão do pleno de hoje.

A discussão sobre nepotismo ontem incluiu dois processos. No primeiro deles, os ministros confirmaram uma liminar concedida em fevereiro de 2006 para garantir a aplicação da Resolução nº 7 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), vetando a contratação de parentes no Poder Judiciário. Editada em 2005, a resolução encontrou resistência de alguns tribunais - em todo o país havia 2.700 contratações irregulares, segundo dados da época - e a Associação dos Magistrados do Brasil (AMB) ajuizou uma ação declaratória de constitucionalidade (ADC) no Supremo para garantir a aplicação da regra.

A ADC nº 12 obteve uma liminar sob o entendimento de que não era necessário a edição de uma lei para proibir a contratação de parentes na administração pública. Segundo a decisão dos ministros, a própria Constituição Federal assegura os princípios da impessoalidade, moralidade e eficiência na condução da administração pública, o que impede a contratação de parentes para cargos em comissão. Com o resultado, os ministérios públicos de vários Estados começaram a procurar casos de nepotismo nos poderes locais para aplicar o mesmo princípio, pedindo nos tribunais a exoneração de parentes em cargos no Executivo e Legislativo estaduais e municipais. Um desses casos foi apreciado pelo Supremo na tarde de ontem, em uma ação que pedia a exoneração do secretário de saúde do município de Água Nova, parente de um vereador local, e do motorista da prefeitura, irmão do vice-prefeito. O tribunal local entendeu que as contratações não ofendiam a Constituição.

O relator do caso, ministro Ricardo Lewandowski, pretendia afastar os dois funcionários, mas encontrou a resistência dos colegas no Supremo, que preferiam exonerar apenas o motorista. O primeiro a questionar a exoneração foi o ministro Marco Aurélio, afirmando que " não estenderia a decisão ao agente político " , poupando o secretário de saúde. Também ponderou que a indicação vinha do vereador, e não do prefeito. Lewandowski tentou argumentar que, no contexto, havia indícios " de toma lá, dá cá " na contratação e mais tarde apontou a existência de " relações promíscuas " em pequenas prefeituras.

Os demais ministros seguiram a linha de Marco Aurélio e acabaram por convencer o próprio Lewandowski a mudar de lado, mas ele fez ainda uma ressalva: " a vedação do nepotismo exclui cargos políticos, a não ser que o caso concreto configure troca de favores " . O ministro Cezar Peluso seguiu a mesma linha: " se houvesse o ? favor cruzado ? , se o vereador nomeasse também um irmão do prefeito, haveria característica de nepotismo " . O presidente, Gilmar Mendes, apoiou a fórmula: " Temos uma tradição nacional e até internacional de irmãos que fazem uma carreira política paralela sem que haja qualquer conotação de nepotismo " , afirmou Gilmar, citando o exemplo de Bob Kennedy, irmão do ex-presidente americano John Kennedy e seu procurador-geral de Justiça.

Os ministros, contudo, não entraram em acordo quando à redação da súmula vinculante apresentada pelo ministro Lewandowski logo após o julgamento. O texto era o seguinte: " A proibição do nepotismo, na administração direta e indireta, em qualquer dos poderes da União, Distrito Federal, Estados e municípios, independe de lei, decorrendo diretamente dos princípios contidos no artigo 37, caput, da Constituição Federal " . Alguns ministros queriam definir exatamente o que é nepotismo ou esclarecer a exceção para cargos políticos, o que adiou a votação. O pleno considerou a súmula aprovada, mas deve apresentar o texto final apenas hoje.

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Suprema Corte da Inglaterra amplia a jurisdição inglesa

Abaixo, segue notícia que relata a decisão da Suprema Corte da Inglaterra de admitir a jurisdição inglesa em casos cuja jurisdição natural (nesta situação, a russa) não fornece ao julgamento a lisura necessária. Trata-se do caso Michael Cherney v Oleg Vladimirovich Deripaska.


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August 12, 2008

The long arm of the English courts

A dispute between oligarchs leads to questions over how far the courts are willing to go in passing judgment over another jurisdiction

Law is about delivering justice, but what happens when rival views of justice collide? Is it for one country to pass judgment over another? When should a court decide that another state cannot or will not do justice? This was the dilemma faced by Mr Justice Christopher Clarke in the recent High Court case of Cherney v Deripaska.

The case gives a rare peek into the world of Russian oligarchs. At its centre is a dispute over control of a $4 billion (£2 billion) stake in Rusal, the world’s largest aluminium company.

The claimant, Michael Cherney, was a powerful figure in Russia in the early 1990s but now lives in Israel. He claims that his former protégé, Oleg Deripaska, seized a 20 per cent stake of Rusal that he was holding in trust for Mr Cherney and pushed him out of the company. Mr Deripaska is now reportedly the richest man in Russia and the ninth-richest in the world, with a fortune estimated by Forbes magazine of $28 billion (£14 billion).

In a forerunner to the broader legal action, Mr Justice Christopher Clarke had to decide whether to keep the case in England or to send it to Russia. Keeping the case here would mean the courts deciding a claim with only a tenuous connection to the UK. Sending it to Russia, it was argued, put justice — and potentially Mr Cherney — at risk.

There was little doubt, given the nature of the claim and the parties, that the jurisdiction most closely connected to the claim was Russia. However, Mr Cherney argued that he should not be forced to litigate there, partly based on fears for his personal safety and criminal prosecution. But he also challenged the influence of the Russian state over the courts and alleged that there was widespread corruption in the Russian courts.

The judge decided that Mr Cherney’s fears over returning to Russia were justified and that the case should be tried in London. He thought Mr Cherney might well be prosecuted and that his safety would be at risk. This would have been enough on its own to justify a decision to keep the claim in England, but the judge went further. While he made it clear that he was not deciding a fair trial could never be obtained in Russia, he thought that there was a significant risk of “improper government influence” in this particular case.

In making his decision, Mr Justice Christopher Clarke rubbed salt into what is already a raw diplomatic relationship between Britain and Russia. Moreover, there is a real concern that in doing so the court has crossed the boundary of what is acceptable under English law, never mind the principles of international comity. His decision is highly controversial despite his effort to limit the scope of it.

The key authority in any case about the proper forum for a dispute, when when European Union and European Free Trade Association treaties do not apply, is The Spiliada, a 1987 dispute involving a Liberian-owned ship. This sets out a two-part test: first, the defendant must show that there is another jurisdiction that is clearly more appropriate for the case. Then the claimant must establish that justice requires the claim to be heard in England. This may be done on the basis that he will not obtain justice in the other jurisdiction. To do so will require cogent evidence, but cogent evidence of state interference and corruption — the basis of Mr Cherney’s claim — is by its nature hard to come by; most of the available evidence will be rumour and opinion. Proving there is no state interference is even harder.

Most courts have in the past fought shy of condemning another jurisdiction. In Norex Petroleum Ltd v Access Industries Inc, for example, a New York court dismissed an attack on the Russian courts and found that an adequate alternative forum existed in Russia. Similarly in Base Metal Trading SA v Russian Aluminium, allegations against the Russian courts were disregarded and the US court decided that the case could proceed in Russia.

Nevertheless, disputes of this sort are becoming more common and the Cherney v Deripaska judgment may set a new pattern. But its shape remains unclear. Will English courts, for instance, now be more willing to judge other states? How many other countries would fail Mr Justice Christopher Clarke's standards? And how are the courts to take realpolitik into account?

This was not, after all, a claim involving a banana republic dictatorship, but a public slap in the face for a world power on whom the UK depends to a significant extent for its energy supplies.

Justice exported is rarely popular anywhere. Any finding that justice cannot be guaranteed in another jurisdiction could be seen as a serious affront to national pride. Indeed, UK lawyers themselves have often criticised the long arm of other jurisdictions, particularly the US.

In this case, it appears that English courts are developing the same habit, going where even Americans fear to tread. If we adopt the mantle of the world’s policeman, will we be willing to pay the political bill?

Andrew Wigston is a solicitor at Finers Stephens Innocent LLP


domingo, 17 de agosto de 2008

O Multiculturalismo nos Direitos Humanos

Divulga-se aqui o artigo Por uma Concepção Multicultural de Direitos Humanos, do sociólogo Boaventura de Souza Santos, que analisa, de modo claro e sucinto, a globalização (ou, de acordo com o autor, as globalizações) e o diálogo intercultural que deve existir na conceitualização e na prática dos direitos humanos.

Por uma Concepção Multicultural

de Direitos Humanos

Boaventura de Sousa Santos

Introdução: as tensões da modernidade

Nos últimos tempos tenho observado com alguma perplexidade a forma como os direitos humanos se transformaram na linguagem da política progressista. De facto, durante muitos anos, após a Segunda Guerra Mundial, os direitos humanos foram parte integrante da política da guerra fria, e como tal foram considerados pela esquerda. Duplos critérios na avaliação das violações dos direitos humanos, complacência para com ditadores amigos, defesa do sacrifício dos direitos humanos em nome dos objectivos do desenvolvimento - tudo isto tornou os direitos humanos suspeitos enquanto guião emancipatório. Quer nos países centrais, quer em todo o mundo em desenvolvimento, as forças progressistas preferiram a linguagem da revolução e do socialismo para formular uma política emancipatória. E no entanto, perante a crise aparentemente irreversível destes projectos de emancipação, essas mesmas forças progressistas recorrem hoje aos direitos humanos para reinventar a linguagem da emancipação. É como se os direitos humanos fossem invocados para preencher o vazio deixado pelo socialismo. Poderão realmente os direitos humanos preencher tal vazio? A minha resposta é um sim muito condicional. O meu objectivo neste trabalho é identificar as condições em que os direitos humanos podem ser colocados ao serviço de uma política progressista e emancipatória. Tal tarefa exige que sejam claramente entendidas as tensões dialécticas que informam a modernidade ocidental. A crise que hoje afecta estas tensões assinala, melhor que qualquer outra coisa, os problemas que a modernidade ocidental actualmente defronta. Em minha opinião, a política de direitos humanos deste final de século é um factor-chave para compreender tal crise.

Identifico três tensões dialécticas. A primeira ocorre entre regulação social e emancipação social. Tenho vindo a afirmar que o paradigma da modernidade se baseia numa tensão dialéctica entre regulação social e emancipação social, a qual está presente, mesmo que de modo diluído, na divisa positivista «ordem e progresso». Neste final de século, esta tensão deixou de ser uma tensão criativa. A emancipação deixou de ser o outro da regulação para se tornar no duplo da regulação. Enquanto até finais dos anos sessenta as crises de regulação social suscitavam o fortalecimento das políticas emancipatórias, hoje a crise da regulação social - simbolizada pela crise do Estado regulador e do Estado-Providência - e a crise da emancipação social - simbolizada pela crise da revolução social e do socialismo enquanto paradigma da transformação social radical - são simultâneas e alimentam-se uma da outra. A política dos direitos humanos, que foi simultaneamente uma política reguladora e uma política emancipadora, está armadilhada nesta dupla crise, ao mesmo tempo que é sinal do desejo de a ultrapassar.

A segunda tensão dialéctica ocorre entre o Estado e a sociedade civil. O Estado moderno, não obstante apresentar-se como um Estado minimalista, é potencialmente um Estado maximalista, pois a sociedade civil, enquanto o outro do Estado, auto-reproduz-se através de leis e regulações que dimanam do Estado e para as quais não parecem existir limites, desde que as regras democráticas da produção de leis sejam respeitadas. Os direitos humanos estão no cerne desta tensão: enquanto a primeira geração de direitos humanos (os direitos cívicos e políticos) foi concebida como uma luta da sociedade civil contra o Estado, considerado como o principal violador potencial dos direitos humanos, a segunda e terceira gerações (direitos económicos e sociais e direitos culturais, da qualidade de vida, etc) pressupõem que o Estado é o principal garante dos direitos humanos.

Por fim, a terceira tensão ocorre entre o Estado-nação e o que designamos por globalização. O modelo político da modernidade ocidental é um modelo de Estados-nação soberanos, coexistindo num sistema internacional de Estados igualmente soberanos - o sistema interestatal. A unidade e a escala privilegiadas, quer da regulação social quer da emancipação social, é o Estado-nação. O sistema interestatal foi sempre concebido como uma sociedade mais ou menos anárquica, regida por uma legalidade muito ténue, e mesmo o internacionalismo da classe operária sempre foi mais uma aspiração do que uma realidade. Hoje, a erosão selectiva do Estado-nação, imputável à intensificação da globalização, coloca a questão de saber se, quer a regulação social quer a emancipação social, deverão ser deslocadas para o nível global. É neste sentido que já se começou a falar em sociedade civil global, governo global e equidade global. Na primeira linha deste processo está o reconhecimento mundial da política dos direitos humanos. A tensão, porém, repousa, por um lado, no facto de, tanto as violações dos direitos humanos, como as lutas em defesa deles continuarem a ter uma decisiva dimensão nacional, e, por outro lado, no facto de, em aspectos cruciais, as atitudes perante os direitos humanos assentarem em pressupostos culturais específicos. A política dos direitos humanos é basicamente uma política cultural. Tanto assim é que poderemos mesmo pensar os direitos humanos como sinal do regresso do cultural, e até mesmo do religioso, em finais de século. Ora, falar de cultura e de religião é falar de diferença, de fronteiras, de particularismos. Como poderão os direitos humanos ser uma política simultaneamente cultural e global?

Nesta ordem de ideias, o meu objectivo é desenvolver um quadro analítico capaz de reforçar o potencial emancipatório da política dos direitos humanos no duplo contexto da globalização, por um lado, e da fragmentação cultural e da política de identidades, por outro. A minha intenção é justificar uma política progressista de direitos humanos com âmbito global e com legitimidade local.

1. Acerca das globalizações

Começarei por especificar o que entendo por globalização. A globalização é muito difícil de definir. Muitas definições centram-se na economia, ou seja, na nova economia mundial que emergiu nas últimas duas décadas como consequência da intensificação dramática da transnacionalização da produção de bens e serviços e dos mercados financeiros - um processo através do qual as empresas multinacionais ascenderam a uma preeminência sem precedentes como actores internacionais. Para os meus objectivos analíticos privilegio, no entanto, uma definição de globalização mais sensível às dimensões sociais, políticas e culturais. Aquilo que habitualmente designamos por globalização são, de facto, conjuntos diferenciados de relações sociais; diferentes conjuntos de relações sociais dão origem a diferentes fenómenos de globalização. Nestes termos, não existe estritamente uma entidade única chamada globalização; existem, em vez disso, globalizações; em rigor, este termo só deveria ser usado no plural. Qualquer conceito mais abrangente deve ser de tipo processual e não substantivo. Por outro lado, enquanto feixes de relações sociais, as globalizações envolvem conflitos e, por isso, vencedores e vencidos. Frequentemente, o discurso sobre globalização é a história dos vencedores contada pelos próprios. Na verdade, a vitória é aparentemente tão absoluta que os derrotados acabam por desaparecer totalmente de cena.

Proponho, pois, a seguinte definição: a globalização é o processo pelo qual determinada condição ou entidade local estende a sua influência a todo o globo e, ao fazê-lo, desenvolve a capacidade de designar como local outra condição social ou entidade rival.

As implicações mais importantes desta definição são as seguintes. Em primeiro lugar, perante as condições do sistema-mundo ocidental não existe globalização genuína; aquilo a que chamamos globalização é sempre a globalização bem sucedida de determinado localismo. Por outras palavras, não existe condição global para a qual não consigamos encontrar uma raiz local, uma imersão cultural específica. Na realidade, não consigo pensar uma entidade sem tal enraizamento local; o único candidato possível, mas improvável, seria a arquitectura interior dos aeroportos. A segunda implicação é que a globalização pressupõe a localização. De facto, vivemos tanto num mundo de localização como num mundo de globalização. Portanto, em termos analíticos, seria igualmente correcto se a presente situação e os nossos tópicos de investigação se definisse em termos de localização, em vez de globalização. O motivo porque é preferido o último termo é basicamente porque o discurso científico hegemónico tende a privilegiar a história do mundo na versão dos vencedores.

Existem muitos exemplos de como a globalização pressupõe a localização. A língua inglesa enquanto língua franca é um desses exemplos. A sua propagação enquanto língua global implicou a localização de outras línguas potencialmente globais, nomeadamente a língua francesa. Quer isto dizer que, uma vez identificado determinado processo de globalização, o seu sentido e explicação integrais não podem ser obtidos sem se ter em conta os processos adjacentes de relocalização com ele ocorrendo em simultâneo ou sequencialmente. A globalização do sistema de estrelato de Hollywood contribuiu para a etnicização do sistema de estrelato do cinema hindu. Analogamente, os actores franceses ou italianos dos anos 60 - de Brigitte Bardot a Alain Delon, de Marcello Mastroiani a Sofia Loren - que simbolizavam então o modo universal de representar, parecem hoje, quando revemos os seus filmes, provincianamente europeus, se não mesmo curiosamente étnicos. A diferença do olhar reside em que de então para cá o modo de representar holliwoodesco conseguiu globalizar-se. Para dar um exemplo de uma área totalmente diferente, à medida que se globaliza o hamburger ou a pizza, localiza-se o bolo de bacalhau português ou a feijoada brasileira, no sentido em que serão cada vez mais vistos como particularismos típicos da sociedade portuguesa ou brasileira.

Uma das transformações mais frequentemente associadas à globalização é a compressão tempo-espaço, ou seja, o processo social pelo qual os fenómenos se aceleram e se difundem pelo globo. Ainda que aparentemente monolítico, este processo combina situações e condições altamente diferenciadas e, por esse motivo, não pode ser analisado independentemente das relações de poder que respondem pelas diferentes formas de mobilidade temporal e espacial. Por um lado, existe a classe capitalista transnacional, aquela que realmente controla a compressão tempo-espaço e que é capaz de a transformar a seu favor. Existem, por outro lado, as classes e grupos subordinados, como os trabalhadores migrantes e os refugiados, que nas duas últimas décadas têm efectuado bastante movimentação transfronteiriça, mas que não controlam, de modo algum, a compressão tempo-espaço. Entre os executivos das empresas multinacionais e os emigrantes e refugiados, os turistas representam um terceiro modo de produção da compressão tempo-espaço.

Existem ainda os que contribuem fortemente para a globalização mas que, não obstante, permanecem prisioneiros do seu tempo-espaço local. Os camponeses da Bolívia, do Perú e da Colômbia, ao cultivarem coca, contribuem decisivamente para uma cultura mundial da droga, mas eles próprios permanecem «localizados» nas suas aldeias e montanhas como desde sempre estiveram. Tal como os moradores das favelas do Rio, que permanecem prisioneiros da vida urbana marginal, enquanto as suas canções e as suas danças, sobretudo o samba, constituem hoje parte de uma cultura musical globalizada.

Finalmente, e ainda noutra perspectiva, a competência global requer, por vezes, o acentuar da especificidade local. Muitos dos lugares turísticos de hoje têm de vincar o seu carácter exótico, vernáculo e tradicional para poderem ser suficientemente atractivos no mercado global de turismo.

Para dar conta destas assimetrias, a globalização, tal como sugeri, deve ser sempre considerada no plural. Por outro lado, há que considerar diferentes modos de produção da globalização. Distingo quatro modos de produção da globalização, os quais, em meu entender, dão origem a quatro formas de globalização.

A primeira forma de globalização é o localismo globalizado. Consiste no processo pelo qual determinado fenómeno local é globalizado com sucesso, seja a actividade mundial das multinacionais, a transformação da língua inglesa em língua franca, a globalização do fast food americano ou da sua música popular, ou a adopção mundial das leis de propriedade intelectual ou de telecomunicações dos EUA.

À segunda forma de globalização chamo globalismo localizado. Consiste no impacto específico de práticas e imperativos transnacionais nas condições locais, as quais são, por essa via, desestruturadas e reestruturadas de modo a responder a esses imperativos transnacionais. Tais globalismos localizados incluem: enclaves de comércio livre ou zonas francas; desflorestamento e destruição maciça dos recursos naturais para pagamento da dívida externa; uso turístico de tesouros históricos, lugares ou cerimónias religiosos, artesanato e vida selvagem; dumping ecológico («compra» pelos países do Terceiro Mundo de lixos tóxicos produzidos nos países capitalistas centrais para gerar divisas externas); conversão da agricultura de subsistência em agricultura para exportação como parte do «ajustamento estrutural»; etnicização do local de trabalho (desvalorização do salário pelo facto de os trabalhadores serem de um grupo étnico considerado «inferior» ou «menos exigente»).

A divisão internacional da produção da globalização assume o seguinte padrão: os países centrais especializam-se em localismos globalizados, enquanto aos países periféricos cabe tão-só a escolha de globalismos localizados. O sistema-mundo é uma trama de globalismos localizados e localismos globalizados.

Todavia, a intensificação de interacções globais pressupõe outros dois processos, os quais não podem ser correctamente caracterizados, nem como localismos globalizados, nem como globalismos localizados. Designo o primeiro por cosmopolitismo. As formas predominantes de dominação não excluem aos Estados-nação, regiões, classes ou grupos sociais subordinados a oportunidade de se organizarem transnacionalmente na defesa de interesses percebidos como comuns, e de usarem em seu benefício as possibilidades de interacção transnacional criadas pelo sistema mundial. As actividades cosmopolitas incluem, entre outras, diálogos e organizações Sul-Sul, organizações mundiais de trabalhadores (a Federação Mundial de Sindicatos e a Confederação Internacional dos Sindicatos Livres), filantropia transnacional Norte-Sul, redes internacionais de assistência jurídica alternativa, organizações transnacionais de direitos humanos, redes mundiais de movimentos feministas, organizações não governamentais (ONG's) transnacionais de militância anticapitalista, redes de movimentos e associações ecológicas e de desenvolvimento alternativo, movimentos literários, artísticos e científicos na periferia do sistema mundial em busca de valores culturais alternativos, não imperialistas, empenhados em estudos sob perspectivas pós-coloniais ou subalternas, etc, etc.

O outro processo que não pode ser adequadamente descrito, seja como localismo globalizado, seja como globalismo localizado, é a emergência de temas que, pela sua natureza, são tão globais como o próprio planeta e aos quais eu chamaria, recorrendo ao direito internacional, o património comum da humanidade. Trata-se de temas que apenas fazem sentido enquanto reportados ao globo na sua totalidade: a sustentabilidade da vida humana na Terra, por exemplo, ou temas ambientais como a protecção da camada de ozono, a preservação da Amazónia, da Antártida, da biodiversidade ou dos fundos marinhos. Incluo ainda nesta categoria a exploração do espaço exterior, da lua e de outros planetas, uma vez que as interacções físicas e simbólicas destes com a terra são também património comum da humanidade. Todos estes temas se referem a recursos que, pela sua natureza, têm de ser geridos por fideicomissos da comunidade internacional em nome das gerações presentes e futuras.

A preocupação com o cosmopolitismo e com o património comum da humanidade conheceu grande desenvolvimento nas últimas décadas, mas também fez surgir poderosas resistências. O património comum da humanidade, em especial, tem estado sob constante ataque por parte de países hegemónicos, sobretudo dos Estados Unidos. Os conflitos, as resistências, as lutas e as coligações em torno do cosmopolitismo e do património comum da humanidade demonstram que aquilo a que chamamos globalização é na verdade um conjunto de arenas de lutas transfronteiriças.

Neste contexto é útil distinguir entre globalização de-cima-para-baixo e globalização de-baixo-para-cima, ou entre globalização hegemónica e globalização contra-hegemónica. O que eu denomino de localismo globalizado e globalismo localizado são globalizações de-cima-para-baixo; cosmopolitismo e património comum da humanidade são globalizações de-baixo-para-cima.

2. Os Direitos Humanos enquanto Guião Emancipatório

A complexidade dos direitos humanos reside em que eles podem ser concebidos, quer como forma de localismo globalizado, quer como forma de cosmopolitismo ou, por outras palavras, quer como globalização hegemónica, quer como globalização contra-hegemónica. Proponho-me de seguida identificar as condições culturais através das quais os direitos humanos podem ser concebidos como cosmopolitismo ou globalização contra-hegemónica. A minha tese é que, enquanto forem concebidos como direitos humanos universais, os direitos humanos tenderão a operar como localismo globalizado - uma forma de globalização de-cima-para-baixo. Serão sempre um instrumento do «choque de civilizações» tal como o concebe Samuel Huntington (1993), ou seja, como arma do Ocidente contra o resto do mundo ("the West against the rest"). A sua abrangência global será obtida à custa da sua legitimidade local. Para poderem operar como forma de cosmopolitismo, como globalização de-baixo-para-cima ou contra-hegemónica, os direitos humanos têm de ser reconceptualizados como multiculturais. O multiculturalismo, tal como eu o entendo, é pré-condição de uma relação equilibrada e mutuamente potenciadora entre a competência global e a legitimidade local, que constituem os dois atributos de uma política contra-hegemónica de direitos humanos no nosso tempo.

É sabido que os direitos humanos não são universais na sua aplicação. Actualmente são consensualmente identificados quatro regimes internacionais de aplicação de direitos humanos: o europeu, o inter-americano, o africano e o asiático. Mas serão os direitos humanos universais enquanto artefacto cultural, um tipo de invariante cultural, parte significativa de uma cultura global? Todas as culturas tendem a considerar os seus valores máximos como os mais abrangentes, mas apenas a cultura ocidental tende a formulá-los como universais. Por isso mesmo, a questão da universalidade dos direitos humanos trai a universalidade do que questiona pelo modo como o questiona. Por outras palavras, a questão da universalidade é uma questão particular, uma questão específica da cultura ocidental.

O conceito de direitos humanos assenta num bem conhecido conjunto de pressupostos, todos eles tipicamente ocidentais, designadamente: existe uma natureza humana universal que pode ser conhecida racionalmente; a natureza humana é essencialmente diferente e superior à restante realidade; o indivíduo possui uma dignidade absoluta e irredutível que tem de ser defendida da sociedade ou do Estado; a autonomia do indivíduo exige que a sociedade esteja organizada de forma não hierárquica, como soma de indivíduos livres (Panikkar 1984: 30). Uma vez que todos estes pressupostos são claramente ocidentais e facilmente distinguíveis de outras concepções de dignidade humana em outras culturas, teremos de perguntar por que motivo a questão da universalidade dos direitos humanos se tornou tão acesamente debatida. Ou por que razão a universalidade sociológica desta questão se sobrepôs à sua universalidade filosófica.

Se observarmos a história dos direitos humanos no período imediatamente a seguir à Segunda Grande Guerra, não é difícil concluir que as políticas de direitos humanos estiveram em geral ao serviço dos interesses económicos e geo-políticos dos Estados capitalistas hegemónicos. Um discurso generoso e sedutor sobre os direitos humanos permitiu atrocidades indescritíveis, as quais foram avaliadas de acordo com revoltante duplicidade de critérios. Escrevendo em 1981 sobre a manipulação da temática dos direitos humanos nos Estados Unidos pelos meios de comunicação social, Richard Falk identifica uma «política de invisibilidade» e uma «política de supervisibilidade». Como exemplos da política de invisibilidade menciona Falk a ocultação total, pelos media, das notícias sobre o trágico genocídio do povo Maubere em Timor Leste (que ceifou mais que 300.000 vidas) e a situação dos cerca de cem milhões de «intocáveis» na India. Como exemplos da política de supervisibilidade, Falk menciona a exuberância com que os atropelos pós-revolucionários dos direitos humanos no Irão e no Vietname foram relatados nos Estados Unidos. A verdade é que o mesmo pode dizer-se dos países da União Europeia, sendo o exemplo mais gritante justamente o silêncio mantido sobre o genocídio do povo Maubere, escondido dos europeus durante uma década, assim facilitando o contínuo e próspero comércio com a Indonésia.

A marca ocidental, ou melhor, ocidental liberal do discurso dominante dos direitos humanos pode ser facilmente identificada em muitos outros exemplos: na Declaração Universal de 1948, elaborada sem a participação da maioria dos povos do mundo; no reconhecimento exclusivo de direitos individuais, com a única excepção do direito colectivo à autodeterminação, o qual, no entanto, foi restringido aos povos subjugados pelo colonialismo europeu; na prioridade concedida aos direitos cívicos e políticos sobre os direitos económicos, sociais e culturais e no reconhecimento do direito de propriedade como o primeiro e, durante muitos anos, o único direito económico.

Mas há também um outro lado desta questão. Em todo o mundo milhões de pessoas e milhares de ONG's têm vindo a lutar pelos direitos humanos, muitas vezes correndo grandes riscos, em defesa de classes sociais e grupos oprimidos, em muitos casos vitimizados por Estados capitalistas autoritários. Os objectivos políticos de tais lutas são frequentemente explicita ou implicitamente anticapitalistas. Gradualmente foram-se desenvolvendo discursos e práticas contra-hegemónicos de direitos humanos, foram sendo propostas concepções não ocidentais de direitos humanos, foram-se organizando diálogos interculturais de direitos humanos. Neste domínio, a tarefa central da política emancipatória do nosso tempo consiste em transformar a conceptualização e prática dos direitos humanos de um localismo globalizado num projecto cosmopolita.

Passo a enumerar as principais premissas de uma tal transformação. A primeira premissa é a superação do debate sobre universalismo e relativismo cultural. Trata-se de um debate intrinsecamente falso, cujos conceitos polares são igualmente prejudiciais para uma concepção emancipatória de direitos humanos. Todas as culturas são relativas, mas o relativismo cultural enquanto atitude filosófica é incorrecto. Todas as culturas aspiram a preocupações e valores universais, mas o universalismo cultural, enquanto atitude filosófica, é incorrecto. Contra o universalismo, há que propor diálogos interculturais sobre preocupações isomórficas. Contra o relativismo, há que desenvolver critérios políticos para distinguir política progressista de política conservadora, capacitação de desarme, emancipação de regulação. Na medida em que o debate despoletado pelos direitos humanos pode evoluir para um diálogo competitivo entre culturas diferentes sobre os princípios de dignidade humana, é imperioso que tal competição induza as coligações transnacionais a competir por valores ou exigências máximos, e não por valores ou exigências mínimos (quais são os critérios verdadeiramente mínimos? os direitos humanos fundamentais? os menores denominadores comuns?). A advertência frequentemente ouvida hoje contra os inconvenientes de sobrecarregar a política de direitos humanos com novos direitos ou com concepções mais exigentes de direitos humanos (Donnelly, 1989: 109-24) é uma manifestação tardia da redução do potencial emancipatório da modernidade ocidental à emancipação de baixa intensidade possibillitada ou tolerada pelo capitalismo mundial. Direitos humanos de baixa intensidade como o outro lado de democracia de baixa intensidade.

A segunda premissa da transformação cosmopolita dos direitos humanos é que todas as culturas possuem concepções de dignidade humana, mas nem todas elas a concebem em termos de direitos humanos. Torna-se, por isso, importante identificar preocupações isomórficas entre diferentes culturas. Designações, conceitos e Weltanschaungen diferentes podem transmitir preocupações ou aspirações semelhantes ou mutuamente inteligíveis. Na secção seguinte darei alguns exemplos.

A terceira premissa é que todas as culturas são incompletas e problemáticas nas suas concepções de dignidade humana. A incompletude provém da própria existência de uma pluralidade de culturas, pois, se cada cultura fosse tão completa como se julga, existiria apenas uma só cultura. A ideia de completude está na origem de um excesso de sentido de que parecem enfermar todas as culturas, e é por isso que a incompletude é mais facilmente perceptível do exterior, a partir da perspectiva de outra cultura. Aumentar a consciência de incompletude cultural até ao seu máximo possível é uma das tarefas mais cruciais para a construção de uma concepção multicultural de direitos humanos.

A quarta premissa é que todas as culturas têm versões diferentes de dignidade humana, algumas mais amplas do que outras, algumas com um círculo de reciprocidade mais largo do que outras, algumas mais abertas a outras culturas do que outras. Por exemplo, a modernidade ocidental desdobrou-se em duas concepções e práticas de direitos humanos profundamente divergentes - a liberal e a marxista - uma dando prioridade aos direitos cívicos e políticos, a outra dando prioridade aos direitos sociais e económicos. Há que definir qual delas propõe um círculo de reciprocidade mais amplo.

Por último, a quinta premissa é que todas as culturas tendem a distribuir as pessoas e os grupos sociais entre dois princípios competitivos de pertença hierárquica. Um - o princípio da igualdade - opera através de hierarquias entre unidades homogéneas (a hierarquia de estratos socio-económicos; a hierarquia cidadão/estrangeiro). O outro - o princípio da diferença - opera através da hierarquia entre identidades e diferenças consideradas únicas (a hierarquia entre etnias ou raças, entre sexos, entre religiões, entre orientações sexuais). Os dois princípios não se sobrepõem necessariamente e, por esse motivo, nem todas as igualdades são idênticas e nem todas as diferenças são desiguais.

Estas são as premissas de um diálogo intercultural sobre a dignidade humana que pode levar, eventualmente, a uma concepção mestiça de direitos humanos, uma concepção que, em vez de recorrer a falsos universalismos, se organiza como uma constelação de sentidos locais, mutuamente inteligíveis, e que se constitui em redes de referências normativas capacitantes.

2.1. A hermenêutica diatópica

No caso de um diálogo intercultural, a troca não é apenas entre diferentes saberes mas também entre diferentes culturas, ou seja, entre universos de sentido diferentes e, em grande medida, incomensuráveis. Tais universos de sentido consistem em constelações de topoi fortes. Os topoi são os lugares comuns retóricos mais abrangentes de determinada cultura. Funcionam como premissas de argumentação que, por não se discutirem, dada a sua evidência, tornam possível a produção e a troca de argumentos. Topoi fortes tornam-se altamente vulneráveis e problemáticos quando «usados» numa cultura diferente. O melhor que lhes pode acontecer é serem despromovidos de premissas de argumentação a meros argumentos. Compreender determinada cultura a partir dos topoi de outra cultura pode revelar-se muito difícil, se não mesmo impossível. Partindo do pressuposto de que tal não é impossível, proponho a seguir uma hermenêutica diatópica, um procedimento hermenêutico que julgo adequado para nos guiar nas dificuldades a enfrentar, ainda que não necessariamente para as superar. Na área dos direitos humanos e da dignidade humana, a mobilização de apoio social para as possibilidades e exigências emancipatórias que eles contêm só será concretizável na medida em que tais possibilidades e exigências tiverem sido apropriadas e absorvidas pelo contexto cultural local. Apropriação e absorção, neste sentido, não podem ser obtidas através da canibalização cultural. Requerem um diálogo intercultural e uma hermenêutica diatópica.

A hermenêutica diatópica baseia-se na ideia de que os topoi de uma dada cultura, por mais fortes que sejam, são tão incompletos quanto a própria cultura a que pertencem. Tal incompletude não é visível do interior dessa cultura, uma vez que a aspiração à totalidade induz a que se tome a parte pelo todo. O objectivo da hermenêutica diatópica não é, porém, atingir a completude - um objectivo inatingível - mas, pelo contrário, ampliar ao máximo a consciência de incompletude mútua através de um diálogo que se desenrola, por assim dizer, com um pé numa cultura e outro, noutra. Nisto reside o seu carácter dia-tópico.

Um exemplo de hermenêutica diatópica é a que pode ter lugar entre o topos dos direitos humanos na cultura ocidental, o topos do dharma na cultura hindu e o topos da umma na cultura islâmica. Segundo Panikkar, dharma «é o que sustenta, dá coesão e, portanto, força, a uma dada coisa, à realidade e, em última instância, aos três mundos (triloka). A justiça dá coesão às relações humanas; a moralidade mantém a pessoa em harmonia consigo mesma; o direito é o princípio do compromisso nas relações humanas; a religião é o que mantém vivo o universo; o destino é o que nos liga ao futuro; a verdade é a coesão interna das coisas... Um mundo onde a noção de Dharma é central e quase omnipresente não está preocupado em encontrar o 'direito' de um indivíduo contra outro ou do indivíduo perante a sociedade, mas antes em avaliar o carácter dharmico (correcto, verdadeiro, consistente) ou adharmico de qualquer coisa ou acção no complexo teantropocósmico total da realidade» (1984:39).

Vistos a partir do topos do dharma, os direitos humanos são incompletos na medida em que não estabelecem a ligação entre a parte (o indivíduo) e o todo (o cosmos), ou dito de forma mais radical, na medida em que se centram no que é meramente derivado, os direitos, em vez de se centrarem no imperativo primordial, o dever dos indivíduos de encontrarem o seu lugar na ordem geral da sociedade e de todo o cosmos. Vista a partir do dharma, e na verdade também a partir da umma, como veremos a seguir, a concepção ocidental dos direitos humanos está contaminada por uma simetria muito simplista e mecanicista entre direitos e deveres. Apenas garante direitos àqueles a quem pode exigir deveres. Isto explica por que razão, na concepção ocidental dos direitos humanos, a natureza não possui direitos: porque não lhe podem ser impostos deveres. Pelo mesmo motivo é impossível garantir direitos às gerações futuras: não possuem direitos porque não possuem deveres.

Por outro lado e inversamente, visto a partir do topos dos direitos humanos, o dharma também é incompleto, dado o seu enviezamento fortemente não-dialético a favor da harmonia, ocultando assim injustiças e negligenciando totalmente o valor do conflito como caminho para uma harmonia mais rica. Além disso, o dharma não está preocupado com os princípios da ordem democrática, com a liberdade e a autonomia, e negligencia o facto de, sem direitos primordiais, o indivíduo ser uma entidade demasiado frágil para evitar ser subjugado por aquilo que o transcende. Além disso, o dharma tende a esquecer que o sofrimento humano possui uma dimensão individual irredutível: não são as sociedades que sofrem, mas sim os indivíduos.

Num outro nível conceptual pode ser ensaiada a mesma hermenêutica diatópica entre o topos dos direitos humanos e o topos da umma na cultura islâmica. Os passos do Corão em que surge a palavra umma são tão variados que o seu significado não pode ser definido com rigor. O seguinte, porém, parece ser certo: o conceito de umma refere-se sempre a entidades étnicas, linguísticas ou religiosas de pessoas que são o objecto do plano divino de salvação. À medida que a actividade profética de Maomé foi progredindo, os fundamentos religiosos da umma tornaram-se cada vez mais evidentes e, consequentemente, a umma dos árabes foi transformada na umma dos muçulmanos. Vista a partir do topos da umma, a incompletude dos direitos humanos individuais reside no facto de, com base neles, ser impossível fundar os laços e as solidariedades colectivas sem as quais nenhuma sociedade pode sobreviver, e muito menos prosperar. Exemplo disto mesmo é a dificuldade da concepção ocidental de direitos humanos em aceitar direitos colectivos de grupos sociais ou povos, sejam eles as minorias étnicas, as mulheres, as crianças ou os povos indígenas. Este é, de facto, um exemplo específico de uma dificuldade muito mais ampla: a dificuldade em definir a comunidade enquanto arena de solidariedades concretas, campo político dominado por uma obrigação política horizontal. Esta ideia de comunidade, central para Rousseau, foi varrida do pensamento liberal, que reduziu toda a complexidade societal à dicotomia Estado/sociedade civil.

Mas, por outro lado, a partir do topos dos direitos humanos individuais, a umma sublinha demasiado os deveres em detrimento dos direitos e por isso tende a perdoar desigualdades que seriam de outro modo inadmissíveis, como a desigualdade entre homens e mulheres ou entre muçulmanos e não-muçulmanos. A hermenêutica diatópica mostra-nos que a fraqueza fundamental da cultura ocidental consiste em estabelecer dicotomias demasiado rígidas entre o indivíduo e a sociedade, tornando-se assim vulnerável ao individualismo possessivo, ao narcisismo, à alienação e à anomia. De igual modo, a fraqueza fundamental das culturas hindu e islâmica deve-se ao facto de nenhuma delas reconhecer que o sofrimento humano tem uma dimensão individual irredutível, a qual só pode ser adequadamente considerada numa sociedade não hierarquicamente organizada.

O reconhecimento de incompletudes mútuas é condição sine qua non de um diálogo intercultural. A hermenêutica diatópica desenvolve-se tanto na identificação local como na inteligibilidade translocal das incompletudes. Um bom exemplo de hermenêutica diatópica entre a cultura islâmica e a cultura ocidental no campo dos direitos humanos é dado por Abdullahi An-na'im (1990, 1992). Existe um longo debate acerca das relações entre islamismo e direitos humanos e da possibilidade de uma noção islâmica de direitos humanos. Este debate abrange um largo espectro de posições e o seu impacto ultrapassa o mundo islâmico. Embora correndo o risco de excessiva simplificação, duas posições extremas podem ser identificadas neste debate. Uma, absolutista ou fundamentalista, é sustentada por aqueles para quem o sistema jurídico religioso do Islão, a Shari'a, deve ser integralmente aplicado como o direito do Estado islâmico. Segundo esta posição, há inconsistências irreconciliáveis entre a Shari'a e a concepção ocidental dos direitos humanos, e sempre que tal ocorra a Shari'a deve prevalecer. Por exemplo, relativamente ao estatuto dos não- muçulmanos, a Shari'a determina a criação de um Estado para muçulmanos que apenas reconhece estes como cidadãos, negando aos não-muçulmanos quaisquer direitos políticos. Ainda segundo a Shari'a, a paz entre muçulmanos e não-muçulmanos é sempre problemática e os confrontos podem ser inevitáveis. Relativamente às mulheres, o problema da igualdade nem sequer se põe; a Shari'a impõe a segregação das mulheres e, em algumas interpretações mais estritas, exclui-as de toda a vida pública.

No outro extremo, encontram-se os secularistas ou modernistas, que entendem deverem os muçulmanos organizar-se em Estados seculares. O Islão é um movimento religioso e espiritual e não político e, como tal, as sociedades muçulmanas modernas são livres de organizar o seu governo do modo que julgarem conveniente e apropriado às circunstâncias. A aceitação de direitos humanos internacionais é uma questão de decisão política independente de considerações religiosas. Apenas para dar um exemplo, entre muitos, desta posição: uma lei tunisina de 1956 proibiu a poligamia com o argumento de ter deixado de ser aceitável, tanto mais que a exigência corânica de justiça no tratamento das co-esposas era impossível de realizar na prática por qualquer homem, excepto o Profeta.

An-na'im critica estas duas posições extremas. A via per mezzo que propõe pretende encontrar fundamentos interculturais para os direitos humanos, identificando as áreas de conflito entre a Shari'a e «os critérios de direitos humanos» e estabelecendo uma reconciliação ou relação positiva entre os dois sistemas. O problema da Shari'a histórica é que exclui mulheres e não-muçulmanos do campo de reciprocidade. Para o resolver, é necessária uma reforma ou reconstrução da Shari'a. O método proposto para tal «Reforma islâmica» assenta numa revisão evolucionista das fontes islâmicas, que reconsidera o contexto histórico específico em que a Shari'a foi criada pelos juristas dos séculos VIII e IX. Nesse contexto histórico específico, uma construção restritiva do Outro e da reciprocidade foi provavelmente justificada. Hoje, porém, o contexto é totalmente diferente e é possível reencontrar nas fontes originárias do Islão plena justificação para uma visão mais ampla de reciprocidade.

Seguindo os ensinamentos de Maomé, An-na'im demonstra que uma análise atenta do conteúdo do Corão e do Suna revela dois níveis ou fases da mensagem do Islão: uma, do período da Meca Antiga, e outra, do período subsequente, de Medina. A mensagem primitiva de Meca é a mensagem eterna e fundamental do Islão, que sublinha a dignidade inerente a todos os seres humanos, independentemente de sexo, religião ou raça. Esta mensagem, considerada demasiado avançada para as condições históricas do século VII (a fase de Medina), foi suspensa e a sua aplicação adiada até que no futuro as circunstâncias a tornassem possível. O tempo e o contexto, diz An-na'im, estão agora maduros para tal.

Não me cabe avaliar a validade específica desta proposta para a cultura islâmica. Esta postura é precisamente o que distingue a hermenêutica diatópica do orientalismo. O que quero realçar na abordagem de An-na'im é a tentativa de transformar a concepção de direitos humanos ocidental numa concepção intercultural que reivindica para eles a legitimidade islâmica, em vez de renunciar a ela. Em abstracto e visto de fora, é difícil ajuizar qual das abordagens, a religiosa ou a secularista, terá mais probabilidades de prevalecer num diálogo intercultural sobre direitos humanos a partir do Islão. Porém, tendo em mente que os direitos humanos ocidentais são a expressão de um profundo, se bem que incompleto, processo de secularização, sem paralelo na cultura islâmica, estaria inclinado a sugerir que, no contexto muçulmano, a energia mobilizadora necessária para um projecto cosmopolita de direitos humanos poderá gerar-se mais facilmente num quadro religioso esclarecido. Se este for o caso, a abordagem de An-na'im é muito promissora.

A hermenêutica diatópica não é tarefa para uma só pessoa, escrevendo dentro de uma única cultura. Não é, portanto, surpreendente que a abordagem de An-na'im, um genuíno exercício de hermenêutica diatópica, seja por ele conduzida com consistência desigual. Na minha perspectiva, An-na'im aceita demasiado fácil e acriticamente a ideia de direitos humanos universais. Apesar de este autor subscrever uma abordagem evolucionista e estar realmente atento ao contexto histórico da tradição islâmica, a sua interpretação resulta surpreendentemente ahistórica e ingenuamente universalista quanto à Declaração Universal dos Direitos Humanos. A hermenêutica diatópica requer não apenas um tipo de conhecimento diferente, mas também um diferente processo de criação de conhecimento. A hermenêutica diatópica exige uma produção de conhecimento colectiva, interactiva, intersubjectiva e reticular.

A hermenêutica diatópica conduzida por An-na'im a partir da perspectiva da cultura islâmica e as lutas pelos direitos humanos organizadas pelos movimentos feministas islâmicos, seguindo as ideias da «Reforma islâmica» por ele propostas, têm de ser complementadas por uma hermenêutica diatópica conduzida a partir da perspectiva de outras culturas e, nomeadamente, da perspectiva da cultura ocidental dos direitos humanos. Este é provavelmente o único meio de integrar na cultura ocidental a noção de direitos colectivos, os direitos da natureza e das futuras gerações, bem como a noção de deveres e responsabilidades para com entidades colectivas, sejam elas a comunidade, o mundo ou mesmo o cosmos.

Mais genericamente, a hermenêutica diatópica oferece um amplo campo de possibilidades para os debates que estão actualmente a ocorrer nas diferentes regiões culturais do sistema mundial sobre os temas gerais do universalismo, relativismo, multiculturalismo, pós-colonialismo, quadros culturais da transformação social, tradicionalismo e renovação cultural. Porém, uma concepção idealista de diálogo intercultural poderá esquecer facilmente que tal diálogo só é possível através da simultaneidade temporária de duas ou mais contemporaneidades diferentes. Os parceiros no diálogo são apenas superficialmente contemporâneos; na verdade, cada um deles sente-se apenas contemporâneo da tradição histórica da sua cultura. É assim sobretudo quando as diferentes culturas envolvidas no diálogo partilham um passado de sucessivas trocas desiguais. Que possibilidades existem para um diálogo intercultural se uma das culturas em presença foi moldada por massivas e prolongadas violações dos direitos humanos perpetradas em nome da outra cultura? Quando as culturas partilham tal passado, o presente que partilham no momento de iniciarem o diálogo é, no melhor dos casos, um quid pro quo e, no pior dos casos, uma fraude. O dilema cultural que se levanta é o seguinte: dado que, no passado, a cultura dominante tornou impronunciáveis algumas das aspirações à dignidade humana por parte da cultura subordinada, será agora possível pronunciá-las no diálogo intercultural sem, ao fazê-lo, justificar e mesmo reforçar a sua impronunciabilidade?

Imperialismo cultural e epistemicídio são parte da trajectória histórica da modernidade ocidental. Após séculos de trocas culturais desiguais, será justo tratar todas as culturas de forma igual? Será necessário tornar impronunciáveis algumas aspirações da cultura ocidental para dar espaço à pronunciabilidade de outras aspirações de outras culturas? Paradoxalmente - e contrariando o discurso hegemónico - é precisamente no campo dos direitos humanos que a cultura ocidental tem de aprender com o Sul para que a falsa universalidade atribuída aos direitos humanos no contexto imperial seja convertida, na translocalidade do cosmopolitismo, num diálogo intercultural.

O carácter emancipatório da hermenêutica diatópica não está garantido a priori e, de facto, o multiculturalismo pode ser o novo rótulo de uma política reaccionária. Basta mencionar o multiculturalismo do primeiro ministro da Malásia ou da gerontocracia chinesa quando se referem à "concepção asiática de direitos humanos" para justificar as conhecidas e as desconhecidas "Tianamens". Para prevenir esta perversão, dois imperativos interculturais devem ser aceites por todos os grupos empenhados na hermenêutica diatópica. O primeiro pode formular-se assim: das diferentes versões de uma dada cultura, deve ser escolhida aquela que representa o círculo mais amplo de reciprocidade dentro dessa cultura, a versão que vai mais longe no reconhecimento do outro. Como vimos, das duas diferentes interpretações do Corão, An-na'im escolhe a que possui o círculo mais amplo de reciprocidade, a que abrange igualmente muçulmanos e não-muçulmanos, homens e mulheres. O mesmo procedimento deve ser adoptado na cultura ocidental. Das duas versões de direitos humanos existentes na nossa cultura - a liberal e a marxista - a marxista deve ser adoptada, pois amplia para os domínios económico e social a igualdade que a versão liberal apenas considera legítima no domínio político.

O segundo imperativo intercultural pode ser enunciado do seguinte modo: uma vez que todas as culturas tendem a distribuir pessoas e grupos de acordo com dois princípios concorrentes de pertença hierárquica, e, portanto, com concepções concorrentes de igualdade e diferença, as pessoas e os grupos sociais têm o direito a ser iguais quando a diferença os inferioriza, e o direito a ser diferentes quando a igualdade os descaracteriza. Este é, consabidamente, um imperativo muito difícil de atingir e de manter. Os Estados constitucionais multinacionais como a Bélgica aproximam-se dele em alguns aspectos. Existe neste momento grande esperança que a África do Sul venha a ser outro exemplo.

3. Conclusão

Na forma como são agora predominantemente entendidos, os direitos humanos são uma espécie de esperanto que dificilmente se poderá tornar na linguagem quotidiana da dignidade humana nas diferentes regiões do globo. Compete à hermenêutica diatópica proposta neste artigo transformá-los numa política cosmopolita que ligue em rede línguas nativas de emancipação, tornando-as mutuamente inteligíveis e traduzíveis. Este projecto pode parecer demasiado utópico. Mas, como disse Sartre, antes de ser concretizada, uma ideia tem uma estranha semelhança com a utopia. Seja como for, o importante é não reduzir o realismo ao que existe, pois, de outro modo, podemos ficar obrigados a justificar o que existe, por mais injusto ou opressivo que seja.

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